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A todos nós, que vivemos, um dia a Vida apparece, como se existisse, e nos propõe uma escolha como a das bocetas da Porcia. Temos de escolher entre o conteúdo da boceta de ouro, e o da de prata, e o da de chumbo. Ignoramos, de diverso modo que Bassanio, o sentido do conteúdo. A de ouro contém o prazer, que se evapora quando a boceta se abre; a de prata o sonho, que se deslustra quando a boceta fica aberta; a de chumbo está vazia, e é essa a que contém a sciencia.
Ditoso é, não quem escolhe, senão quem se não arrepende de ter escolhido. Ha, porém, alguns mais ditosos que qualquer dos que escolheram: são os que distrahiram inaefinidamente a decisão da escolha, nem levaram da vida senão a mémoria das bocetas por abrir. Esses tocaram, sem olhar, o pomo essencial das cousas, que é a ap [188]parencia d'ellas — do prazer por haver o ouro que por fóra o destingue; do sonho inobtido a prata que finge que o denota; da sciencia que não houve o exterior baço e triste, imagem justa e falsa do vacuo de sua verdade.
O autor d'este livro é dos que não sabem que as bocetas existem para abrir-se. N'um só gesto assim as tomou todas; guardou-as no amplexo que fez, sem querer saber que contivessem. Cingiu a si a apparencia absoluta da Vida. Viveu por fóra o que, afinal, não val a pena vivído por dentro. E escreveu como viveu, porque sentir é não abrir bocetas. Teve razão porque não a teve. Interpretar é não saber explicar. Explicar é não ter comprehendido.
Fernando Pessoa.
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A todos nós, que vivemos, um dia a Vida aparece, como se existisse, e nos propõe uma escolha como a das bocetas da Pórcia. Temos de escolher entre o conteúdo da boceta de ouro, e o da de prata, e o da de chumbo. Ignoramos, de diverso modo que Bassanio, o sentido do conteúdo. A de ouro contém o prazer, que se evapora quando a boceta se abre; a de prata o sonho, que se deslustra quando a boceta fica aberta; a de chumbo está vazia, e é essa a que contém a ciência.
Ditoso é, não quem escolhe, senão quem se não arrepende de ter escolhido. Há, porém, alguns mais ditosos que qualquer dos que escolheram: são os que distraíram indefinidamente a decisão da escolha, nem levaram da vida senão a memória das bocetas por abrir. Esses tocaram, sem olhar, o pomo essencial das coisas, que é a a [188]parência delas — do prazer por haver o ouro que por fora o distingue; do sonho inobtido a prata que finge que o denota; da ciência que não houve o exterior baço e triste, imagem justa e falsa do vácuo de sua verdade.
O autor deste livro é dos que não sabem que as bocetas existem para abrir-se. Num só gesto assim as tomou todas; guardou-as no amplexo que fez, sem querer saber que contivessem. Cingiu a si a aparência absoluta da Vida. Viveu por fora o que, afinal, não vale a pena vivido por dentro. E escreveu como viveu, porque sentir é não abrir bocetas. Teve razão porque não a teve. Interpretar é não saber explicar. Explicar é não ter compreendido.
Fernando Pessoa.
“Palavras de Fernando Pessoa” ― Entrevistas, de Francisco Manuel Cabral Metelo
Fernando Pessoa
Entrevistas, 1923.