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O NOSSO INQUERITO
Exmo Sr. Alvaro de Campos :
Recebi hoje inesperadamente, a resposta ao inquerito de A Informação .
Li-as com atenção. Tomei nota. Vou publica-las por este simples dever de dar publicidade a todas as opiniões que me aparecem na mesa de trabalho, mesmo as mais parvas.
As suas respostas não pertencem a essa categoria — são suas. E por tal lh’as publico, mas deixe me lhe diga que, de hoje em diante, embora continue a ter por V. Exa a mesma admiração que me vem de larga data, fico obrigado a não conhecer mais, pessoalmente, a pessoa de V. Ex.a.
Como o que me interessa são as suas personalidades lerei com atenção os seus futuros livros ou poemas e isso me bastará.
De V. Exa.
Augusto Ferreira Gomes
Caro sr. Ferreira Gomes:
Respondo, numerando, ás seis preguntas do inquerito que não creio que seja seu.
Elas são:
(1) Qual é dos seus livros, aquéle que mais estima?
(2) Qual dèles lhe trouxe mais admiradores?
(3) Deve ás suas obras alguma aventura amorosa?
(4) Qual foi a maior compensação moral que lhe deu a literatura?
(5) Algum dos protagonistas dos seus livros teve existencia real?
(6) Qual é a sua maior preocupação intelectual ao escrever?
Eu respondo:
(1) Não tendo livros publicados, mas só poemas que valem mais que os livros dos meus contemporaneos de todas as falas, não lhe responderei senão entendendo poemas em vez de livros.
Agrada-me estridentemente a «Ode Triumfal», inserta em «Orfeu 1». Sei bem que a «Ode Maritima», trazida por «Orfeu 2», tem mais construção e arredores; mas não esqueço que escrevi a primeira com a emoção em linha recta, e que ela é a obra prima da sensibilidade moderna. São favores que devo aos Deuses: não quero ser ingrato para com eles, desreconhecendo-os.
(2) Tenho influido indeterminadamente em varias composições subsequentes, por não ter o segredo de ter influido nas anteriores. Mas não sei se me têm admirado aqueles que me têm admirado. O certo é que não tenho podido passar a minha emoção intelectual para os copistas da minha expressão dela. Mas contento me com o que não me descontenta, e basta... Ainda ha pouco me trouxeram uma publicação brasileira que tem versos seminais nas minhas emoções. Até isso aceito. O Destino assim dá. Ao menos não tardou. Bis dat qui cito dat, dizia o meu professor de latim.
(3) Não costumo pôr á arte a canga da sexualidade. Confesso, contudo, que devo a uma obra minha, mas de maneira indirecta, uma aventura amorosa. Foi em Barrow in Furness, que é um porto na costa occidental da Inglaterra. Ali, certo dia, depois de um trabalho de arqueação, estava eu sentado sobre uma barrica, num cais abandonado. Acabava de escrever um soneto — elo de uma cadeia de varios — em que o facto de estar sentado nessa barrica era um elemento de construção. Aproximou-se de mim uma rapariga, por assim dizer, — alumna, segundo depois soube do liceu (High School) local —, e entrou em conversa comigo. Viu que eu estava a escrever versos, e perguntou-me, como nestas ocasiões se costuma perguntar, se eu escrevia versos. Respondi, como nestes casos se responde, que não. A tarde, segundo a sua obrigação tradicional, caía lenta e suave. Deixei-a cair.
É conhecida a índole portuguesa e o caracter propicio das horas, independentemente das indoles e dos portugueses. Foi isto uma aventura amorosa? Não chegarei a dizer-lhe. Foi uma tarde, num cais longe da Patria; e hoje é, decerto, uma recordação a ouro fôsco. Assim diríamos no «Orfeu»; assim não deixarei de lhe dizer agora. Que mais quere de mim, sr. Ferreira Gomes? A vida é extremamente complexa, e os acasos são, por vezes, necessarios. O conto não tem moral, desde o principio. O ouro fôsco ficou humido e a tarde caiu definitivamente.
(4) A unica compensação moral que devo á literatura é a gloria futura de ter escrito as minhas obras presentes.
(5) Não escrevi historia nem historias, e, por isso, não uso protagonistas, a não ser a variedade de pessoas que tenho sido. Nenhuma delas tem existencia real, porque nada tem, scientificamente falando, existencia «real». As coisas são sensações nossas, sem objectividade determinavel, e eu, sensação tambem para mim mesmo, não posso crer que tenha mais realidade que as outras coisas. Sou, como toda a gente, uma ficção do «intermezzo», falso como as horas que passam e as obras que ficam, no rodopio subatomico deste inconcebivel universo.
(6) Não tenho preocupação intelectual ao escrever. Tenho a unica preocupação de emitir emoções, deixando á inteligencia que se aguente com elas o melhor que puder. Tenho o desejo de ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos. Menos que tudo é nada para a alma que não cata piolhos na logica, nem olha para as unhas na estetica. Não podendo ser a propria força universal que envolve e penetra a rotação dos seres, quero ao menos ser uma consciencia audivel dela, um brilho momentaneo no choque nocturno das coisas... O resto é delirio e podridão.
Creia-me cordealmente seu,
Alvaro de Campos .
Engenheiro naval e poeta do «Orpheu» -
O NOSSO INQUÉRITO
Exmo Sr. Álvaro de Campos:
Recebi hoje inesperadamente, a resposta ao inquérito de A Informação.
Li-as com atenção. Tomei nota. Vou publicá-las por este simples dever de dar publicidade a todas as opiniões que me aparecem na mesa de trabalho, mesmo as mais parvas.
As suas respostas não pertencem a essa categoria ― são suas. E por tal lhas publico, mas deixe-me lhe diga que, de hoje em diante, embora continue a ter por V. Exa a mesma admiração que me vem de larga data, fico obrigado a não conhecer mais, pessoalmente, a pessoa de V. Ex.a.
Como o que me interessa são as suas personalidades lerei com atenção os seus futuros livros ou poemas e isso me bastará.
De V. Exa.
Augusto Ferreira Gomes
Caro sr. Ferreira Gomes:
Respondo, numerando, às seis preguntas do inquérito que não creio que seja seu.
Elas são:
(1) Qual é dos seus livros, aquele que mais estima?
(2) Qual deles lhe trouxe mais admiradores?
(3) Deve às suas obras alguma aventura amorosa?
(4) Qual foi a maior compensação moral que lhe deu a literatura?
(5) Algum dos protagonistas dos seus livros teve existência real?
(6) Qual é a sua maior preocupação intelectual ao escrever?
Eu respondo:
(1) Não tendo livros publicados, mas só poemas que valem mais que os livros dos meus contemporâneos de todas as falas, não lhe responderei senão entendendo poemas em vez de livros.
Agrada-me estridentemente a «Ode Triunfal», inserta em «Orfeu 1». Sei bem que a «Ode Maritima», trazida por «Orfeu 2», tem mais construção e arredores; mas não esqueço que escrevi a primeira com a emoção em linha reta, e que ela é a obra-prima da sensibilidade moderna. São favores que devo aos Deuses: não quero ser ingrato para com eles, desreconhecendo-os.
(2) Tenho influído indeterminadamente em várias composições subsequentes, por não ter o segredo de ter influído nas anteriores. Mas não sei se me têm admirado aqueles que me têm admirado. O certo é que não tenho podido passar a minha emoção intelectual para os copistas da minha expressão dela. Mas contento-me com o que não me descontenta, e basta... Ainda há pouco me trouxeram uma publicação brasileira que tem versos seminais nas minhas emoções. Até isso aceito. O Destino assim dá. Ao menos não tardou. Bis dat qui cito dat, dizia o meu professor de latim.
(3) Não costumo pôr à arte a canga da sexualidade. Confesso, contudo, que devo a uma obra minha, mas de maneira indireta, uma aventura amorosa. Foi em Barrow in Furness, que é um porto na costa ocidental da Inglaterra. Ali, certo dia, depois de um trabalho de arqueação, estava eu sentado sobre uma barrica, num cais abandonado. Acabava de escrever um soneto ― elo de uma cadeia de vários — em que o facto de estar sentado nessa barrica era um elemento de construção. Aproximou-se de mim uma rapariga, por assim dizer, ― aluno, segundo depois soube do liceu (High School) local ―, e entrou em conversa comigo. Viu que eu estava a escrever versos, e perguntou-me, como nestas ocasiões se costuma perguntar, se eu escrevia versos. Respondi, como nestes casos se responde, que não. A tarde, segundo a sua obrigação tradicional, caía lenta e suave. Deixei-a cair.
É conhecida a índole portuguesa e o carácter propício das horas, independentemente das índoles e dos portugueses. Foi isto uma aventura amorosa? Não chegarei a dizer-lhe. Foi uma tarde, num cais longe da Pátria; e hoje é, decerto, uma recordação a ouro fosco. Assim diríamos no «Orfeu»; assim não deixarei de lhe dizer agora. Que mais quer de mim, sr. Ferreira Gomes? A vida é extremamente complexa, e os acasos são, por vezes, necessários. O conto não tem moral, desde o princípio. O ouro fosco ficou húmido e a tarde caiu definitivamente.
(4) A única compensação moral que devo à literatura é a glória futura de ter escrito as minhas obras presentes.
(5) Não escrevi história nem histórias, e, por isso, não uso protagonistas, a não ser a variedade de pessoas que tenho sido. Nenhuma delas tem existência real, porque nada tem, cientificamente falando, existência «real». As coisas são sensações nossas, sem objetividade determinável, e eu, sensação também para mim mesmo, não posso crer que tenha mais realidade que as outras coisas. Sou, como toda a gente, uma ficção do «intermezzo», falso como as horas que passam e as obras que ficam, no rodopio subatómico deste inconcebível universo.
(6) Não tenho preocupação intelectual ao escrever. Tenho a única preocupação de emitir emoções, deixando à inteligência que se aguente com elas o melhor que puder. Tenho o desejo de ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos. Menos que tudo é nada para a alma que não cata piolhos na lógica, nem olha para as unhas na estética. Não podendo ser a própria força universal que envolve e penetra a rotação dos seres, quero ao menos ser uma consciência audível dela, um brilho momentâneo no choque noturno das coisas... O resto é delírio e podridão.
Creia-me cordialmente seu,
Álvaro de Campos.
Engenheiro naval e poeta do «Orpheu»
O nosso inquérito
Álvaro de Campos
A Informação , 17 de setembro de 1926.