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Coisas estilisticas que aconteceram a um gomil cinzelado, que se dizia ter sido batido no ceu, em tempos da velha fabula, por um deus amoroso
Pegue-se num côrno, chame-se-lhe prosa, e ter-se-ha o estilo do sr. Manuel de Sousa Pinto.
E, comtudo, é um homem inteligente este critico de alguma arte. Não é, é certo, um homem de talento, por mais que no caso o sr. João de Barros tenha um sim de ida-e-volta. Mas não nos leve esta critica de anzol a reagir excessivamente. É um homem inteligente o sr. Sousa Pinto. A especie de inteligentes a que pertence é a dos criticos, e o genero de criticos em que entra é o dos criticos de segunda ordem.
É um genero entre vulgar e raro. Conhece-se facilmente. O critico de segunda ordem alia á capacidade de apreciação a incapacidade de compreensão e de analise. É mais ou menos razoavelmente seguro na critica a cousas que não involvam reforma ou novidade. E, em materia de pôr opiniões por escrito, dispõe dum estilo que, quando normal, é simples, vivo e interessante; mas idéas e forma, só as tem adaptadas a uma especie quasi subliteraria — a cronica.
Daqui se conclue que o critico de segunda ordem é um bom critico que é um mau critico. Ha três ordens de maus criticos: estes, os de segunda ordem, porque não são de primeira; os sectarios (como Brunetière) porque são sectarios; e os que não são criticos porque não são criticos (como grande numero de poetas e artistas, e mesmo de pensadores por outros caminhos). Destas três especies de herejes da apreciação, os ultimos nunca devem cair em dar parecer, e os primeiros e segundos devem escrever o velho “conhece-te” em letras muito grandes, num papel muito branco que terão sempre colado na parêde, defronte da sua meza de trabalho.
Ha três cousas que o critico de segunda ordem nunca deve cair em fazer: [em ter opinião propria, em criticar obras que tenham novidade ou complexidade, e em produzir arte. Não deve querer ter opinião propria porque opinião propria, na critica, involve o pre-estabelecimento raciocinado ou meditado de principios ou teorias proprias; e um critico de segunda ordem tem, por natureza, tanto poder de theorisar como uma tainha ou um caracol. Não deve criticar novidades e complexidades porque não tem individualidade bastante para se despegar naturalmente do usual e do simples, nem inteligencia que baste para se arrancar a elle á força. No primeiro deste erros tem o sr. Sousa Pinto caido um pouco, no segundo mais alguma coisa de que um pouco. Mas o que nos importa é que, levado pelo que deve ser vaidade, pelo seu imperfeito senso critico, e, sem duvida, tambem por elogios que varia gente inferior lhe tem videiramente e até sinceramente feito, o sr. Sousa Pinto se metteu, intelectualmente, no leito de Procrustes de romancear, donde saíu sem pés nem cabeça. Porque, francamente, esta leria do Gomil é impossível de gramar. Uma pieguice corn ea, um amorudismo em espiral, uma artificialidade vêsga (porque o sr. Sousa Pinto não é um artificial; quér sel-o), um cubismo de modos-de-querer-dizer, no manejo de um assumpto que pedia o mais simples e diréto dos estilos — O Gomil dos Noivados e tudo isto — tudo isto intersticiado, como nestes casos é fatal, de quedas esticantes na banalidade de expressão, na banalidade de noticiario e de carnet mondain, no nivel do «gentilissima» e do «elegantissima». Recorra-se á citação.
Por mais que diligenciasse afugenta-la, mais se fortalecia no animo sobresaltado do principe a convicção terrivel d’aquella glacial indiferença indespertavel, como mais apavorante se antolhava á princeza, de si mesmo desgostada, a incompatibilidade d’aquella desegualissima intimidade. (Pag. 71)
Este estilo é a caricatura de si-proprio. Aquele “animo sobresaltado," que é de costureira aquela “convicção terrivel d’aquella glacial indiferença indespertavel," que é de reporter doido, aquilo da “desegualissima intimidade," que é de discurso de conselheiro — dá nisto um homem inteligente, e que é, creio e lamento, estudioso e trabalhador.
Deixe-se disso, Sousa Pinto. Torne á cronica, homem; escreva como deve e pode e deixe os romances aos romancistas. Mande ao diabo os Joões de Barros e Joaquins Mansos e todo o resto da coterie d’entre-porta-e-porta da Livraria Ferreira.
Isto é amavel e sincero. Não é o Torna-te ás terras que batatas criam de Castilho, nem o So back to the Shop, Mr. John! da Quarterly Review a Keats. É a traducção para explicado e extenso do comentario arre! que puz a lapis na ultima pagina do seu livro entre a palavra FIM e o bemdito desaparecer para sempre do seu estuporadissimo gomil. Quem lhe mandou tocar rabecão? O sr. não sabe musica...
Fernando Pessôa.
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Coisas estilísticas que aconteceram a um gomil cinzelado, que se dizia ter sido batido no céu, em tempos da velha fábula, por um deus amoroso
Pegue-se num corno, chame-se-lhe prosa, e ter-se-á o estilo do sr. Manuel de Sousa Pinto.
E, contudo, é um homem inteligente este crítico de alguma arte. Não é, é certo, um homem de talento, por mais que no caso o sr. João de Barros tenha um sim de ida-e-volta. Mas não nos leve esta crítica de anzol a reagir excessivamente. É um homem inteligente o sr. Sousa Pinto. A espécie de inteligentes a que pertence é a dos críticos, e o género de críticos em que entra é o dos críticos de segunda ordem.
É um género entre vulgar e raro. Conhece-se facilmente. O crítico de segunda ordem alia à capacidade de apreciação a incapacidade de compreensão e de análise. É mais ou menos razoavelmente seguro na crítica a coisas que não envolvam reforma ou novidade. E, em matéria de pôr opiniões por escrito, dispõe dum estilo que, quando normal, é simples, vivo e interessante; mas ideias e forma, só as tem adaptadas a uma espécie quase subliterária — a crónica.
Daqui se conclui que o crítico de segunda ordem é um bom crítico que é um mau crítico. Há três ordens de maus críticos: estes, os de segunda ordem, porque não são de primeira; os sectários (como Brunetière) porque são sectários; e os que não são críticos porque não são críticos (como grande número de poetas e artistas, e mesmo de pensadores por outros caminhos). Destas três espécies de hereges da apreciação, os últimos nunca devem cair em dar parecer, e os primeiros e segundos devem escrever o velho “conhece-te” em letras muito grandes, num papel muito branco que terão sempre colado na parede, defronte da sua mesa de trabalho.
Há três coisas que o crítico de segunda ordem nunca deve cair em fazer: [em ter opinião própria, em criticar obras que tenham novidade ou complexidade, e em produzir arte. Não deve querer ter opinião própria porque opinião própria, na crítica, envolve o pré-estabelecimento raciocinado ou meditado de princípios ou teorias próprias; e um crítico de segunda ordem tem, por natureza, tanto poder de teorizar como uma tainha ou um caracol. Não deve criticar novidades e complexidades porque não tem individualidade bastante para se despegar naturalmente do usual e do simples, nem inteligência que baste para se arrancar a ele à força. No primeiro deste erros tem o sr. Sousa Pinto caído um pouco, no segundo mais alguma coisa de que um pouco. Mas o que nos importa é que, levado pelo que deve ser vaidade, pelo seu imperfeito senso crítico, e, sem dúvida, também por elogios que vária gente inferior lhe tem videiramente e até sinceramente feito, o sr. Sousa Pinto se meteu, intelectualmente, no leito de Procrustes de romancear, donde saiu sem pés nem cabeça. Porque, francamente, esta léria do Gomil é impossível de gramar. Uma pieguice corn ea, um amorudismo em espiral, uma artificialidade vesga (porque o sr. Sousa Pinto não é um artificial; quer sê-lo), um cubismo de modos-de-querer-dizer, no manejo de um assunto que pedia o mais simples e direto dos estilos — O Gomil dos Noivados e tudo isto — tudo isto intersticiado, como nestes casos é fatal, de quedas esticantes na banalidade de expressão, na banalidade de noticiário e de carnet mondain, no nível do «gentilíssima» e do «elegantíssima». Recorra-se à citação.
Por mais que diligenciasse afugentá-la, mais se fortalecia no ânimo sobressaltado do príncipe a convicção terrível daquela glacial indiferença indespertável, como mais apavorante se antolhava à princesa, de si mesmo desgostada, a incompatibilidade daquela desigualíssima intimidade. (Pag. 71)
Este estilo é a caricatura de si próprio. Aquele “ânimo sobressaltado," que é de costureira aquela “convicção terrível daquela glacial indiferença indespertável," que é de repórter doido, aquilo da “desigualíssima intimidade," que é de discurso de conselheiro — dá nisto um homem inteligente, e que é, creio e lamento, estudioso e trabalhador.
Deixe-se disso, Sousa Pinto. Torne à crónica, homem; escreva como deve e pode e deixe os romances aos romancistas. Mande ao diabo os Joões de Barros e Joaquins Mansos e todo o resto da coterie d’entre-porta-e-porta da Livraria Ferreira.
Isto é amável e sincero. Não é o Torna-te às terras que batatas criam de Castilho, nem o So back to the Shop, Mr. John! da! Quarterly Review a Keats. É a tradução para explicado e extenso do comentário arre! que pus a lápis na última página do seu livro entre a palavra FIM e o bendito desaparecer para sempre do seu estuporadíssimo gomil. Quem lhe mandou tocar rabecão? O sr. não sabe música...
Fernando Pessoa.
Coisas estilísticas que aconteceram a um gomil cinzelado, que se dizia ter sido batido no céu, em tempos da velha fábula, por um deus amoroso
Fernando Pessoa
Teatro — Revista de Critica 2, 8 de março de 1913, p. 4.