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Régie, monopólio, liberdade

Fernando Pessoa

Revista de Comércio e Contabilidade 2, 25 de março de 1926, pp. 61-64.

A Informação , 31 de julho e 1 de agosto de 1926, pp. 1-3.

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    RÉGIE, MONOPOLIO, LIBERDADE

    A questão chamada dos tabacos veio trazer de novo á superficie o problema batido e debatido de se se deve preferir o sistema de administração de Estado (que no caso particular dos tabacos é uso denominar Régie), o sistema de monopolio privado, ou o sistema de concorrencia livre.

    Evidentemente, em qualquer desta ordem ha três pontos a considerar, ou três interesses ― os do Estado, os do comercio ou industria, e os do consumidor. E todos os problemas particulares deste genero se apresentam de diverso modo no que respeita a cada um desses interesses.

    Não é, porém, nosso intuito ― nem, dada a indole desta Revista, poderia ser ― o tratar particularmente do problema do regime dos tabacos em Portugal. O que pretendemos é servir-nos da oportunidade oferecida por ele ou, melhor, pelo estado agudo dele, para estudar a questão na sua absoluta generalidade.

    Limitar-nos-hemos pois, a estudar imparcialmente ― ou tão imparcialmente quanto humanamente seja possivel ― as vantagens e as desvantagens dos três sistemas de administração comercial e industrial. Nada mais.

    Considerada em si mesma, a administração de Estado é o pior de todos os sistemas imaginaveis para qualquer das três entidades com que essa administração implica.

    De todas as coisas «organisadas», é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal-organisada de todas. E a razão é evidente. A sociologia é uma pseudo-sciencia, ou, pelo menos, uma proto-sciencia. Não ha sciencia social, ou, pelo menos, não a ha por enquanto. Em materia social ha só opiniões, tão pouco definitivas e scientificas como as que ha em materia artistica ou literaria. Desconhecemos por completo que leis regem as sociedades, ignoramos por inteiro o que seja, em sua essencia, uma sociedade, porquê e como nasce, segundo que leis se desenvolve, porquê e de que modo se definha e morre. Ninguem ainda sequer definiu satisfatoriamente «sociedade», «progresso» ou «civilização». A humanidade tem-se entretido ― desde a formação, na Grecia antiga, do espirito critico ― a idear sistemas politicos e sociais «definitivos» em materia tão flutuante e incerta como a vida, em assunto ainda tão fóra da sciencia como a sociedade.

    [62]

    É preciso, contudo, que as sociedades, sejam o que fôrem, se governem; e forçoso que haja um Estado de qualquer espécie. E esse Estado é chamado a governar uma coisa que não sabe ao certo o que é, a legislar para uma entidade cuja essencia desconhece, a orientar um agrupamento que segue (sem duvida) uma orientação vital que se ignora, derivada de leis naturais que tambem se ignoram, e que póde, portanto, ser bem diferente daquela que o Estado pretende imprimir-lhe. Assim o mais honesto e desinteressado dos politicos e dos governantes nunca póde saber com certeza se não está arruinando um país ou uma sociedade com os principios e leis, que julga sãos, com que se propõe salvá-la ou conservá-la.

    A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acôrdo com os nossos sentimentos de equidade, póde ser contraria a qualquer lei natural, pois póde bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa «justiça», e em nada se ajustem ás nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis ― por exemplo, a da hereditariedade ― a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tiranica. Ora não ha certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida individual. Ninguem ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fôsse um bem social. Ninguem o provou, porque ninguem o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguem o póde dizer, porque ninguem sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades; e essa póde, portanto, ser uma delas. A velha afirmação de Aristoteles ― aliás tão pouco propenso a soluções «tiranicas» ― de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, póde dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não ha com que deitá-la abaixo. A essencia do que em politica se chama «conservantismo» nasce directamente desta nossa ignorancia, consiste no receio de infringir leis desconhecidas em materia onde todas as leis são desconhecidas.

    É, pois, evidente que quanto mais o Estado intervem na vida espontanea da sociedade, mais risco ha, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando; mais risco ha, se não mais certeza, de estar entrando em conflito com leis naturais, com leis fundamentais da vida, que como ninguem as conhece, ninguem tem a certeza de não estar violando. E a violação das leis naturais tem sanções automaticas a que ninguem tem o poder de esquivar-se. Pretendendo corrigir a Natureza, pretendemos realmente substituí-la, o que é impossivel e resulta no nosso proprio aniquilamento e no do nosso esforço.

    Os riscos, e pois os prejuizos, da administração de Estado estão eviden [63]temente na razão directa da extensão com que essa administração intervem na vida social espontanea. Maximos nos regimes reformadores, que pretendem organisar de novo uma coisa chamada «sociedade», que não sabem o que é nem a que leis obedece, esses riscos e essa extensão baixam á medida que a administração de Estado se aproxima da estrita actividade fiscal e tributaria que só ao Estado compete, porque só ao Estado póde competir. Mas não é a esta actividade propria e restrita que nos referimos quando examinamos a questão de administração de Estado: referimo-nos a essa administração em geral, e, particularmente, á administração pelo Estado de comercios ou industrias que pódem não ser administrados por ele. Pelas razões já vistas, é evidente que, na proporção em que esses comercios ou industrias fôrem importantes, e implicarem com a vida da sociedade ou da nação, nessa mesma proporção será prejudicial a administração deles pelo Estado. E se essas industrias ou comercios não tiverem importancia nacional ou social, não ha rasão para que o Estado queira ocupar-se deles. Em qualquer dos casos, pois, a administração do Estado é um êrro: num caso é inevitavelmente nociva, no outro francamente desnecessaria.

    Viciosa, assim, em sua propria essencia, a administração de Estado sofre ainda a viciação proveniente de ser exercida por e através do tipo de individuo que em geral fórma o funcionario publico. Salvo para as carreiras militares ― em que ha abertas especiais para a ambição e para a energia ― nenhum homem de verdadeira energia e ambição entra para o serviço fixo do Estado. Não entra porque não ha ali caminho para a energia, e muito menos para a ambição. O novelista americano Nathaniel Hawthorne marca isto com extraordinario relevo no prefacio do seu romance A Letra Encarnada . Formado, pois, de um conjunto de homens necessariamente inferiores nas suas qualidades de acção, o serviço publico civil resulta universalmente incompetente e desleixado, e, derivadamente, em sociedades eivadas de qualquer virus corruptor, mais corrupto que qualquer outro conjunto.

    Estes elementos fixos, assim tão pouco aptos para o desempenho competente de qualquer função administrativa, ainda que subordinada, são dirigidos, nos estados modernos, por politicos profissionais ― isto é, por individuos que subiram ao poder por circunstancias varias, em que a competencia administrativa não entra, nem tem que entrar. Aliás, quem tem uma notavel competencia administrativa emprega hoje a sua actividade em campos mais apropriados que a governação dos países. E se em quasi todas as nações assim acontece, assim sobretudo sucede naquelas onde a instabilidade [64]governativa é acentuada; nenhum administrador verdadeiro se sujeita a administrar com risco de descontinuidade e interrupção.

    A administração de Estado só é admissivel quando é inevitavel, e só é inevitavel num caso anormal, a guerra, e, ainda assim, só para certas industrias ou comercios. Como, porém, nas sociedades chamadas civilizadas, as actividades normais são todas de ordem pacifica, e a guerra, motivando a suspensão de actividades pacificas, implica a suspensão da propria essencia do que constitui uma sociedade civilizada, o facto de que o Estado só póde utilmente administrar um comercio ou uma industria em tempo de guerra é mais um argumento contra o exercicio normal pelo estado desse comercio ou déssa industria.

    A administração pelo Estado de uma industria ou de um comercio é prejudicial ao Estado, porque todo o comercio ou industria mal administrado é prejudicial a si mesmo; e é prejudicial á industria ou ao comercio particular, que por ela fica proíbido. Só póde, em certos casos, beneficiar o consumidor; porque póde bem ser que o produto vendido o seja em condições anormalmente favoraveis. Ha serviços de Estado, em muitos países, que trabalham com «déficit» previsto para beneficiar o consumidor. Como, porém, esse consumidor é ao mesmo tempo contribuinte, o que o Estado lhe dá com a mão direita, terá fatalmente que tirar-lho com a esquerda. O consumidor é, no fim, quem paga o que deixa de pagar.

    Seria ridiculo e indesculpavel que, depois destas considerações essenciais, gastassemos a paciencia do leitor com o exame da mitologia de argumentos que se têm apresentado em defeza da «nacionalização», «socialização», ou administração de Estado. Nenhum desses argumentos, proprios em geral só para contos humoristicos ou discursos politicos, póde prevalecer contra as considerações organicas que apresentámos.

    Sabemos bem, é certo, que a administração de Estado não causa hoje o horror que causava no seculo que passou. Sabemos bem que está hoje em curso o ataque ao individualismo economico do seculo dezanove. Mas tambem sabemos que, assim como ha modas no vestuario, assim as ha nas ideias. Onde não ha sciencia, nada leva de vantagem a ideia de hoje sobre a ideia de ontem, porque não representa um acrescimo de conhecimento. E em materia social ainda não ha sciencia.

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    Os monopolios são de duas ordens ― os monopolios artificiais e legais, isto é, concedidos pelo Estado, por lei ou contracto; e os monopolios naturais e espontaneos, isto é, formados, em liberdade de comercio ou industria, pela concentração de empresas, ou pela absorção de umas por outras ou de varias por uma só. Os chamados trusts são um caso flagrante deste ultimo tipo de monopolio.

    Trataremos agora dos monopolios legais ― dos que o Estado concede ou autorisa por contracto ou lei. Dos monopolios espontaneos, como são produtos especiais da liberdade de comercio e de industria, trataremos quando tratarmos desta.

    O monopolio legal é ao mesmo tempo, analogo á administração de Estado e diferente dela. Ha, evidentemente, varias especies e graus de monopolios legais, como, aliás, dos outros; e consoante essas especies e esses graus, se acentuam ou se esbatem as analogias e as diferenças entre eles e a administração de Estado. Trataremos, porém, do assunto com o maximo possivel de generalização. A administração de Estado tem caracteristicos proprios, por ser de Estado; são os que já delineámos. Mas, aparte, esses caracteristicos, apresenta ela os que são comuns a todas as emprezas que não têm que recear concorrencia: a artificialidade economica, porque vivem uma vida economica claustral, separada dos contactos e choques com os fenomenos economicos gerais; a incuria tecnica, porque estão economicamente garantidas; a tendencia para o abuso, porque para o abuso tende instintivamente todo o homem, ou toda a instituição humana, logo que não exista um travão facil, rapido e natural para os seus actos. É evidentemente por estes caracteristicos que os monopolios ― e sobretudo os legais, em que a garantia é absoluta ― têm analogia com a administração de Estado.

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    A par destas analogias com a administração de Estado, apresentam os monopolios certas diferenças dela.

    A primeira diferença consiste na especialização. Um monopolio comercial ou industrial é exercido por uma empreza exclusivamente comercial ou industrial; e como em geral a materia de um monopolio é especial e importante, a empreza que o detem, não se dedica ordinariamente a qualquer outro comercio ou industria. O Estado, ao contrario, nem exerce tipicamente as funções comerciais ou industriais, nem póde exercer exclusivamente essas funções. Ora a especialisação tende a atenuar, nos monopolios, a incuria tecnica que a segurança economica neles estimula.

    A segunda diferença consiste na temporaridade. Salvo em casos especiais ― e como tais, em geral, postos explicitamente, ― as funções e actividades do Estado, e, sobretudo, as administrativas, têm um caracter de permanencia, de perpetuidade. Os monopolios, ao contrario, têm um praso; são concedidos por um certo, e determinado, tempo. A sua segurança economica sofre assim, porque a sofre no tempo, uma certa limitação; de absoluta torna-se relativa, e assim o seu principal efeito ― a artificialidade economica ― perde tambem o seu caracter absoluto, e em certo modo, e até certo ponto, se diminui e limita. Por outro lado, porém, a temporaridade dos monopolios agrava aquela «tendencia para o abuso» a que já nos referimos. Todos tendem para abusar; e quem está em condições de poder fazê-lo, fá-lo-ha com mais certeza e violencia se tiver um praso marcado para a possibilidade desse abuso. Quanto menor fôr o praso, maior tenderá a ser o abuso. Acresce que as emprezas comerciais e industriais existem especialmente para auferir lucros, por meio de um serviço qualquer prestado ao publico; quanto menor fôr o praso que lhes é dado para auferir esses lucros, maiores lucros farão eles por auferir em cada ano desse praso. A tendencia humana para abusar atinge economicamente o seu máximo no regime de monopolio.

    A terceira diferença consiste na separação das funções administrativas e fiscais. Na administração de Estado é o Estado o fiscal da sua propria administração. Ora, isto é duplamente mau. É mau, em primeiro lugar, porque a fiscalisação do Estado participa da imperfeição organica (já por nós claramente exposta) dessa instituição necessaria. É mau, em segundo lugar, porque ninguem ― e sobretudo o Estado, entidade anonima e dispersa ― é bom fiscal de si mesmo. Nos monopolios legais, porém, separam-se a administração e a fiscalisação: a primeira fica no monopolio, a segunda fica no Estado. Um dos males, portanto, desaparece imediatamente. E, se a fiscalisação do Estado não fôr de uma incompetencia extraordinaria, ou de uma [76]corrupção extrema, de algum modo se poderá atenuar a tendencia para o abuso, que, como vimos, é absolutamente organica nos monopolios.

    Tratado assim, em sua essencia e generalidade, o regime do monopolio legal, passamos a ocupar-nos do da liberdade de comercio ou industria.

    O regime de liberdade apresenta, a nosso ver, cinco caracteristicos: três que são vantagens, dois que são desvantagens. É natural, estimula a proficiencia tecnica, e tende a manter os preços no minimo possivel: estas são as vantagens. É essencialmente incoordenado e instavel, e, quando degenera, torna-se uma tirania pior que a de qualquer outro sistema: estas são as desvantagens.

    O regime de liberdade é natural porque deixa as forças economicas ― cuja natureza e leis desconhecemos ― entregues a si mesmas; não as complicamos, pois como a nossa intervenção ignorante, dificilmente beneficia ― a não ser por acaso ―, como toda a intervenção ignorante. O regime de liberdade, determinando e estimulando a concorrencia, fórça cada concorrente, a aperfeiçoar os seus serviços comerciais ou industriais, para levar vantagem aos outros. Sob outro aspecto, essa mesma concorrencia conduz naturalmente cada concorrente a não elevar os seus preços para além dos outros, pois que seria o primeiro a perder com isso. Este aspecto da questão é trivial e conhecido.

    O regime de liberdade é incoordenado porque é individualisante, e é instavel porque é incoordenado. O regime de concorrencia põe cada concorrente em oposição, não só a cada um dos outros, mas ao conjunto de todos os outros. A congregação ou coordenação de esforços a dentro de cada industria ou de cada comercio torna-se dificil, e, na proporção em que se torna dificil, se torna dificil aquele especial aperfeiçoamento dessa industria ou desse comercio que nasce dele, ou dela, tomar consciencia plena de si mesmo, o que só pode fazer se os seus elementos componentes e representativos não se repelirem uns aos outros. Além disto, os problemas comerciais e industriais não surgem em abstrato, mas em relação a entidades sociais chamadas nações; e onde uma concorrencia nacional se sobreponha a uma concorrencia individual, a pulverisação oriunda do regime livre deixa desprevenida uma industria ou um comercio, e uma nação. Acresce, como indicámos, que o que é incoordenado é instavel. A certos incidentes ou contingentes economicos, que particularmente ou especialmente afectem um certo comercio ou uma certa industria, esse comercio, ou essa industria, só pode fazer face se tiver um conjunto, se puder formar um conjunto, com que lhe possa fazer face. [77]E, como os incidentes e contingencias economicos, são, como todos fenomenos sociais, complexos e compostos de elementos varios, um conjunto inorganico é instabilisado imediatamente pelo embate deles, e os elementos incoordenados, que compõem esse conjunto, agitados em sentidos diferentes pelas forças diferentes de que cada incidente ou contingencia se compõe.

    Mas, se a incoordenação social da liberdade economica é um defeito, maior, socialmente, é o defeito que nasce de essa liberdade se coordenar. Como o regime de liberdade economica é essencialmente incoordenado, a coordenação só se fórma nele por uma degenerescencia do seu principio basilar. Essa coordenação, ou essa degenerescencia, dá-se de uma, de duas maneiras ― a formação de monopolios espontaneos, ou a sindicação. Ambos estes sistemas nascem do regime da liberdade; ambos uma vez nascidos o passam a aluir nos seus fundamentos. Foi porisso que aludimos a estes sistemas como «a degenerescencia» do regime de liberdade. Quem não sai aos seus, degenera...

    O monopolio espontaneo, ou natural, de que os chamados trusts são o exemplo tipico, forma-se por agrupamento de emprezas, ou por absorpção de umas por outras ou varias por uma só. O monopolio espontaneo apresenta os caracteristicos que já indicámos como os do monopolio legal, porém, com duas formidaveis excepções: como é natural, e nasce do proprio jogo das forças economicas, tem a força organica, a brutalidade intima, de qualquer força da natureza; como não é legal, não está sujeito a fiscalisação, boa ou má, de especie alguma. Desaba sobre a sociedade como uma tempestade ou um cataclismo; e os governos, ou hão de deixá-lo esmagá-la, ou, se o quizerem combater, hão-de colocar-se em situação falsa, pois, não havendo nele nada de ilegal, terão, para o combater, que saír, eles, da legalidade.

    A sindicação, saída da liberdade como o monopolio espontaneo, é igualmente inimiga dela, e sobretudo das vantagens dela; é-o com menos brutalidade e evidente, e, por isso mesmo, com mais segurança. Um sindicato ou associação de classe ― comercial, industrial, ou de outra qualquer especie ― nasce aparentemente de uma congregação livre dos individuos que compõem essa classe; como, porém, quem não entrar para esse sindicato fica sujeito a desvantagens de diversa ordem, a sindicação é realmente obrigatoria. Uma vez constituido o sindicato, passam a dominar nele ― parte minima que se substitui ao todo ― não os profissionais (comerciantes, industriais, ou o que quer que sejam) mais habeis e representativos, mas os individuos simplesmente mais aptos e competentes para a vida sindical, isto é, para a [78]politica leitoral dessas agremiações. Todo o sindicato é, social e profissionalmente, um mito. Mas incisivamente ainda: nenhuma associação de classe é uma associação de classe.

    No caso especial da sindicação na industria e no comercio, o resultado é desaparecerem todas as vantagens da concorrencia livre, sem se adquirir qualquer especie de coordenação util ou benefica. O caracter natural do regime livre atenua-se, porque surge em meio dele este elemento estranho, e essencialmente oposto á liberdade. A vantagem publica da não-elevação desnecessaria de preços, desaparece por completo, pois, por haver sindicato, é facil a combinação e a «frente-unica» contra o publico, e, por esse sindicato ser tiranico, é facil compelir á aceitação de novas tabelas os profissionais pouco dispostos a aceitá-las. Quanto ao aperfeiçoamento dos serviços comerciais ou industriais, que a concorrencia estimula, o sindicato diminuiu na propria proporção em que diminue o espirito de concorrencia, e, como nunca é dirigido por grandes profissionais, mas por politicos de dentro da profissão, pouco póde animar directamente a tecnica da industria ou do comercio que representa. Nem resulta da acção do sindicato qualquer coordenação util, que compense estas desvantagens todas. Não tendo uma verdadeira base de liberdade, o sindicato não coordena a classe como individuos; não tendo nunca uma direcção profissionalmente superior, o sindicato não coordena a classe como profissionais; não tendo outro fim senão o profissional e o economico, o sindicato não coordena a classe como cidadãos.

    Expuzémos successivamente, analisando-os, o que são, em suas operações economicas e sociais, os regimes de administração de Estado, de monopolio, e de liberdade de comercio e industria. Fizémos o possivel para expôr imparcialmente as vantagens e desvantagens inerentes a cada um, ou ás fórmas que cada um póde assumir. Repetimos, porém, que essas vantagens e desvantagens são as que pertencem á propria essencia e generalidade de cada sistema. Quanto ás vantagens e desvantagens da aplicação de cada um a este ou áquele caso particular, depende do caso particular. E nós não nos dispuzémos a estudar caso particular nenhum.

    Este texto foi republicado com o mesmo título, mas sem indicação de autoria, no jornal A Informação nos dias 31 de julho e 1 de agosto de 1926. Antes do texto encontra-se a seguinte nota:ʺDa interesante «Revista de Comercio e Contabilidade», transcrevemos hoje parte de um estudado trabalho sobre os três sistemas aplicaveis á economia publica, com o sem intervenção do estadoʺ. Reproduzimos o facsimile de ambas publicações
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    RÉGIE, MONOPÓLIO, LIBERDADE

    A questão chamada dos tabacos veio trazer de novo à superfície o problema batido e debatido de se se deve preferir o sistema de administração de Estado (que no caso particular dos tabacos é uso denominar Régie), o sistema de monopólio privado, ou o sistema de concorrência livre.

    Evidentemente, em qualquer desta ordem há três pontos a considerar, ou três interesses ― os do Estado, os do comércio ou indústria, e os do consumidor. E todos os problemas particulares deste género se apresentam de diverso modo no que respeita a cada um desses interesses.

    Não é, porém, nosso intuito ― nem, dada a índole desta Revista, poderia ser ― o tratar particularmente do problema do regime dos tabacos em Portugal. O que pretendemos é servir-nos da oportunidade oferecida por ele ou, melhor, pelo estado agudo dele, para estudar a questão na sua absoluta generalidade.

    Limitar-nos-emos pois, a estudar imparcialmente ― ou tão imparcialmente quanto humanamente seja possível ― as vantagens e as desvantagens dos três sistemas de administração comercial e industrial. Nada mais.

    Considerada em si mesma, a administração de Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis para qualquer das três entidades com que essa administração implica.

    De todas as coisas «organizadas», é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal-organizada de todas. E a razão é evidente. A sociologia é uma pseudociência, ou, pelo menos, uma protociência. Não há ciência social, ou, pelo menos, não a há por enquanto. Em matéria social há só opiniões, tão pouco definitivas e científicas como as que há em matéria artística ou literária. Desconhecemos por completo que leis regem as sociedades, ignoramos por inteiro o que seja, em sua essência, uma sociedade, porquê e como nasce, segundo que leis se desenvolve, porquê e de que modo se definha e morre. Ninguém ainda sequer definiu satisfatoriamente «sociedade», «progresso» ou «civilização». A humanidade tem-se entretido ― desde a formação, na Grécia antiga, do espírito crítico ― a idear sistemas políticos e sociais «definitivos» em matéria tão flutuante e incerta como a vida, em assunto ainda tão fora da ciência como a sociedade.

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    É preciso, contudo, que as sociedades, sejam o que forem, se governem; e forçoso que haja um Estado de qualquer espécie. E esse Estado é chamado a governar uma coisa que não sabe ao certo o que é, a legislar para uma entidade cuja essência desconhece, a orientar um agrupamento que segue (sem dúvida) uma orientação vital que se ignora, derivada de leis naturais que também se ignoram, e que pode, portanto, ser bem diferente daquela que o Estado pretende imprimir-lhe. Assim o mais honesto e desinteressado dos políticos e dos governantes nunca pode saber com certeza se não está arruinando um país ou uma sociedade com os princípios e leis, que julga sãos, com que se propõe salvá-la ou conservá-la.

    A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa «justiça», e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis ― por exemplo, a da hereditariedade ― a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. Ora não há certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida individual. Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades; e essa pode, portanto, ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles ― aliás tão pouco propenso a soluções «tirânicas» ― de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo. A essência do que em política se chama «conservantismo» nasce diretamente desta nossa ignorância, consiste no receio de infringir leis desconhecidas em matéria onde todas as leis são desconhecidas.

    É, pois, evidente que quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando; mais risco há, se não mais certeza, de estar entrando em conflito com leis naturais, com leis fundamentais da vida, que como ninguém as conhece, ninguém tem a certeza de não estar violando. E a violação das leis naturais tem sanções automáticas a que ninguém tem o poder de esquivar-se. Pretendendo corrigir a Natureza, pretendemos realmente substituí-la, o que é impossível e resulta no nosso próprio aniquilamento e no do nosso esforço.

    Os riscos, e pois os prejuízos, da administração de Estado estão eviden [63]temente na razão direta da extensão com que essa administração intervém na vida social espontânea. Máximos nos regimes reformadores, que pretendem organizar de novo uma coisa chamada «sociedade», que não sabem o que é nem a que leis obedece, esses riscos e essa extensão baixam à medida que a administração de Estado se aproxima da estrita atividade fiscal e tributária que só ao Estado compete, porque só ao Estado pode competir. Mas não é a esta atividade própria e restrita que nos referimos quando examinamos a questão de administração de Estado: referimo-nos a essa administração em geral, e, particularmente, à administração pelo Estado de comércios ou indústrias que podem não ser administrados por ele. Pelas razões já vistas, é evidente que, na proporção em que esses comércios ou indústrias forem importantes, e implicarem com a vida da sociedade ou da nação, nessa mesma proporção será prejudicial a administração deles pelo Estado. E se essas indústrias ou comércios não tiverem importância nacional ou social, não há razão para que o Estado queira ocupar-se deles. Em qualquer dos casos, pois, a administração do Estado é um erro: num caso é inevitavelmente nociva, no outro francamente desnecessária.

    Viciosa, assim, em sua própria essência, a administração de Estado sofre ainda a viciação proveniente de ser exercida por e através do tipo de indivíduo que em geral forma o funcionário público. Salvo para as carreiras militares ― em que há abertas especiais para a ambição e para a energia ― nenhum homem de verdadeira energia e ambição entra para o serviço fixo do Estado. Não entra porque não há ali caminho para a energia, e muito menos para a ambição. O novelista americano Nathaniel Hawthorne marca isto com extraordinário relevo no prefácio do seu romance A Letra Encarnada. Formado, pois, de um conjunto de homens necessariamente inferiores nas suas qualidades de ação, o serviço público civil resulta universalmente incompetente e desleixado, e, derivadamente, em sociedades eivadas de qualquer vírus corruptor, mais corrupto que qualquer outro conjunto.

    Estes elementos fixos, assim tão pouco aptos para o desempenho competente de qualquer função administrativa, ainda que subordinada, são dirigidos, nos estados modernos, por políticos profissionais ― isto é, por indivíduos que subiram ao poder por circunstâncias várias, em que a competência administrativa não entra, nem tem que entrar. Aliás, quem tem uma notável competência administrativa emprega hoje a sua atividade em campos mais apropriados que a governação dos países. E se em quase todas as nações assim acontece, assim sobretudo sucede naquelas onde a instabilidade [64]governativa é acentuada; nenhum administrador verdadeiro se sujeita a administrar com risco de descontinuidade e interrupção.

    A administração de Estado só é admissível quando é inevitável, e só é inevitável num caso anormal, a guerra, e, ainda assim, só para certas indústrias ou comércios. Como, porém, nas sociedades chamadas civilizadas, as atividades normais são todas de ordem pacífica, e a guerra, motivando a suspensão de atividades pacíficas, implica a suspensão da própria essência do que constitui uma sociedade civilizada, o facto de que o Estado só pode utilmente administrar um comércio ou uma indústria em tempo de guerra é mais um argumento contra o exercício normal pelo estado desse comércio ou dessa indústria.

    A administração pelo Estado de uma indústria ou de um comércio é prejudicial ao Estado, porque todo o comércio ou indústria mal administrado é prejudicial a si mesmo; e é prejudicial à indústria ou ao comércio particular, que por ela fica proibido. Só pode, em certos casos, beneficiar o consumidor; porque pode bem ser que o produto vendido o seja em condições anormalmente favoráveis. Há serviços de Estado, em muitos países, que trabalham com «déficit» previsto para beneficiar o consumidor. Como, porém, esse consumidor é ao mesmo tempo contribuinte, o que o Estado lhe dá com a mão direita, terá fatalmente que tirar-lho com a esquerda. O consumidor é, no fim, quem paga o que deixa de pagar.

    Seria ridículo e indesculpável que, depois destas considerações essenciais, gastássemos a paciência do leitor com o exame da mitologia de argumentos que se têm apresentado em defesa da «nacionalização», «socialização», ou administração de Estado. Nenhum desses argumentos, próprios em geral só para contos humorísticos ou discursos políticos, pode prevalecer contra as considerações orgânicas que apresentámos.

    Sabemos bem, é certo, que a administração de Estado não causa hoje o horror que causava no século que passou. Sabemos bem que está hoje em curso o ataque ao individualismo económico do século dezanove. Mas também sabemos que, assim como há modas no vestuário, assim as há nas ideias. Onde não há ciência, nada leva de vantagem a ideia de hoje sobre a ideia de ontem, porque não representa um acréscimo de conhecimento. E em matéria social ainda não há ciência.

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    Os monopólios são de duas ordens ― os monopólios artificiais e legais, isto é, concedidos pelo Estado, por lei ou contrato; e os monopólios naturais e espontâneos, isto é, formados, em liberdade de comércio ou indústria, pela concentração de empresas, ou pela absorção de umas por outras ou de várias por uma só. Os chamados trusts são um caso flagrante deste último tipo de monopólio.

    Trataremos agora dos monopólios legais ― dos que o Estado concede ou autoriza por contrato ou lei. Dos monopólios espontâneos, como são produtos especiais da liberdade de comércio e de indústria, trataremos quando tratarmos desta.

    O monopólio legal é ao mesmo tempo, análogo à administração de Estado e diferente dela. Há, evidentemente, várias espécies e graus de monopólios legais, como, aliás, dos outros; e consoante essas espécies e esses graus, se acentuam ou se esbatem as analogias e as diferenças entre eles e a administração de Estado. Trataremos, porém, do assunto com o máximo possível de generalização. A administração de Estado tem característicos próprios, por ser de Estado; são os que já delineámos. Mas, à parte, esses característicos, apresenta ela os que são comuns a todas as empresas que não têm que recear concorrência: a artificialidade económica, porque vivem uma vida económica claustral, separada dos contactos e choques com os fenómenos económicos gerais; a incúria técnica, porque estão economicamente garantidas; a tendência para o abuso, porque para o abuso tende instintivamente todo o homem, ou toda a instituição humana, logo que não exista um travão fácil, rápido e natural para os seus atos. É evidentemente por estes característicos que os monopólios ― e sobretudo os legais, em que a garantia é absoluta ― têm analogia com a administração de Estado.

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    A par destas analogias com a administração de Estado, apresentam os monopólios certas diferenças dela.

    A primeira diferença consiste na especialização. Um monopólio comercial ou industrial é exercido por uma empresa exclusivamente comercial ou industrial; e como em geral a matéria de um monopólio é especial e importante, a empresa que o detém, não se dedica ordinariamente a qualquer outro comércio ou indústria. O Estado, ao contrário, nem exerce tipicamente as funções comerciais ou industriais, nem pode exercer exclusivamente essas funções. Ora a especialização tende a atenuar, nos monopólios, a incúria técnica que a segurança económica neles estimula.

    A segunda diferença consiste na temporaridade. Salvo em casos especiais ― e como tais, em geral, postos explicitamente, ― as funções e atividades do Estado, e, sobretudo, as administrativas, têm um carácter de permanência, de perpetuidade. Os monopólios, ao contrário, têm um prazo; são concedidos por um certo, e determinado, tempo. A sua segurança económica sofre assim, porque a sofre no tempo, uma certa limitação; de absoluta torna-se relativa, e assim o seu principal efeito ― a artificialidade económica ― perde também o seu carácter absoluto, e em certo modo, e até certo ponto, se diminui e limita. Por outro lado, porém, a temporaridade dos monopólios agrava aquela «tendência para o abuso» a que já nos referimos. Todos tendem para abusar; e quem está em condições de poder fazê-lo, fá-lo-á com mais certeza e violência se tiver um prazo marcado para a possibilidade desse abuso. Quanto menor for o prazo, maior tenderá a ser o abuso. Acresce que as empresas comerciais e industriais existem especialmente para auferir lucros, por meio de um serviço qualquer prestado ao público; quanto menor for o prazo que lhes é dado para auferir esses lucros, maiores lucros farão eles por auferir em cada ano desse praso. A tendência humana para abusar atinge economicamente o seu máximo no regime de monopólio.

    A terceira diferença consiste na separação das funções administrativas e fiscais. Na administração de Estado é o Estado o fiscal da sua própria administração. Ora, isto é duplamente mau. É mau, em primeiro lugar, porque a fiscalização do Estado participa da imperfeição orgânica (já por nós claramente exposta) dessa instituição necessária. É mau, em segundo lugar, porque ninguém ― e sobretudo o Estado, entidade anónima e dispersa ― é bom fiscal de si mesmo. Nos monopólios legais, porém, separam-se a administração e a fiscalização: a primeira fica no monopólio, a segunda fica no Estado. Um dos males, portanto, desaparece imediatamente. E, se a fiscalização do Estado não for de uma incompetência extraordinária, ou de uma [76]corrupção extrema, de algum modo se poderá atenuar a tendência para o abuso, que, como vimos, é absolutamente orgânica nos monopólios.

    Tratado assim, em sua essência e generalidade, o regime do monopólio legal, passamos a ocupar-nos do da liberdade de comércio ou indústria.

    O regime de liberdade apresenta, a nosso ver, cinco característicos: três que são vantagens, dois que são desvantagens. É natural, estimula a proficiência técnica, e tende a manter os preços no mínimo possível: estas são as vantagens. É essencialmente incoordenado e instável, e, quando degenera, torna-se uma tirania pior que a de qualquer outro sistema: estas são as desvantagens.

    O regime de liberdade é natural porque deixa as forças económicas ― cuja natureza e leis desconhecemos ― entregues a si mesmas; não as complicamos, pois como a nossa intervenção ignorante, dificilmente beneficia ― a não ser por acaso ―, como toda a intervenção ignorante. O regime de liberdade, determinando e estimulando a concorrência, força cada concorrente, a aperfeiçoar os seus serviços comerciais ou industriais, para levar vantagem aos outros. Sob outro aspeto, essa mesma concorrência conduz naturalmente cada concorrente a não elevar os seus preços para além dos outros, pois que seria o primeiro a perder com isso. Este aspeto da questão é trivial e conhecido.

    O regime de liberdade é incoordenado porque é individualizante, e é instável porque é incoordenado. O regime de concorrência põe cada concorrente em oposição, não só a cada um dos outros, mas ao conjunto de todos os outros. A congregação ou coordenação de esforços a dentro de cada indústria ou de cada comércio torna-se difícil, e, na proporção em que se torna difícil, se torna difícil aquele especial aperfeiçoamento dessa indústria ou desse comércio que nasce dele, ou dela, tomar consciência plena de si mesmo, o que só pode fazer se os seus elementos componentes e representativos não se repelirem uns aos outros. Além disto, os problemas comerciais e industriais não surgem em abstrato, mas em relação a entidades sociais chamadas nações; e onde uma concorrência nacional se sobreponha a uma concorrência individual, a pulverização oriunda do regime livre deixa desprevenida uma indústria ou um comércio, e uma nação. Acresce, como indicámos, que o que é incoordenado é instável. A certos incidentes ou contingentes económicos, que particularmente ou especialmente afetem um certo comércio ou uma certa indústria, esse comércio, ou essa indústria, só pode fazer face se tiver um conjunto, se puder formar um conjunto, com que lhe possa fazer face. [77]E, como os incidentes e contingências económicos, são, como todos fenómenos sociais, complexos e compostos de elementos vários, um conjunto inorgânico é instabilizado imediatamente pelo embate deles, e os elementos incoordenados, que compõem esse conjunto, agitados em sentidos diferentes pelas forças diferentes de que cada incidente ou contingência se compõe.

    Mas, se a incoordenação social da liberdade económica é um defeito, maior, socialmente, é o defeito que nasce de essa liberdade se coordenar. Como o regime de liberdade económica é essencialmente incoordenado, a coordenação só se forma nele por uma degenerescência do seu princípio basilar. Essa coordenação, ou essa degenerescência, dá-se de uma, de duas maneiras ― a formação de monopólios espontâneos, ou a sindicação. Ambos estes sistemas nascem do regime da liberdade; ambos uma vez nascidos o passam a aluir nos seus fundamentos. Foi por isso que aludimos a estes sistemas como «a degenerescência» do regime de liberdade. Quem não sai aos seus, degenera...

    O monopólio espontâneo, ou natural, de que os chamados trusts são o exemplo típico, forma-se por agrupamento de empresas, ou por absorção de umas por outras ou várias por uma só. O monopólio espontâneo apresenta os característicos que já indicámos como os do monopólio legal, porém, com duas formidáveis exceções: como é natural, e nasce do próprio jogo das forças económicas, tem a força orgânica, a brutalidade íntima, de qualquer força da natureza; como não é legal, não está sujeito a fiscalização, boa ou má, de espécie alguma. Desaba sobre a sociedade como uma tempestade ou um cataclismo; e os governos, ou hão de deixá-lo esmagá-la, ou, se o quiserem combater, hão de colocar-se em situação falsa, pois, não havendo nele nada de ilegal, terão, para o combater, que sair, eles, da legalidade.

    A sindicação, saída da liberdade como o monopólio espontâneo, é igualmente inimiga dela, e sobretudo das vantagens dela; é-o com menos brutalidade e evidente, e, por isso mesmo, com mais segurança. Um sindicato ou associação de classe ― comercial, industrial, ou de outra qualquer espécie ― nasce aparentemente de uma congregação livre dos indivíduos que compõem essa classe; como, porém, quem não entrar para esse sindicato fica sujeito a desvantagens de diversa ordem, a sindicação é realmente obrigatória. Uma vez constituído o sindicato, passam a dominar nele ― parte mínima que se substitui ao todo ― não os profissionais (comerciantes, industriais, ou o que quer que sejam) mais hábeis e representativos, mas os indivíduos simplesmente mais aptos e competentes para a vida sindical, isto é, para a [78]política eleitoral dessas agremiações. Todo o sindicato é, social e profissionalmente, um mito. Mas incisivamente ainda: nenhuma associação de classe é uma associação de classe.

    No caso especial da sindicação na indústria e no comércio, o resultado é desaparecerem todas as vantagens da concorrência livre, sem se adquirir qualquer espécie de coordenação útil ou benéfica. O carácter natural do regime livre atenua-se, porque surge em meio dele este elemento estranho, e essencialmente oposto à liberdade. A vantagem pública da não-elevação desnecessária de preços, desaparece por completo, pois, por haver sindicato, é fácil a combinação e a «frente-única» contra o público, e, por esse sindicato ser tirânico, é fácil compelir à aceitação de novas tabelas os profissionais pouco dispostos a aceitá-las. Quanto ao aperfeiçoamento dos serviços comerciais ou industriais, que a concorrência estimula, o sindicato diminuiu na própria proporção em que diminui o espírito de concorrência, e, como nunca é dirigido por grandes profissionais, mas por políticos de dentro da profissão, pouco pode animar diretamente a técnica da indústria ou do comércio que representa. Nem resulta da ação do sindicato qualquer coordenação útil, que compense estas desvantagens todas. Não tendo uma verdadeira base de liberdade, o sindicato não coordena a classe como indivíduos; não tendo nunca uma direção profissionalmente superior, o sindicato não coordena a classe como profissionais; não tendo outro fim senão o profissional e o económico, o sindicato não coordena a classe como cidadãos.

    Expusemos sucessivamente, analisando-os, o que são, em suas operações económicas e sociais, os regimes de administração de Estado, de monopólio, e de liberdade de comércio e indústria. Fizemos o possível para expor imparcialmente as vantagens e desvantagens inerentes a cada um, ou às formas que cada um pode assumir. Repetimos, porém, que essas vantagens e desvantagens são as que pertencem à própria essência e generalidade de cada sistema. Quanto às vantagens e desvantagens da aplicação de cada um a este ou àquele caso particular, depende do caso particular. E nós não nos dispusemos a estudar caso particular nenhum.

    Este texto foi republicado com o mesmo título, mas sem indicação de autoria, no jornal A Informação nos dias 31 de julho e 1 de agosto de 1926. Antes do texto encontra-se a seguinte nota:ʺDa interesante «Revista de Comercio e Contabilidade», transcrevemos hoje parte de um estudado trabalho sobre os três sistemas aplicaveis á economia publica, com o sem intervenção do estadoʺ. Reproduzimos o facsimile de ambas publicações
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    • Nathaniel Hawthorne

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    • A Letra Encarnada