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Passos da Cruz QUATORZE SONETOS
DE
FERNANDO PESSOA[63]I
Esqueço-me das horas transviadas...
O outomno móra maguas nos outeiros
E põe um rôxo vago nos ribeiros...
Hostia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paysagem, fadas
De sepulcros a orgiaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em odio á ansia
Põe dias de ilhas vistas do convez
No meu cansaço perdido entre os gêlos,
E a côr do outomno é um funeral de appelos
Pela estrada da minha dissonância...
[64]II
Ha um poeta em mim que Deus me disse...
A primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua ephémera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capiteis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tedio onde o só ter tedio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E scismo o seu perfil de inércia e vôo...
[65]III
Adagas cujas joias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convez sem ninguem cheio de malas...
O intimo silencio das opalas
Conduz orientes até joias caras,
E o meu anseio vae nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ocio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tyranno, e estruge
Sua ovação, e erguem as creanças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...
[66]IV
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse plos desvãos
Do sonho, até que emfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra — reis christãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncaes...
Caverna em stalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...
[67]V
Tenue, roçando sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia addias para prece
O rito cujo rythmo só decoras...
Um mar longinquo e proximo humedece
Teus labios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dôr que choras,
Sem qu’rer saber de ti a tarde desce...
Erra no ante-luar a voz dos tanques...
Na quinta immensa gorgolejam aguas,
Na treva vaga ao meu ter dôr estanques...
Meu imperio é das horas desiguaes,
E dei meu gesto lasso ás algas máguas
Que há para além de sermos outomnaes...
[68]VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em fórma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outr’ora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero ultimo olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distancia de mim vi...
Eu proprio sou aquillo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia gloria marginal
Os girasóes do imperio que morri...
[69]VII
Fôsse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma cousa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as syrtes do meu dourado assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloriola com ter
A arvore do meu uso o unico pômo...
Fosse eu uma metaphora sómente
Escripta nalgum livro insubsistente
D’um poeta antigo, de alma em outras gammas,
Mas doente, e, num crepusculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na ultima tarde de um imperio em chammas...
[70]VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre pallios (e a ponte sempre á vista),
E annel concluso a chispas de amethysta
A phrase falha do meu posthumo hymno...
Florescesse em meu glabro desatino
O hymeneu das escadas da conquista
Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristallino...
Meus ocios ricos assim fôssem, villas
Pelo campo romano, e a toga traça
No meu soslaio anónymas (desgraça
A vida) curvas sob mãos intranquillas...
E tudo sem Cleopatra teria
Findado perto de onde raia o dia...
[71]IX
Meu coração é um portico partido
Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e ruido
Na transparente solidão do ar
Evoca estrellas sobre a noite estar
Em affastados ceus o pórtico ido...
E em palmares de Antilhas entrevistas
Atravez de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de amethystas,
Imperfeito o sabor de compensando
O grande espaço entre os tropheus alçados
Ao centro do triumpho em ruido e bando...
[72]X
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Atravez de nevoeiros,
Do meu proprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e atravez estranhos ritos
De sombra e luz occasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incognita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscripto...
Cahiu chuva em passados que fui eu.
Houve planicies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.
Narrei-me á sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outr’ora a sua capital de olvido...
[73]XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E occulta mão colora alguem em mim.
Puz a alma no nexo de perdê-la
E o meu principio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve outomno, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pallios de setim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágua? A vida? O sonho? Deixa-se…
E, abrindo as azas sobre Renovar,
A erma sombra do vôo começado
Pestaneja no campo abandonado...
[74]XII
Ella ia, tranquilla pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
«Em longes terras hás de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lyrios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora —
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistincto
Abysmo entre o meu sonho e o meu porvir...
[75]XIII
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas phrases que aos meus labios vêm
Sôam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a gloria do meu Rei dá-me o desdem
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
[76]XIV
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), pra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Appareceu já sem disfarce
De musica longiqua, azas nos ares,
O mysterio silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paysagem longiqua só existe
Para haver nella um silencio em descida
Pra o mysterio, silencio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
FERNANDO PESSOA.
O XII. Soneto desta sequência foi republicado em O “Notícias” Ilustrado, 28 Abril de 1929, p. 11, com diferenças ortográficas e opção pela minúscula inicial nos terceiros versos dos tercetos. -
Passos da Cruz QUATORZE SONETOS
DE
FERNANDO PESSOA[63]I
Esqueço-me das horas transviadas...
O outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...
[64]II
Há um poeta em mim que Deus me disse...
A primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e voo...
[65]III
Adagas cujas joias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas...
O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até joias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...
[66]IV
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse plos desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra — reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...
[67]V
Ténue, roçando sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias para prece
O rito cujo ritmo só decoras...
Um mar longínquo e próximo humedece
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem qu’rer saber de ti a tarde desce...
Erra no anteluar a voz dos tanques...
Na quinta imensa gorgolejam águas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques...
Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas mágoas
Que há para além de sermos outonais...
[68]VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu atual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...
[69]VII
Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloriola com ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...
[70]VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre pálios (e a ponte sempre à vista),
E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu póstumo hino...
Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...
Meus ócios ricos assim fossem, vilas
Pelo campo romano, e a toga traça
No meu soslaio anónimas (desgraça
A vida) curvas sob mãos intranquilas...
E tudo sem Cleópatra teria
Findado perto de onde raia o dia...
[71]IX
Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e ruído
Na transparente solidão do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados céus o pórtico ido...
E em palmares de Antilhas entrevistas
Através de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito o sabor de compensando
O grande espaço entre os troféus alçados
Ao centro do triunfo em ruído e bando...
[72]X
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
[73]XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se…
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado...
[74]XII
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
«Em longes terras hás de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora —
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
[75]XIII
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
[76]XIV
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), pra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce
De musica longíqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
Pra o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
FERNANDO PESSOA.
O XII. Soneto desta sequência foi republicado em O “Notícias” Ilustrado, 28 Abril de 1929, p. 11, com diferenças ortográficas e opção pela minúscula inicial nos terceiros versos dos tercetos.
Passos da Cruz
Fernando Pessoa
Centauro número único, dezembro de 1916, pp. 62-76.