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[17]
O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os varios aspectos da arte e da literatura portuguesas
Entrevistar Fernando Pessôa não é facil. Só é facil entrevistar os que não pensam, os que não se importam de jogar palavras, ao acaso, atirando-as impudicamente ao vento.
Fernando Pessôa, quere como Fernando Pessôa, quere como Alvaro de Campos ― o engenheiro alucinado que comporta o seu segundo eu, e que aparece em toda a parte, enchendo a voz de louvores e raios para a Vida ― raios partam a Vida e quem lá ande! ― é sempre um voluptuoso do raciocinio, um amante da inteligencia, podemos dizer: um creadôr duma nova Razão. Paradoxal? Sem duvida. Mas ha tantas maneiras de ser paradoxal!
A entrevista que se segue, toda escripta por Fernando Pessôa — nem podia deixar de ser visto Fernando Pessôa possuir uma sintaxe propria para a logica propria dos seus pensamentos, mixto de seriedade e de ironia, vái decerto prender o espirito dos leitores...
Atenção! Fernando Pessôa vai responder ás perguntas que lhe fizemos:
― Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos ― politico, moral e intellectual?
― A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizaveis. Esta phrase, como todas que involvem uma contradição não involve contradicção nenhuma. Eu explico.
Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este elle [18]mesmo teem uma substancia identica; manifestam-se, porém, differentemente. A aristocracia manifesta-se como individuos, incluindo alguns individuos amadores; o povo revela-se como todo elle um individuo só. Só collectivamente é que o povo não é collectivo.
O povo portuguez é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro portuguez foi portuguez: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um individuo é ser tudo; ser tudo em uma collectividade é cada um dos individuos não ser nada. Quando a atmosphera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o portuguez pode ser portuguez, pode portanto ser individuo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosphera da civilização não é cosmopolita ― como no tempo entre o fim da Renascença e o principio, em que estamos, de uma Renascença nova ― o portuguez deixa de poder respírar individualmente. Passa a ser só portuguezes. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas phrases teem uma mathematica intima.)
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdôa. Porisso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjuncto. E como o seu conjuncto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o portuguez, com a sua tendencia para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possiveis. Foi neste vacuo de si-proprio que o portuguez abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essencia da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem d’esta crise geral. A nossa crise politica é o sermos governados por uma maioria que não ha. A nossa crise moral é que desde 1580 ― fim da Renascença em nós e de nós na Renascença ― deixou de haver individuos em Portugal para haver só portuguezes. Porisso mesmo acabaram os portuguezes nessa ocasião. Foi então que começou o portuguez á antiga portugueza, que é mais moderno que o portuguez, e é o resultado de estarem interrompidos os portuguezes. A nossa crise intellectual é simplesmente o não termos consciencia d’isto.
[19]Respondi, creio, á sua pergunta. Se v. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.
― Que pensa dos nossos escriptores do momento, prosadores, poetas e dramaturgos?
― Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguem de quem me não lembre. Confio ao silencio a injustiça. A ansia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguem. Julgue-se citado quem se julgue com direito a sel-o. Resolvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente, porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que elle é já o futuro? Quem são os meus contemporaneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste commigo muita gente que vive commigo apenas porque dura commigo. Esses são apenas os meus conterraneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em materia de immortalidade. Na duvida, repito, não citarei ninguem.
― Estaremos em face de uma renascença espiritual?
― Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade elles-proprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionaes, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apezar dos grandes obstáculos á nossa regeneração ― todas as doutrinas de regeneração ― estamos no inicio de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que collectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. Os signaes do nosso resurgimento proximo estão patentes para os que não vêem o visivel. São o caminho de ferro de Anthero a Pascoaes e a nova linha que está quasi construida. Fallo em termos de vida metallica porque a epocha renasce nestes termos. O symbolo, porém, nasceu antes dos engenheiros.
Nada ha a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, sub-gente, num artigo da antiga [20] Aguia ― da Aguia que voava. Só a burguezia, que é a ausencia da classe social, pode crear o futuro. Só de uma classe que não ha pode nascer uma classe que não ha ainda. Seja como fôr, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar á ponte quando o rio não tem nenhuma.
― O que se deve entender por arte portugueza? Concorda com este termo? Ha arte verdadeiramente portugueza?
― Por arte portugueza deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de portuguez, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser portuguez no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-creação de nacionalidade. Arte portugueza será aquella em que a Europa ― entendendo por Europa principalmente a Grecia antiga e o universo inteiro ― se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações ― a Grecia passada e Portugal futuro ― receberam dos deuses a concessão de serem não só ellas mas tambem todas as outras. Chamo a sua attenção para o facto, mais importante que geographico, de que Lisboa e Athenas estão quasi na mesma latitude.
― O regionalismo na litteratura e na pintura?
― O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo tambem. E como o nacionalismo é anti-portuguez (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibericos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não ha. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal tambem tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amal-o por elle estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já portuguez, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metaphorico não diminue a verdade de tudo isto: Deus, e o proprio universo, são metaphoras tambem.)
― Teriam existido em toda a nossa historia litteraria periodos de creação?
― O nosso unico periodo de creação foi dedicado a crear um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. [21]O proprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusiadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Litterariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semi-deuses da nossa gloria esperam ainda o seu cantor. Este poderá não fallar d’elles; basta que os valha em seu canto, e fallará d’elles. Camões estava muito perto para poder sonhal-os. Nas faldas do Himalaya o Himalaya é só as faldas do Himalaya. É na distancia, ou na memoria, ou na imaginação que o Himalaya é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Ha só um periodo de creação na nossa historia litteraria: não chegou ainda.
― Continuará sendo o lyrismo a nossa feição litteraria predominante?
― Ha duas feições litterarias ― a epica e a dramatica. O lyrismo é a incapacidade commovida de ter qualquer d’ellas. O que é ser lyrico? É cantar as emoções que se teem. Ora cantar as emoções que se teem faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não teem. Sentir profundamente o que se não sente é a flamula de almirante da inspiração. O poeta dramatico faz isto directamente; o poeta epico fal-o indirectamente, sentindo o conjuncto da obra mais que as partes d’ella, isto é, sentindo exactamente aquelle elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e porisso impessoal. Fomos esboçadamente epicos. Seremos inviolavelmente dramaticos. Fomos lyricos quando não fomos nada. O lyrismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.
― O que calcula que seja o futuro da raça portugueza?
― O Quinto Imperio. O futuro de Portugal ― que não calculo mas sei ― está escripto já, para quem saiba lel-o, nas trovas do Bandarra, e tambem nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja portuguez, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que portuguez verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza esteril do catholicismo, quando fóra d’elle ha que viver todos os [22]protestantismos, todos os credos orientaes, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguezmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fóra de nós fique um unico deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portuguezes. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa! Creemos assim o Paganismo Superior, o Polytheismo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
Alves Martins.
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O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os vários aspetos da arte e da literatura portuguesas
Entrevistar Fernando Pessoa não é fácil. Só é fácil entrevistar os que não pensam, os que não se importam de jogar palavras, ao acaso, atirando-as impudicamente ao vento.
Fernando Pessoa, quer como Fernando Pessoa, quer como Álvaro de Campos ― o engenheiro alucinado que comporta o seu segundo eu, e que aparece em toda a parte, enchendo a voz de louvores e raios para a Vida ― raios partam a Vida e quem lá ande! ― é sempre um voluptuoso do raciocínio, um amante da inteligência, podemos dizer: um criador duma nova Razão. Paradoxal? Sem dúvida. Mas há tantas maneiras de ser paradoxal!
A entrevista que se segue, toda escrita por Fernando Pessoa — nem podia deixar de ser visto Fernando Pessoa possuir uma sintaxe própria para a lógica própria dos seus pensamentos, misto de seriedade e de ironia, vai decerto prender o espírito dos leitores...
Atenção! Fernando Pessoa vai responder às perguntas que lhe fizemos:
― Que pensa da nossa crise? Dos seus aspetos ― político, moral e intelectual?
― A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição não envolve contradição nenhuma. Eu explico.
Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele [18]mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só coletivamente é que o povo não é coletivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma coletividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita ― como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova ― o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima.)
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 ― fim da Renascença em nós e de nós na Renascença ― deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português, e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.
[19]Respondi, creio, à sua pergunta. Se v. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.
― Que pensa dos nossos escritores do momento, prosadores, poetas e dramaturgos?
― Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguém de quem me não lembre. Confio ao silêncio a injustiça. A ânsia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguém. Julgue-se citado quem se julgue com direito a sê-lo. Resolvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente, porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que ele é já o futuro? Quem são os meus contemporâneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste comigo muita gente que vive comigo apenas porque dura comigo. Esses são apenas os meus conterrâneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em matéria de imortalidade. Na dúvida, repito, não citarei ninguém.
― Estaremos em face de uma renascença espiritual?
― Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apesar dos grandes obstáculos à nossa regeneração ― todas as doutrinas de regeneração ― estamos no início de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que coletivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. Os sinais do nosso ressurgimento próximo estão patentes para os que não veem o visível. São o caminho de ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída. Falo em termos de vida metálica porque a época renasce nestes termos. O símbolo, porém, nasceu antes dos engenheiros.
Nada há a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, subgente, num artigo da [20]antiga Águia ― da Águia que voava. Só a burguesia, que é a ausência da classe social, pode criar o futuro. Só de uma classe que não há pode nascer uma classe que não há ainda. Seja como for, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar à ponte quando o rio não tem nenhuma.
― O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
― Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa ― entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro ― se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações ― a Grécia passada e Portugal futuro ― receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
― O regionalismo na literatura e na pintura?
― O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é antiportuguês (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal tambem tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)
― Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?
― O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. [21]O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.
― Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?
― Há duas feições literárias ― a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto diretamente; o poeta épico fá-lo indiretamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exatamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstrato e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.
― O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
― O Quinto Império. O futuro de Portugal ― que não calculo mas sei ― está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os [22]protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
Alves Martins.
O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os vários aspetos da arte e da literatura portuguesas
Fernando Pessoa
Revista Portuguesa 23-24, 13 de outubro de 1923, pp. 17-22.