English|Português|Deutsch

O homem de Porlock

Fernando Pessoa

Fradique , 15 de fevereiro de 1934.

  • O homem de Porlock

    A historia marginal da litteratura regista, como curiosidade, a maneira como foi composto e escripto o Kubla Kahn  de Coleridge. Esse quasi-poema é dos poemas mais extraordinarios da litteratura ingleza — a maior, salvo a grega, de todas as litteraturas. E o extraordinario da contextura consubstancia-se com o extraordinario da origem.

    Foi esse poema composto ― narra Coleridge ― em sonho. Morava occasionalmente em uma herdade solitaria, entre as aldeias de Porlock e Linton. Um dia, em virtude de um anodyno que tomara, adormeceu; dormiu trez horas, durante as quaes, diz, compoz o poema surgindo em seu espirito, parallelamente e sem esforço, as imagens e as expressões verbaes que a ellas correspondiam.

    Disperto, dispunha-se a escrever o que compuzera; tinha escripto já trinta linhas, quando lhe foi annunciada a visita de «um homem de Porlock». Coleridge sentiu-se obrigado a attendel-o. Com elle se demorou cerca de uma hora. Ao retomar porém a transcripção do que compuzera em sonho, verificou que se esquecera de quanto lhe faltava escrever; não lhe ficara lembrado senão o final do poema ― vinte e quatro linhas mais.

    E assim temos esse Kubla Kahn  como fragmento ou fragmentos; — o principio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mysterio que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo. Edgar Poë, (discipulo, soubesse-o ou não, de Coleridge), nunca, em verso ou prosa, attingiu o Outro Mundo d’essa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude. No que ha de Poë, com toda a sua frieza, alguma coisa resta de nosso ainda que negativamente; no Kubla Kahn tudo é outro, tudo é Além; e o que se não sabe o que é, decorre em um Oriente impossivel, mas que o poeta positivamente viu.

    * * *

    Não se sabe ― não o disse Coleridge ― quem foi aquelle «Homem de Porlock», que tantos, como eu, terão amaldiçoado. Seria por uma coincidencia chaotica que surgiu esse interruptor incognito, a estorvar uma comunicação entre o abysmo e a vida? Nasceu a coincidencia apparente de qualquer occulta presença real, das que parecem conscientemente entravar a revelação dos Mysterios, ainda quando intuitiva e licita, ou a transcripção dos sonhos, quando nelles durma qualquer fórma de tal revelação?

    Seja como fôr, creio que o caso de Coleridge representa — numa forma excessiva, destinada a formar uma allegoria vivida, ― o que com todos nós se passa, quando neste mundo tentamos, por meio da sensibilidade com que se faz arte, communicar, falsos pontifices, com o Outro Mundo de nós mesmos.

    É que todos nós, ainda que dispertos quando compomos, compomos em sonho. E a todos nós, ainda que ninguem nos visite, chega-nos, de dentro, «o Homem de Porlock», o interruptor imprevisto. Tudo quanto verdadeiramente pensamos e sentimos, tudo quanto verdadeiramente somos, soffre, (quando o vamos exprimir, ainda que só para nós mesmos), a interrupção fatal d’aquelle visitante que também somos, d’aquella pessoa externa que cada um de nós tem em si, mais real na vida do que nós proprios: — a somma viva do que apprendemos, do que julgamos que somos, e do que desejamos ser.

    Esse visitante, — perennemente incognito porque sendo nós, não é «alguém»; esse interruptor — perennemente anonymo porque, sendo vivo, é «impessoal» — todos nós o temos que receber, por fraqueza nossa, entre o começo e o termo de um poema, inteiramente composto, que não nos damos licença que fique escripto. E o que de todos nós, artistas grandes ou pequenos, verdadeiramente sobrevive, — são fragmentos do que não sabemos que seja; mas que seria, se houvesse sido, a mesma expressão da nossa alma.

    Pudessemos nós ser crianças, para não ter quem nos visitasse, nem visitantes que nos sentissemos obrigados a attender! Mas não queremos fazer esperar quem não existe, não queremos melindrar «o estranho» — que é nós. E assim, do que poderia ter sido, fica só o que é; — do poema, ou dos opera omnia, só o princípio e o fim de qualquer coisa perdida —  disjecta membra que, como disse Carlyle, é o que fica de qualquer poeta, ou de qualquer homem.

    Fernando Pessoa

  • O homem de Porlock

    A história marginal da literatura regista, como curiosidade, a maneira como foi composto e escrito o Kubla Kahn de Coleridge. Esse quase-poema é dos poemas mais extraordinários da literatura inglesa — a maior, salvo a grega, de todas as literaturas. E o extraordinário da contextura consubstancia-se com o extraordinário da origem.

    Foi esse poema composto ― narra Coleridge ― em sonho. Morava ocasionalmente em uma herdade solitária, entre as aldeias de Porlock e Linton. Um dia, em virtude de um anódino que tomara, adormeceu; dormiu três horas, durante as quais, diz, compôs o poema surgindo em seu espírito, paralelamente e sem esforço, as imagens e as expressões verbais que a elas correspondiam.

    Desperto, dispunha-se a escrever o que compusera; tinha escrito já trinta linhas, quando lhe foi anunciada a visita de «um homem de Porlock». Coleridge sentiu-se obrigado a atendê-lo. Com ele se demorou cerca de uma hora. Ao retomar porém a transcrição do que compusera em sonho, verificou que se esquecera de quanto lhe faltava escrever; não lhe ficara lembrado senão o final do poema ― vinte e quatro linhas mais.

    E assim temos esse Kubla Kahn como fragmento ou fragmentos; — o princípio e o fim de qualquer coisa espantosa, de outro mundo, figurada em termos de mistério que a imaginação não pode humanamente representar-se, e da qual ignoramos, com horror, qual poderia ter sido o enredo. Edgar Poe, (discípulo, soubesse-o ou não, de Coleridge), nunca, em verso ou prosa, atingiu o Outro Mundo dessa maneira nativa ou com essa sinistra plenitude. No que há de Poe, com toda a sua frieza, alguma coisa resta de nosso ainda que negativamente; no Kubla Kahn tudo é outro, tudo é Além; e o que se não sabe o que é, decorre em um Oriente impossível, mas que o poeta positivamente viu.

    * * *

    Não se sabe ― não o disse Coleridge ― quem foi aquele «Homem de Porlock», que tantos, como eu, terão amaldiçoado. Seria por uma coincidência caótica que surgiu esse interruptor incógnito, a estorvar uma comunicação entre o abismo e a vida? Nasceu a coincidência aparente de qualquer oculta presença real, das que parecem conscientemente entravar a revelação dos Mistérios, ainda quando intuitiva e lícita, ou a transcrição dos sonhos, quando neles durma qualquer forma de tal revelação?

    Seja como for, creio que o caso de Coleridge representa — numa forma excessiva, destinada a formar uma alegoria vívida, ― o que com todos nós se passa, quando neste mundo tentamos, por meio da sensibilidade com que se faz arte, comunicar, falsos pontífices, com o Outro Mundo de nós mesmos.

    É que todos nós, ainda que despertos quando compomos, compomos em sonho. E a todos nós, ainda que ninguém nos visite, chega-nos, de dentro, «o Homem de Porlock», o interruptor imprevisto. Tudo quanto verdadeiramente pensamos e sentimos, tudo quanto verdadeiramente somos, sofre, (quando o vamos exprimir, ainda que só para nós mesmos), a interrupção fatal daquele visitante que também somos, daquela pessoa externa que cada um de nós tem em si, mais real na vida do que nós próprios: — a soma viva do que aprendemos, do que julgamos que somos, e do que desejamos ser.

    Esse visitante, — perenemente incógnito porque sendo nós, não é «alguém»; esse interruptor — perenemente anónimo porque, sendo vivo, é «impessoal» — todos nós o temos que receber, por fraqueza nossa, entre o começo e o termo de um poema, inteiramente composto, que não nos damos licença que fique escrito. E o que de todos nós, artistas grandes ou pequenos, verdadeiramente sobrevive, — são fragmentos do que não sabemos que seja; mas que seria, se houvesse sido, a mesma expressão da nossa alma.

    Pudéssemos nós ser crianças, para não ter quem nos visitasse, nem visitantes que nos sentíssemos obrigados a atender! Mas não queremos fazer esperar quem não existe, não queremos melindrar «o estranho» — que é nós. E assim, do que poderia ter sido, fica só o que é; — do poema, ou dos opera omnia, só o princípio e o fim de qualquer coisa perdida —  disjecta membra que, como disse Carlyle, é o que fica de qualquer poeta, ou de qualquer homem.

    Fernando Pessoa

  • Nomes

    • Edgar Allan Poe
    • Fernando Pessoa
    • Samuel Taylor Coleridge
    • Thomas Carlyle

    Títulos

    • Kubla Kahn