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PARA A MEMORIA DE ANTONIO NOBRE
QUANDO a hora do ultimatum abriu em Portugal, para não mais se fecharem, as portas do templo de Jano, o deus bifronte revelou-se na litteratura nas duas maneiras correspondentes á dupla direcção do seu olhar. Junqueiro — o de Patria e Finis Patriaem — foi a face que olha para o Futuro e se exalta. Antonio Nobre foi a face que olha para o Passado, e se entristece.
De Antonio Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá teem sido pronunciadas. Teem subido a um sentido mais alto e divino do que elle balbuciou. Mas elle foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento portuguez das almas e das cousas, que tem pena, de que umas não sejam corpos, para lhe poder fazer festas, e de que as outras não sejam gente, para poder fallar com ellas. O ingenuo pantheismo da Raça, que tem carinhos de expontanea phrase para com as arvores e as pedras, desabrochou n’elle melancolicamente. Elle veio no outomno e pelo crepusculo. Pobre de quem o comprehende e ama!
O sublime n’elle é humilde, o orgulho ingenuo, e ha um sabôr a infancia triste no mais adulto horror de seus tedios e das suas desesperanças. Não o encontramos senão entre o desfolhar das rosas e nos jardins desertos. Os seus braços esqueceram a alegria do gesto, e o seu sorriso é o rumor de uma festa longinqua, em que nada de nós toma parte, salvo a imaginação.
Dos seus versos não se tira, felizmente, ensinamento nenhum. Roça rente a muros nocturnos a desgraça das suas emoções. Esconde-se de alheios olhos o proprio esplendor do seu desespero. Ás vezes, entre o principio e o fim de um seu verso, intercala-se um cansaço, um encolher de hombros, uma angustia ao mundo. O exercito dos seus sentimentos perdeu as bandeiras n’uma batalha que nunca ousou travar.
As suas ternuras amuadas por si-proprio: as suas pequenas corridas, de creança mal-ousada, até os portões da quinta, para retroceder, esperando que ninguem houvesse visto: as suas meditações no limiar;... e as aguas correntes no nosso ouvido: a longa convalescencia febril ainda por todos os sentidos: e as tardes, os tanques da quinta, os caminhos onde o vento já não ergue a poeira, o regresso de romarias, as ferias que se desmancham, taboa a taboa, e o guardar nas gavetas secretas das cartas que nunca se mandaram... A que sonhos de que Musa exilada pertenceu aquella vida de Poeta?...
Quando elle nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz comsigo, mesmo no sentido da sua alegria, é elle ainda, e a vida d’elle, nunca perfeitamente real nem com certeza vivida, é, afinal, a summula da vida que vivemos ― orphãos de pae e de màe, perdidos de Deus no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos.
Fernando Pessoa
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PARA A MEMÓRIA DE ANTÓNIO NOBRE
QUANDO a hora do ultimatum abriu em Portugal, para não mais se fecharem, as portas do templo de Jano, o deus bifronte revelou-se na literatura nas duas maneiras correspondentes à dupla direção do seu olhar. Junqueiro — o de Pátria e Finis Patriaem — foi a face que olha para o Futuro e se exalta. António Nobre foi a face que olha para o Passado, e se entristece.
De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas. Têm subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou. Mas ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas, que tem pena, de que umas não sejam corpos, para lhe poder fazer festas, e de que as outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça, que tem carinhos de espontânea frase para com as árvores e as pedras, desabrochou nele melancolicamente. Ele veio no outono e pelo crepúsculo. Pobre de quem o compreende e ama!
O sublime nele é humilde, o orgulho ingénuo, e há um sabor a infância triste no mais adulto horror de seus tédios e das suas desesperanças. Não o encontramos senão entre o desfolhar das rosas e nos jardins desertos. Os seus braços esqueceram a alegria do gesto, e o seu sorriso é o rumor de uma festa longínqua, em que nada de nós toma parte, salvo a imaginação.
Dos seus versos não se tira, felizmente, ensinamento nenhum. Roça rente a muros noturnos a desgraça das suas emoções. Esconde-se de alheios olhos o próprio esplendor do seu desespero. Às vezes, entre o princípio e o fim de um seu verso, intercala-se um cansaço, um encolher de ombros, uma angústia ao mundo. O exército dos seus sentimentos perdeu as bandeiras numa batalha que nunca ousou travar.
As suas ternuras amuadas por si próprio: as suas pequenas corridas, de criança mal-ousada, até os portões da quinta, para retroceder, esperando que ninguém houvesse visto: as suas meditações no limiar;... e as águas correntes no nosso ouvido: a longa convalescença febril ainda por todos os sentidos: e as tardes, os tanques da quinta, os caminhos onde o vento já não ergue a poeira, o regresso de romarias, as férias que se desmancham, tábua a tábua, e o guardar nas gavetas secretas das cartas que nunca se mandaram... A que sonhos de que Musa exilada pertenceu aquela vida de Poeta?...
Quando ele nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz consigo, mesmo no sentido da sua alegria, é ele ainda, e a vida dele, nunca perfeitamente real nem com certeza vivida, é, afinal, a súmula da vida que vivemos ― órfãos de pai e de mãe, perdidos de Deus no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos.
Fernando Pessoa
Para a memória de António Nobre
Fernando Pessoa
A Galera , 25 de fevereiro de 1915, p. 35.