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Sobre um manifesto de estudantes
Foi ha dias distribuida em Lisboa, com a fórma de um manifesto de estudantes, uma estupida, vil e entristecedora blague contra o altissimo espirito, e o não menos alto caracter, do dr. Raul Leal, auctor de Sodoma Divinizada e de um manifesto recente, notavel documento de verdade e de nobreza, que, sendo dirigido aos estudantes de Lisboa, nenhuma offensa a elles contém, a não ser que dizer-lhes que estudem o seja.
Consiste a blague em dar por louco o dr. Raul Leal, servindo-se seus auctores do manifesto d’elle, e fazendo, por meio de phrases truncadas ou separadas aleivosamente do contexto que as remata, uma psychiatria de circo, facil a todos em quem o espirito scientifico seja nullo e a inconsciencia positiva.
A sordida brincadeira não tem o merito, até certo ponto exculpador, da novidade. O processo do ataque psychiatrico ― sempre antipathico, quasi sempre facil, quasi nunca justificavel ― já fôra empregado entre nós pelo dr. Arthur Leitão, que escreveu em 1907, contra o conselheiro João Franco, então presidente do conselho, o seu opusculo Um caso de loucura epileptica . O artificio, porém, era importado: deu-lhe origem, pelo menos notavel, o fallecido Max Nordau no seu livro celebre Degeneração .
Se a blague dos estudantes não tivesse maior defeito que o não ser nova, não haveria mistér que se viesse fallar d’ella em publico. O peor é o mais que ella contém, ou, antes, denota. Disse eu que ella era estupida, vil e entristecedora. Repito-o, e vou proval-o. É nisso que está o seu mal.
A blague dos estudantes é estupida, não só porque são negativos o portuguez e o lógico da sua redacção, mas tambem porque o auctor d’ella nem sequer soube effectuar seu proprio intento. Nada ha mais facil que provar por alto que qualquer é louco: basta ter que fazel-o só para quem nada entende da materia. Ao mais leigo em psychiatria ― desde que nelle concorram a ausencia de escrupulos e a de espirito scientifico ― é facil simular um diagnostico, encaixando em qualquer individuo apenas dois ou trez dos varios symptomas, cujo conjuncto compõe o quadro clinico de qualquer psychose. Ha toda a apparencia, para os leigos, de se ter provado a existencia de psychose; em verdade, nada se provou, pelo menos do que se insinua. Tão estupido, porém, é o auctor do manifesto dos estudantes que, podendo fazer isso facilmente, e sem mais sophisma que o de origem, com o manifesto do dr. Raul Leal ― porque é facil fazel-o com todo documento singular e complexo ―, tem comtudo que servir-se de phrases truncadas, de citações portanto ficticias, para dar ao seu escripto um ar de verdade. Nem esqueça aquella attribuição ao dr. Raul Leal de «um curioso excesso de memoria», pormenor clinico transcripto sem que d’elle haja applicação possivel a qualquer ponto do manifesto; a não ser que haja «excesso de memoria» em alguem se não esquecer que passou quatro annos de miseria.
Peor que a estupidez do manifesto, consubstanciada porém com ella, é a sua sordida vileza. O dr. Arthur Leitão, em seu opusculo, servia-se, ao menos, de phrases do conselheiro João Franco. Os estudantes servem-se de partes de phrases do dr. Raul Leal. Como as phrases inteiras lhes não servem, truncam-as, de modo que sirvam. E assim fazem a sua demonstração por meio de idéas que o dr. Raul Leal não manifestou, sendo que manifestou as contrarias. Exponho um exemplo. O dr. Raul Leal escreveu, em seu manifesto, este paragrapho:
Antes d’esses quatro annos em que puz bem á prova o meu caracter, convivia gostosamente com amoraes, sendo em theoria d’uma condescendencia quasi absoluta e reconhecendo mesmo um certo valor transitorio em todo o amoralismo. Cheguei a defendel-o com emoção. Pois quando veiu a occasião de pôr em pratica as minhas «theorias», subiu-me pela alma um nojo tão grande, uma aversão tão poderosa a todos os abandalhamentos e crimes, que, podendo ter sido um bandido, um escroc e um souteneur para estar de accordo com o que pensava, preferi ser verdadeiramente um puro, um immaculado. E foi então que vi Deus...
Os estudantes transcrevem d’este modo, aos bocados:
«Convivia gostosamente com amoraes, sendo em theoria d’uma condescendencia quasi absoluta e reconhecendo mesmo um certo valor transitorio em todo o amoralismo» ― «cheguei a defendel-o com emoção» ― «podendo ter sido um bandido, um escroc e um souteneur, para estar de accordo com o que pensava».
Na transcripção esphacelada desapparece, assim, todo o sentido do paragrapho em seu conjuncto. E o que é nobreza e sinceridade na ligação do paragrapho completo resulta vileza e impudor quando d’elle se excluem, na transcripção ficticia, os seus elementos vitaes, o seu unico sentido.
Mais vil (se é possivel) que esta vileza, é a propria essencia do manifesto dos estudantes. Escreveram-o elles como blague? Ha trez cousas com que um espirito nobre, de velho ou de jovem, nunca brinca, porque o brincar com ellas é um dos signaes distinctivos da baixeza da alma: são ellas os deuses, a morte e a loucura. Se, porém, o author do manifesto o escreveu a serio, ou crê louco o dr. Raul Leal, ou, não crendo, usa o parecer crel-o para o conspurcar. Só a ultima canalha das ruas insulta um louco, e em publico. Só qualquer canalha abaixo d'essa imita esse insulto, sabendo que mente.
Ainda sobra vileza. O dr. Arthur Leitão, se escreveu um opusculo antipathico, escreveu-o comtudo contra o presidente do conselho, então dictador; atacou um homem que tinha comsigo toda a força das authoridades do Estado e da Tradição; um homem que, a ser louco, sem duvida exerceria, pelo logar que occupava, uma acção largamente nefasta.
Os estudantes são de melhor calculo. Entrincheirados simultaneamente no Governo Civil e na Epocha ― isto é, na republica e na monarchia ―, seguros porisso do appoio de toda a imprensa e da consequente difficultação de qualquer protesto, atacam e insultam confiadamente. Atacam e insultam a quem? A um homem que não os atacou, que está sosinho ou tão pouco acompanhado que é como se o estivesse, sem posição que o torne perigoso a quem o ataca, sem influencia que torne prejudicial a sua acção, suppondo que ella em sua essencia o seja. E por que foram movidos a esse insulto? Por aquillo mesmo que os devera demover, se o intentassem; por um manifesto em que sem duvida transparece uma alta intelligencia e se mostra uma altissima dignidade. Estupidos e sordidos, são porisso incapazes de conceder a possibilidade de um talento alheio que não comprehendam, ou senão de rebellar-se contra a alheia dignidade, como se a existencia d’ella os humilhasse.
É por essa mesma estupidez, e esta mesma complexa vileza, que o manifesto dos estudantes, sendo que é de jovens, é entristecedor. Moços, cuja intelligencia deveria ser, não porcerto disciplinada, porém alacre e disperta, rastejam assim na imbecilidade. Jovens, cuja moral devia peccar só pelos defeitos do impulso e da precipitação, mostram-nos, no emprego da subtileza baixa, da deshonestidade da intelligencia e do calculo sordido, os vicios menos desculpaveis da decrepitude.
De resto, terão elles culpa? Fortes, como estão, com a força alheia, cujo appoio os torna representantes e symbolos d’ella, esta vasa do liberalismo e da democracia é já o transbordar das forças desintegrantes, de cuja acção provém a nossa miseria nacional. Sim, elles não são elles-proprios: são o ambiente que os produziu. São bem o resultado da Monarchia dos Braganças e da Republica Portugueza. São bem o producto de uma sociedade em que varios seculos de educação fradesca e jesuitica prepararam, pela annullação do espirito critico e scientifico, o advento das idéas «liberaes»; em a qual, portanto, a estagnação da intelligencia se completou, como era logico, com a perversão do caracter e a ruina da ordem.
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É em parte por isto ― por serem estes estudantes, sobretudo na acção d’elles que apprecio, o symbolo vivo d’esta sociedade ― que de certo modo vale o exforço a publicação d’este protesto, cuja intenção os transcende. É isto um dever social. No que não é por isto, convém escrevel-o para que, d’aquella calumnia de que sempre fica alguma cousa, possa ficar um pouco menos que se elle se não escrevera. É isto um dever moral. Nem é descabido que se aproveite a opportunidade para protestar tambem ― o que em grande parte d’este escripto está implicito ― contra o complexo desrespeito pela sciencia que ha no emprego da psychiatria para fins de insulto. É isto um dever intellectual.
E se houver alguem do publico a quem em algum grau convencesse o manifesto dos estudantes, com breves palavras se lhe tira essa illusão da ignorancia.
Pretendem os estudantes provar que o dr. Raul Leal é um paranoico com delirio das grandezas; serve de unica razão comprehensivel d’esse «diagnostico» a presença, que allegam, no manifesto d’elle de uma exaltação morbida do orgulho e de idéas de perseguição. Veremos opportunamente o que pesam estas duas allegações. Conceda-se, por ora, que são justas. Com isso se simplificará o argumento.
Nem as idéas doentias de grandeza, nem as idéas de perseguição bastam, de per si, separadas ou juntas, para provar a paranoia. Ha mister que se manifestem de certa maneira, que se desinvolvam de certo modo, e que nellas e em seu desenrolamento haja o que se chama systematização. E, provada que não seja a paranoia, pode a morbidez mental revelada descer facilmente ― e quasi sempre se verá que desce ― do nivel das psychoses para o das neuropsychoses, cuja gravidade é muito menor, como a sua natureza muito differente. Tenho notado ― leigo que sou ― em casos de simples hystero-epilepsia a eclosão episodica e irregular de taes idéas; nunca, porém, nellas se estabelece uma coordenação tal, que simulen de perto um delirio systematizado.
No dr. Raul Leal não se revelam idéas de perseguição. No manifesto d’elle parece haver, em algumas referencias á Egreja Catholica, um esboço muito vago d’ellas. Como, porém, na sua conversação e nos actos da sua vida taes idéas nunca surgem, nem mesmo vagas, podemos considerar o que no manifesto as simula como menos que episodico, pormenor antes da só imaginação exaltada, sobretudo litterariamente, que da inteligencia em desvio. A exaltação morbida do orgulho e da personalidade é que nelle é manifesta e frequente. Carece, porém, de linha morbida directriz, que a constitua em delirio. E tem, talvez, ainda que doentia na sua manifestação, uma razão-de-ser que de certo modo o não é, e que de todo a differença do delirio das grandezas.
A presença ou ausencia de elementos justificativos de um orgulho excessivo é um facto primordial para se fazer juizo em casos d’estes. O orgulho desmedido, e, por desmedido, doentio, de um homem de genio não tem analogia, senão na fórma externa, com o delirio orgulhoso de um megalomano vulgar. Quando um homem de genio, cujo genio reconhecemos já, manifesta um orgulho doentio, desculpamos-lhe o excesso da affirmação pela razão, que lhe vemos, para fazel-a. Que diriamos, porém, se esse mesmo homem de genio manifestasse esse mesmo orgulho, do mesmo modo legitimo porque o homem é o mesmo, antes que o reconhecessemos como genio? Tel-o-hiamos, talvez, por louco. Assim, muitas vezes, o que nos parece a loucura dos outros não é mais que a nossa propria incomprehensão.
Como sabem os estudantes, como sabe quem quer que seja, se o orgulho desmedido do sr. Raul Leal não é illegitimo hoje só para ter sido sempre legitimo ámanhã? Acham excessivo, mesmo como doença, o aspecto d’esse orgulho? Acham sophistica a demonstração de que não é louco quem diz que quer fundar uma nova religião, «o terceiro reino divino»?
Por muitos que sejam os symptomas de desequilibrio que uma psychiatria justa possa encontrar no dr. Raul Leal, não são tantos quantos os symptomas de loucura, de degeneração, de perversão intellectual e moral que um psychiatra eminente, o dr. Binet-Sanglé, encontrou na pessoa de Jesus Christo, o qual, comtudo, fundou uma religião, como mesmo os estudantes de Lisboa devem saber.
Os trez volumes intitulados La Folie de Jésus constituem, sem duvida, um exemplo de probidade clinica e de exposição psychiatrica. Nelles podem os estudantes apprender, lendo, como se demonstra um caso de loucura. Fechados elles, porém, podem apprender, reflectindo, que é a loucura que dirige o mundo. Loucos são os heroes, loucos os santos, loucos os genios, sem os quaes a humanidade é uma mera especie animal, cadaveres addiados que procriam.
*
Disse o que tinha que dizer. Conclúo saudando, que assim manda a tradição.
Aos estudantes de Lisboa não desejo mais ― porque não posso desejar melhor ― de que um dia possam ter uma vida tão digna, uma alma tão alta e nobre como as do homem que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amisade, que não tem limites, mas tambem da minha admiração pelo seu alto genio especulativo e metaphysico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a de tel-o por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, differentes e sósinhos, sob o chasco e o insulto da canalha.
Fernando Pessoa
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Sobre um manifesto de estudantes
Foi há dias distribuída em Lisboa, com a forma de um manifesto de estudantes, uma estúpida, vil e entristecedora blague contra o altíssimo espírito, e o não menos alto carácter, do dr. Raul Leal, autor de Sodoma Divinizada e de um manifesto recente, notável documento de verdade e de nobreza, que, sendo dirigido aos estudantes de Lisboa, nenhuma ofensa a eles contém, a não ser que dizer-lhes que estudem o seja.
Consiste a blague em dar por louco o dr. Raul Leal, servindo-se seus autores do manifesto dele, e fazendo, por meio de frases truncadas ou separadas aleivosamente do contexto que as remata, uma psiquiatria de circo, fácil a todos em quem o espírito científico seja nulo e a inconsciência positiva.
A sórdida brincadeira não tem o mérito, até certo ponto exculpador, da novidade. O processo do ataque psiquiátrico ― sempre antipático, quase sempre fácil, quase nunca justificável ― já fora empregado entre nós pelo dr. Artur Leitão, que escreveu em 1907, contra o conselheiro João Franco, então presidente do conselho, o seu opúsculo Um caso de loucura epilética. O artifício, porém, era importado: deu-lhe origem, pelo menos notável, o falecido Max Nordau no seu livro célebre Degeneração.
Se a blague dos estudantes não tivesse maior defeito que o não ser nova, não haveria mister que se viesse falar dela em público. O pior é o mais que ela contém, ou, antes, denota. Disse eu que ela era estúpida, vil e entristecedora. Repito-o, e vou prová-lo. E’ nisso que está o seu mal.
A blague dos estudantes é estúpida, não só porque são negativos o português e o lógico da sua redação, mas também porque o autor dela nem sequer soube efetuar seu próprio intento. Nada há mais fácil que provar por alto que qualquer é louco: basta ter que fazê-lo só para quem nada entende da matéria. Ao mais leigo em psiquiatria ― desde que nele concorram a ausência de escrúpulos e a de espírito científico ― é fácil simular um diagnóstico, encaixando em qualquer indivíduo apenas dois ou três dos vários sintomas, cujo conjunto compõe o quadro clínico de qualquer psicose. Há toda a aparência, para os leigos, de se ter provado a existência de psicose; em verdade, nada se provou, pelo menos do que se insinua. Tão estúpido, porém, é o autor do manifesto dos estudantes que, podendo fazer isso facilmente, e sem mais sofisma que o de origem, com o manifesto do dr. Raul Leal ― porque é fácil fazê-lo com todo documento singular e complexo ―, tem contudo que servir-se de frases truncadas, de citações portanto fictícias, para dar ao seu escrito um ar de verdade. Nem esqueça aquela atribuição ao dr. Raul Leal de «um curioso excesso de memória», pormenor clínico transcrito sem que dele haja aplicação possível a qualquer ponto do manifesto; a não ser que haja «excesso de memória» em alguém se não esquecer que passou quatro anos de miséria.
Pior que a estupidez do manifesto, consubstanciada porém com ela, é a sua sórdida vileza. O dr. Artur Leitão, em seu opúsculo, servia-se, ao menos, de frases do conselheiro João Franco. Os estudantes servem-se de partes de frases do dr. Raul Leal. Como as frases inteiras lhes não servem, truncam-nas, de modo que sirvam. E assim fazem a sua demonstração por meio de ideias que o dr. Raul Leal não manifestou, sendo que manifestou as contrárias. Exponho um exemplo. O dr. Raul Leal escreveu, em seu manifesto, este parágrafo:
Antes desses quatro anos em que pus bem à prova o meu carácter, convivia gostosamente com amorais, sendo em teoria duma condescendência quase absoluta e reconhecendo mesmo um certo valor transitório em todo o amoralismo. Cheguei a defendê-lo com emoção. Pois quando veio a ocasião de pôr em prática as minhas «teorias», subiu-me pela alma um nojo tão grande, uma aversão tão poderosa a todos os abandalhamentos e crimes, que, podendo ter sido um bandido, um escroc e um souteneur para estar de acordo com o que pensava, preferi ser verdadeiramente um puro, um imaculado. E foi então que vi Deus...
Os estudantes transcrevem deste modo, aos bocados:
«Convivia gostosamente com amorais, sendo em teoria duma condescendência quase absoluta e reconhecendo mesmo um certo valor transitório em todo o amoralismo» ― «cheguei a defendê-lo com emoção» ― «podendo ter sido um bandido, um escroc e um souteneur, para estar de acordo com o que pensava».
Na transcrição esfacelada desaparece, assim, todo o sentido do parágrafo em seu conjunto. E o que é nobreza e sinceridade na ligação do parágrafo completo resulta vileza e impudor quando dele se excluem, na transcrição fictícia, os seus elementos vitis, o seu único sentido.
Mais vil (se é possível) que esta vileza, é a própria essência do manifesto dos estudantes. Escreveram-no eles como blague? Há três coisas com que um espírito nobre, de velho ou de jovem, nunca brinca, porque o brincar com elas é um dos sinais distintivos da baixeza da alma: são elas os deuses, a morte e a loucura. Se, porém, o autor do manifesto o escreveu a sério, ou crê louco o dr. Raul Leal, ou, não crendo, usa o parecer crê-lo para o conspurcar. Só a última canalha das ruas insulta um louco, e em público. Só qualquer canalha abaixo dessa imita esse insulto, sabendo que mente.
Ainda sobra vileza. O dr. Artur Leitão, se escreveu um opúsculo antipático, escreveu-o contudo contra o presidente do conselho, então ditador; atacou um homem que tinha consigo toda a força das autoridades do Estado e da Tradição; um homem que, a ser louco, sem dúvida exerceria, pelo ugar que ocupava, uma ação largamente nefasta.
Os estudantes são de melhor cálculo. Entrincheirados simultaneamente no Governo Civil e na Época ― isto é, na república e na monarquia ―, seguros por isso do apoio de toda a imprensa e da consequente dificultação de qualquer protesto, atacam e insultam confiadamente. Atacam e insultam a quem? A um homem que não os atacou, que está sozinho ou tão pouco acompanhado que é como se o estivesse, sem posição que o torne perigoso a quem o ataca, sem influência que torne prejudicial a sua ação, supondo que ela em sua essência o seja. E por que foram movidos a esse insulto? Por aquilo mesmo que os devera demover, se o intentassem; por um manifesto em que sem dúvida transparece uma alta inteligência e se mostra uma altíssima dignidade. Estúpidos e sórdidos, são por isso incapazes de conceder a possibilidade de um talento alheio que não compreendam, ou senão de rebelar-se contra a alheia dignidade, como se a existência dela os humilhasse.
E’ por essa mesma estupidez, e esta mesma complexa vileza, que o manifesto dos estudantes, sendo que é de jovens, é entristecedor. Moços, cuja inteligência deveria ser, não por certo disciplinada, porém alacre e desperta, rastejam assim na imbecilidade. Jovens, cuja moral devia pecar só pelos defeitos do impulso e da precipitação, mostram-nos, no emprego da subtileza baixa, da desonestidade da inteligência e do cálculo sórdido, os vícios menos desculpáveis da decrepitude.
De resto, terão eles culpa? Fortes, como estão, com a força alheia, cujo apoio os torna representantes e símbolos dela, esta vasa do liberalismo e da democracia é já o transbordar das forças desintegrantes, de cuja ação provém a nossa miséria nacional. Sim, eles não são eles próprios: são o ambiente que os produziu. São bem o resultado da Monarquia dos Braganças e da República Portuguesa. São bem o produto de uma sociedade em que vários séculos de educação fradesca e jesuítica prepararam, pela anulação do espírito crítico e científico, o advento das ideias «liberais»; em a qual, portanto, a estagnação da inteligência se completou, como era lógico, com a perversão do carácter e a ruína da ordem.
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É em parte por isto ― por serem estes estudantes, sobretudo na ação deles que aprecio, o símbolo vivo desta sociedade ― que de certo modo vale o esforço a publicação deste protesto, cuja intenção os transcende. É isto um dever social. No que não é por isto, convém escrevê-lo para que, daquela calúnia de que sempre fica alguma coisa, possa ficar um pouco menos que se ele se não escrevera. É isto um dever moral. Nem é descabido que se aproveite a oportunidade para protestar também ― o que em grande parte deste escrito está implícito ― contra o complexo desrespeito pela ciência que há no emprego da psiquiatria para fins de insulto. É isto um dever intelectual.
E se houver alguém do público a quem em algum grau convencesse o manifesto dos estudantes, com breves palavras se lhe tira essa ilusão da ignorância.
Pretendem os estudantes provar que o dr. Raul Leal é um paranoico com delírio das grandezas; serve de única razão compreensível desse «diagnóstico» a presença, que alegam, no manifesto dele de uma exaltação mórbida do orgulho e de ideias de perseguição. Veremos oportunamente o que pesam estas duas alegações. Conceda-se, por ora, que são justas. Com isso se simplificará o argumento.
Nem as ideias doentias de grandeza, nem as ideias de perseguição bastam, de per si, separadas ou juntas, para provar a paranoia. Há mister que se manifestem de certa maneira, que se desenvolvam de certo modo, e que nelas e em seu desenrolamento haja o que se chama sistematização. E, provada que não seja a paranoia, pode a morbidez mental revelada descer facilmente ― e quase sempre se verá que desce ― do nível das psicoses para o das neuropsicoses, cuja gravidade é muito menor, como a sua natureza muito diferente. Tenho notado ― leigo que sou ― em casos de simples histero-epilepsia a eclosão episódica e irregular de tais ideias; nunca, porém, nelas se estabelece uma coordenação tal, que simulem de perto um delírio sistematizado.
No dr. Raul Leal não se revelam ideias de perseguição. No manifesto dele parece haver, em algumas referências à Igreja Católica, um esboço muito vago delas. Como, porém, na sua conversação e nos atos da sua vida tais ideias nunca surgem, nem mesmo vagas, podemos considerar o que no manifesto as simula como menos que episódico, pormenor antes da só imaginação exaltada, sobretudo literariamente, que da inteligência em desvio. A exaltação mórbida do orgulho e da personalidade é que nele é manifesta e frequente. Carece, porém, de linha mórbida diretriz, que a constitua em delírio. E tem, talvez, ainda que doentia na sua manifestação, uma razão-de-ser que de certo modo o não é, e que de todo a diferença do delírio das grandezas.
A presença ou ausência de elementos justificativos de um orgulho excessivo é um facto primordial para se fazer juízo em casos destes. O orgulho desmedido, e, por desmedido, doentio, de um homem de génio não tem analogia, senão na forma externa, com o delírio orgulhoso de um megalómano vulgar. Quando um homem de génio, cujo génio reconhecemos já, manifesta um orgulho doentio, desculpamos-lhe o excesso da afirmação pela razão, que lhe vemos, para fazê-la. Que diríamos, porém, se esse mesmo homem de génio manifestasse esse mesmo orgulho, do mesmo modo legítimo porque o homem é o mesmo, antes que o reconhecêssemos como génio? Tê-lo-íamos, talvez, por louco. Assim, muitas vezes, o que nos parece a loucura dos outros não é mais que a nossa própria incompreensão.
Como sabem os estudantes, como sabe quem quer que seja, se o orgulho desmedido do sr. Raul Leal não é ilegítimo hoje só para ter sido sempre legítimo amanhã? Acham excessivo, mesmo como doença, o aspeto desse orgulho? Acham sofística a demonstração de que não é louco quem diz que quer fundar uma nova religião, «o terceiro reino divino»?
Por muitos que sejam os sintomas de desequilíbrio que uma psiquiatria justa possa encontrar no dr. Raul Leal, não são tantos quantos os sintomas de loucura, de degeneração, de perversão intelectual e moral que um psiquiatra eminente, o dr. Binet-Sanglé, encontrou na pessoa de Jesus Cristo, o qual, contudo, fundou uma religião, como mesmo os estudantes de Lisboa devem saber.
Os três volumes intitulados La Folie de Jésus constituem, sem dúvida, um exemplo de probidade clínica e de exposição psiquiátrica. Neles podem os estudantes aprender, lendo, como se demonstra um caso de loucura. Fechados eles, porém, podem aprender, refletindo, que é a loucura que dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam.
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Disse o que tinha que dizer. Concluo saudando, que assim manda a tradição.
Aos estudantes de Lisboa não desejo mais ― porque não posso desejar melhor ― de que um dia possam ter uma vida tão digna, uma alma tão alta e nobre como as do homem que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amizade, que não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio especulativo e metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a de tê-lo por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e sozinhos, sob o chasco e o insulto da canalha.
Fernando Pessoa
Sobre um manifesto de estudantes
Fernando Pessoa
Lisboa, Maio de 1923, 1p.