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BIBLIOGRAPHIA
MOVIMENTO SENSACIONISTA
Elogio da paisagem, sonetos de Pedro de Menezes Lisboa, Livraria Brazileira, 1915.
As tres princezas mortas num palacio em ruinas, poemas de João Cabral do Nascimento, Lisboa, 1916.
Apesar de a sua tarefa ser a da reconstrucção da literatura e da mentalidade nacionaes, o Movimento Sensacionista vae dia a dia colhendo fôrça, rasgando caminho, florindo em novos adeptos e sensibilidades acordadas.
Desde a data, gloriosa para as nossas lettras, em que, com a publicação de «Orpheu», um oasis se abriu no deserto da intelligencia nacional, os Espiritos, a quem Deus concedeu que com a sua sensibilidade espontanea iniciassem o Sensacionismo, vêem, com patriotico agrado, de todos os solos do paiz, de todos os estratos da cultura, brotar poetas da prosa e do verso, que, levemente uns, vincadamente outros, alguns com consciencia, outros como que malgré eux, veem adherir de inspiração aos principios que constituem a attitude sensacionista. Por toda a parte a sociedade occultamente constituida pelas intelligencias portuguezas vae sendo ensopada em Sensacionismo. Na mocidade que começa a escrever-se, os poucos, que mostram esperanças de dar fructo intellectual, não florescem senão a dentro do Sensacionismo. Ninguem hoje, entre os escolares que se prezam, admira ou imita os nossos classicos ou os classicos dos nossos jornalistas.
Tudo isto representa ― outro sentido não poder ter ― uma instancia da Hora da Raça, que, sentindo a necessidade de realisar Cosmopolis em si, se vira para o unico nucleo de artistas que, além de darem ao seu instincto de Chefes a garantia primaria de serem quasi todos homens de genio, que tomaram de nascença nas mãos o pendão da Raça (ha tanto tempo bolorejando no tumulo de Camões, de Garrett ou de outros bric-à-brac), representam, manifestamente, uma pleiade luzida que nas suas obras enfeixa, com o maximo utilisavel do sentimento portuguez, o maximo aproveitavel nas actuaes correntes europêas.
O Sensacionismo surgiu, pois, como primeira manifestação de um Portugal-Europa, como a unica «grande arte» literaria que em Portugal se tem revelado, livre da estreiteza chronica que tem prendido no seu leito de Procrustes todos os nossos impulsos estheticos, desde a tisica espiritualidade que subjaz o pseudo-petrarchismo dos tristes poetas da nossa Renascença, até á secca commotividade em torno á qual nucleou o neo-huguismo (grande embora) do actual chefe honorario da intellectualidade portugueza.
Synthetico assim, o Sensacionismo triumphou. Primeiro pelo escandalo, que outro não podia ser o triumpho entre os feirantes que ergueram barracas no terreno desoccupado da nossa critica. O nosso meio jornalistico e «literario», acostumado ou a ser latoeiramente estrangeiro, ou a ser nacional no nivel da [47]Praça da Figueira, deu a «Orpheu» a unica honra que em taes almas cabia conferir ― a da sua invertebradamente espontanea, surprehendentemente sincera aversão. Assim, no que facto publico, se lançou o Sensacionismo. A unica propaganda que se fez foi não se fazer propaganda nenhuma. Gratis lhe fez esse frete a amabilidade involuntaria dos criticos.
Depois, seguro e certo como uma maré que sobe, começou o triumpho nos espiritos. De alma a alma, das aproveitaveis, o Sensacionismo correu. Chegou, viram-o, e venceu. E este muito é o pouco que são todos os principios. Hoje é já uma victoria; amanhã será uma nacionalidade.
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Servem estas palavras de introdução á breve critica, que vamos fazer, das duas plaquettes sensacionistas, cujos titulos encimam este artigo.
A breve e magistral colheita de sonetos, que o sr. Pedro de Menezes fez para o seu publico, marca bem a individualidade definida, que elle tem a dentro do Sensacionismo. A exhuberancia abstracto-concreta das imagens, a riqueza de suggestão na associação d’ellas, a profunda intuição metaphysica que socleia tanto os versos culminantes dos sonetos d’esta plaquette, como, bastas vezes, a direcção animica de certos sonetos integralmente ― tantas são algumas das razões que um espirito esclarecido e europeu encontra para admirar e amar o Elogio da Paisagem . Como esta critica não é feita para analphabetos, é inutil esmiuçal-a mais e fazer transcripções que, no lance, nada adeantariam. Basta que se aponte como são bellos ― acima dos outros, que são todos bellos ― os sonetos III (I.º), V, XIII (I.º) e, mais do que todos, o assombroso Horas Mortas , que não conseguimos não transcrever:
Princesas a passar nos olhos meus.
Hora-curvas de dedos mais esguios.
Rios sem outra margem. Sempre rios...
Pontes até ao meio e o resto Deus...
A Hora em que o luar perde os sentidos.
A hora em que a Paisagem veste seda
E os rios são as caudas dos vestidos
Que se arrastam de noite na alameda.
Sombras de Inês depois de ser rainha,
― Pedro, o Silêncio, junto dêle as tinha... ―
Velhinhas assentadas à lareira...
Todas as pontes iam dar a Deus...
Passei-as todas p’ra atingir os céus
E a minha Alma era sempre a derradeira.
Comvém não omittir que o sr. Pedro de Menezes junta ás suas grandes qualidades dois defeitos, que, não chegando a empanal-as, certo é que não deixam que ellas tenham o relevo a que teem jus. O primeiro defeito é uma certa deficiencia ― por vezes accentuadamente notavel ― de musicalidade, de suggestão puramente syllabica, de seducção rhytmica pura. Os seus versos teem, frequentemente, elementos de dureza e rectilineidade. No propiro grande soneto, que se citou, semelhante jaça é flagrante.
O seu outro defeito é menos frequente e, onde está, é, em geral, menos sensivel. É que por vezes o poeta esquece as leis, não só exotericas, mas esotericas tambem, da associação de ideas desconnexas, e juxtapõe imagens que, sendo, quasi sempre, cada uma d’ellas bella, não se fundem em belleza, não se synthetisam suggestivamente no espirito. E é n’estes raros pontos que a fraqueza rhythmica, associando-se a ess’outra falha, consegue que a belleza escasseie no effeito poetico que resulta. O proprio soneto Horas Mortas , com ser grande, não deixa de permittir que nelle se colha o exemplo que é bom não sonegar. [48]Repare-se no primeiro terceto, evoque-se bem a suggestão imaginativa que elle impõe, e mida-se depois como essa intromissão de figuras historicas (por poeticas que se possam crêr) nesta successão de imagens ou indefinidas ou abstractas põe um solavanco inesperado no estado de sonho que o soneto provoca. O erro psychologico culmina na juxtaposição «Pedro, o Silencio», que é estheticamente invisualisavel.
*
Os elementos componentes da inspiração sensacionista estão ainda inharmonicos e inindividualisados na, aliás interessantissima, pequena obra do sr. Cabral do Nascimento. É singular que o defeito capital d’esta plaquette é precisamente aquelle que ultimo apontámos na do sr. Pedro de Menezes. Aqui, porém, visto que o author, embora de verdade um poeta, seja ainda um principiante, o defeito tem um relevo muito maior, constitue, mesmo, o peccado original do livro.
Fóra isso, e aquella ligeira e indefinivel incerteza que ha em todos os primeiros passos, physicos como psychicos, e que desapparece com o haver segundos, a obra de que se trata revela que quem a escreveu tem qualidades de imaginação e de intelligencia que podem fazer d’elle poeta inadjectivavel. Procure o sr. Cabral do Nascimento ter sempre este facto tão presente, que não saiba que o tem presente ― que uma obra de arte, por dispersa que seja a sua realisação detalhada, deve ser sempre uma cousa una e organica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como ás outras que lhe são annexas, e em que o todo existe syntheticamente em cada uma das partes, e na ligação d’essas partes umas ás outras. Compreenda isto até á inconsciencia. Sinta isto até não o sentir. E, sentido e comprehendido isto até com o corpo, despreze todo o resto. Salte por cima de todas as logicas. Rasgue e queime todas as grammaticas. Reduza a pó todas as coherencias, todas as decencias, e todas as convicções. Feita sua aquella, a unica regra de arte, pode desvairar á vontade, que nunca desvairará; pode exceder-se, que nunca poderá exceder-se; pode dar ao seu espirito todas as liberdades, que elle nunca tomará a de o tornar um mau poeta.
O resto é a literatura portugueza.
Fernando Pessôa.
Sensacionista. -
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BIBLIOGRAFIA
MOVIMENTO SENSACIONISTA
Elogio da paisagem, sonetos de Pedro de Menezes Lisboa, Livraria Brasileira, 1915.
As três princesas mortas num palácio em ruínas, poemas de João Cabral do Nascimento, Lisboa, 1916.
Apesar de a sua tarefa ser a da reconstrução da literatura e da mentalidade nacionais, o Movimento Sensacionista vai dia a dia colhendo força, rasgando caminho, florindo em novos adeptos e sensibilidades acordadas.
Desde a data, gloriosa para as nossas letras, em que, com a publicação de «Orpheu», um oásis se abriu no deserto da inteligência nacional, os Espíritos, a quem Deus concedeu que com a sua sensibilidade espontânea iniciassem o Sensacionismo, veem, com patriótico agrado, de todos os solos do país, de todos os estratos da cultura, brotar poetas da prosa e do verso, que, levemente uns, vincadamente outros, alguns com consciência, outros como que malgré eux, vêm aderir de inspiração aos princípios que constituem a atitude sensacionista. Por toda a parte a sociedade ocultamente constituída pelas inteligências portuguesas vai sendo ensopada em Sensacionismo. Na mocidade que começa a escrever-se, os poucos, que mostram esperanças de dar fruto intelectual, não florescem senão a dentro do Sensacionismo. Ninguém hoje, entre os escolares que se prezam, admira ou imita os nossos clássicos ou os clássicos dos nossos jornalistas.
Tudo isto representa ― outro sentido não poder ter ― uma instância da Hora da Raça, que, sentindo a necessidade de realizar Cosmopolis em si, se vira para o único núcleo de artistas que, além de darem ao seu instinto de Chefes a garantia primária de serem quase todos homens de génio, que tomaram de nascença nas mãos o pendão da Raça (há tanto tempo bolorejando no túmulo de Camões, de Garrett ou de outros bric-à-brac), representam, manifestamente, uma plêiade luzida que nas suas obras enfeixa, com o máximo utilizável do sentimento português, o máximo aproveitável nas atuais correntes europeias.
O Sensacionismo surgiu, pois, como primeira manifestação de um Portugal-Europa, como a única «grande arte» literária que em Portugal se tem revelado, livre da estreiteza crónica que tem prendido no seu leito de Procrustes todos os nossos impulsos estéticos, desde a tísica espiritualidade que subjaz o pseudopetrarquismo dos tristes poetas da nossa Renascença, até à seca comotividade em torno à qual nucleou o neo-huguismo (grande embora) do atual chefe honorário da intelectualidade portuguesa.
Sintético assim, o Sensacionismo triunfou. Primeiro pelo escândalo, que outro não podia ser o triunfo entre os feirantes que ergueram barracas no terreno desocupado da nossa crítica. O nosso meio jornalístico e «literário», acostumado ou a ser latoeiramente estrangeiro, ou a ser nacional no nível da [47]Praça da Figueira, deu a «Orpheu» a única honra que em tais almas cabia conferir ― a da sua invertebradamente espontânea, surpreendentemente sincera aversão. Assim, no que facto publico, se lançou o Sensacionismo. A única propaganda que se fez foi não se fazer propaganda nenhuma. Grátis lhe fez esse frete a amabilidade involuntária dos críticos.
Depois, seguro e certo como uma maré que sobe, começou o triunfo nos espíritos. De alma a alma, das aproveitáveis, o Sensacionismo correu. Chegou, viram-no, e venceu. E este muito é o pouco que são todos os princípios. Hoje é já uma vitória; amanhã será uma nacionalidade.
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Servem estas palavras de introdução à breve crítica, que vamos fazer, das duas plaquetes sensacionistas, cujos títulos encimam este artigo.
A breve e magistral colheita de sonetos, que o sr. Pedro de Menezes fez para o seu público, marca bem a individualidade definida, que ele tem a dentro do Sensacionismo. A exuberância abstrato-concreta das imagens, a riqueza de sugestão na associação delas, a profunda intuição metafísica que socleia tanto os versos culminantes dos sonetos desta plaquete, como, bastas vezes, a direção anímica de certos sonetos integralmente ― tantas são algumas das razões que um espírito esclarecido e europeu encontra para admirar e amar o Elogio da Paisagem. Como esta crítica não é feita para analfabetos, é inútil esmiuçá-la mais e fazer transcrições que, no lance, nada adiantariam. Basta que se aponte como são belos ― acima dos outros, que são todos belos ― os sonetos III (I.º), V, XIII (I.º) e, mais do que todos, o assombroso Horas Mortas, que não conseguimos não transcrever:
Princesas a passar nos olhos meus.
Hora-curvas de dedos mais esguios.
Rios sem outra margem. Sempre rios...
Pontes até ao meio e o resto Deus...
A Hora em que o luar perde os sentidos.
A hora em que a Paisagem veste seda
E os rios são as caudas dos vestidos
Que se arrastam de noite na alameda.
Sombras de Inês depois de ser rainha,
― Pedro, o Silêncio, junto dele as tinha... ―
Velhinhas assentadas à lareira...
Todas as pontes iam dar a Deus...
Passei-as todas pra atingir os céus
E a minha Alma era sempre a derradeira.
Convém não omitir que o sr. Pedro de Menezes junta às suas grandes qualidades dois defeitos, que, não chegando a empaná-las, certo é que não deixam que elas tenham o relevo a que têm jus. O primeiro defeito é uma certa deficiência ― por vezes acentuadamente notável ― de musicalidade, de sugestão puramente silábica, de sedução rítmica pura. Os seus versos têm, frequentemente, elementos de dureza e retilineidade. No propiro grande soneto, que se citou, semelhante jaça é flagrante.
O seu outro defeito é menos frequente e, onde está, é, em geral, menos sensível. É que por vezes o poeta esquece as leis, não só exotéricas, mas esotéricas tambem, da associação de ideias desconexas, e justapõe imagens que, sendo, quase sempre, cada uma delas bela, não se fundem em beleza, não se sintetizam sugestivamente no espírito. E é nestes raros pontos que a fraqueza rítmica, associando-se a ess’outra falha, consegue que a beleza escasseie no efeito poético que resulta. O próprio soneto Horas Mortas, com ser grande, não deixa de permitir que nele se colha o exemplo que é bom não sonegar. [48]Repare-se no primeiro terceto, evoque-se bem a sugestão imaginativa que ele impõe, e mida-se depois como essa intromissão de figuras históricas (por poéticas que se possam crer) nesta sucessão de imagens ou indefinidas ou abstratas põe um solavanco inesperado no estado de sonho que o soneto provoca. O erro psicológico culmina na justaposição «Pedro, o Silêncio», que é esteticamente invisualizável.
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Os elementos componentes da inspiração sensacionista estão ainda inarmónicos e inindividualizados na, aliás interessantíssima, pequena obra do sr. Cabral do Nascimento. É singular que o defeito capital desta plaquete é precisamente aquele que último apontámos na do sr. Pedro de Menezes. Aqui, porém, visto que o autor, embora de verdade um poeta, seja ainda um principiante, o defeito tem um relevo muito maior, constitui, mesmo, o pecado original do livro.
Fora isso, e aquela ligeira e indefinível incerteza que há em todos os primeiros passos, físicos como psíquicos, e que desaparece com o haver segundos, a obra de que se trata revela que quem a escreveu tem qualidades de imaginação e de inteligência que podem fazer dele poeta inadjetivável. Procure o sr. Cabral do Nascimento ter sempre este facto tão presente, que não saiba que o tem presente ― que uma obra de arte, por dispersa que seja a sua realização detalhada, deve ser sempre uma coisa una e orgânica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como às outras que lhe são anexas, e em que o todo existe sinteticamente em cada uma das partes, e na ligação dessas partes umas às outras. Compreenda isto até à inconsciência. Sinta isto até não o sentir. E, sentido e compreendido isto até com o corpo, despreze todo o resto. Salte por cima de todas as lógicas. Rasgue e queime todas as gramáticas. Reduza a pó todas as coerências, todas as decências, e todas as convicções. Feita sua aquela, a única regra de arte, pode desvairar à vontade, que nunca desvairará; pode exceder-se, que nunca poderá exceder-se; pode dar ao seu espírito todas as liberdades, que ele nunca tomará a de o tornar um mau poeta.
O resto é a literatura portuguesa.
Fernando Pessoa.
Sensacionista.
Movimento sensacionista
Fernando Pessoa
Exílio 1, abril de 1916, pp. 46-48.