-
Do "Livro do Desasocego"
COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA LIVROS NA CIDADE DE LISBOA
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, malestar dos corpos involuntários, vago baço do céo azul deveras. É o torpor sensivel da insinuação do ócio, pluma roçando leve a face a adormecer. É estío mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dêle.
Se eu fôra outro, penso, êste seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nêle. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal — aquêle que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaría o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantariamos, em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.
Como, porém, sou eu, goso um pouco o pouco que é imaginar-me êsse outro. Sim, logo êle-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dôbro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo êle, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem essa alegria humilde e humana de existir como animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efémero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de día.
FERNANDO PESSOA
-
Do "Livro do Desassossego"
COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA LIVROS NA CIDADE DE LISBOA
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras. É o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando leve a face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.
Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal — aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos, em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.
Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem essa alegria humilde e humana de existir como animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efémero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de dia.
FERNANDO PESSOA
Do ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺNa perfeição nítida do diaʺ)
Bernardo Soares
A Revista da Solução Editora 1, novembro de 1932, p. 8.