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TRECHO
DO ʺLIVRO DO DESASOCEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA
AMO, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade baixa, e sobretudo aquelle socego que o contraste accentua na parte que o dia mergulha em mais bulicio. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfandega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfandega cessa, toda a linha separada dos caes quedos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjuncto. Vivo uma era anterior áquela em que vivo; goso de sentir me coevo de Cesario Verde, e tenho em mim, não outros versos como os d'elle, mas a substancia egual à dos versos que fôram dʼelle. Por alli arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a d'essas ruas. De dia ellas são cheias de um bulicio que não quere dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulicio que não quere dizer nada. Eu de dia sou nullo, e de noite sou eu. Não ha differença entre mim e as ruas para o lado da Alfandega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essencia das cousas. Ha um destino egual, porque é abstracto, para os homens e para as cousas — uma designação egualmente indifferente na algebra do mysterio.
Mas ha mais alguma cousa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma á mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma cousa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus proprios sonhos se me erguem em cousas, não para me substituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fóra, como o electrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que cousa, que se destaca, toada arabe, como um repuxo subito, da monotonia do entardecer!
FERNANDO PESSOA
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TRECHO
DO ʺLIVRO DO DESASSOSSEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA
AMO, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!
FERNANDO PESSOA
Do ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺAmo pelas tardes demoradas de verãoʺ)
Bernardo Soares
A Revista da Solução Editora 2, março de 1929, p. 25.