-
[*]
Fernando Pessoa
Mensagem
Lisboa 1934
Parceria Antonio Maria Pereira 44 Rua Augusta 54
[*][*]Benedictus Dominus Deus
Noster Qui Dedit Nobis
Signum.PRIMEIRA PARTE
BRASÃO
[*]BELLUM SINE BELLO.[*]I.
OS CAMPOS
[15]PRIMEIRO
O DOS CASTELLOS
A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe romanticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em angulo disposto.
Aquelle diz Italia onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Occidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
[16]SEGUNDO
O DAS QUINAS
Vendem os Deuses o que dão.
A gloria compra-se a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem basta o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu:
Assím o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu
II.
OS CASTELLOS
[*][19]PRIMEIRO
ULYSSES
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
[20]SEGUNDO
VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memoria em nós do instincto teu.
Nação porque reincarnaste,
Povo porque resuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.
[21]TERCEIRO
O CONDE D. HENRIQUE
Todo começo é involuntario.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vario
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.
[22]QUARTO
D. TAREJA
As nações todas são mysterios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de imperios.
Vella por nós!
Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle resa!
Dê tua prece outro destino[23]
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não ha o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
[24]QUINTO
D. AFFONSO HENRIQUES
Pae, foste cavalleiro.
Hoje a vigilia é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infieis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção!
[25]SEXTO
D. DINIZ
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silencio murmuro comsigo:
É o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imperio, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
É o som presente d'esse mar futuro,
É a voz da terra anciando pelo mar.
[26]SEPTIMO (I)
D. JOÃO O PRIMEIRO
O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.
Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a gloria e déste o exemplo
De o defender,
Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repelle, eterna chamma,
A sombra eterna.
[27]SEPTIMO (II)
D. PHILIPPA DE LENCASTRE
Que enigma havia em teu seio
Que só genios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?
Volve a nós teu rosto serio,
Princeza do Santo Gral,
Humano ventre do Imperio,
Madrinha de Portugal!
[31]III.
AS QUINAS
[*]PRIMEIRA
D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
[32]SEGUNDA
D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gladio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Poz-me as mãos sobre os hombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
[33]TERCEIRA
D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir,
E claro no querer;
Indifferente ao que ha em conseguir
Que seja só obter;
Duplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à idéa tida.
Tudo mais é com Deus!
[34]QUARTA
D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não fui alguem. Minha alma estava estreita
Entre tam grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;
Porque é do portuguez, pae de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.
[35]QUINTA
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Porisso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que ha.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura o que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadaver addiado que procria?
[39]IV.
A COROA
[*]NUNALVARES PEREIRA
Que aureola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Arthur te deu.
Sperança consummada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
[43]V.
O TIMBRE
[*]A CABEÇA DO GRYPHO
O INFANTE D. HENRIQUE
Em seu throno entre o brilho das espheras,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O unico imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
[44]UMA ASA DO GRYPHO
D. JOÃO O SEGUNDO
Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontorio uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidavel vulto solitario
Enche de estar presente o mar e o céu.
E parece temer o mundo vario
Que elle abra os braços e lhe rasgue o véu.
[45]A OUTRA ASA DO GRYPHO
AFFONSO DE ALBUQUERQUE
De pé, sobre os paizes conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
Tam poderoso que não quer o quanto
Póde, que o querer tanto
Calcára mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Trez imperios do chão lhe a Sorte apanha.
Creou-os como quem desdenha.
SEGUNDA PARTE
MAR PORTUGUEZ
[*]POSSESSIO MARIS[*][51]I.
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quiz que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou creou-te portuguez.
Do mar e nós em ti nos deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
[52]II.
HORIZONTE
O' mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longinqua costa —[53]
Quando a nau se approxima ergue-se a encosta
Em arvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, ha aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as fórmas invisiveis
Da distancia imprecisa, e, com sensiveis
Movimentos da esprança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
[54]III.
PADRÃO
O exforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para deante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao immenso e possivel oceano[55]
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.
E a Cruz ao alto diz que o que me ha na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
[56]IV.
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?[57]
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,
Trez vezes rodou immundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguem me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Trez vezes do leme as mãos ergueu.
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer trez vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
[58]V.
EPITAPHIO DE BARTHOLOMEU DIAS
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguem o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu hombro.
[59]VI.
OS COLOMBOS
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a elles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz d'elle historia.
E porisso a sua gloria
É uma justa aureola dada
Por uma luz emprestada.
[60]VII.
OCCIDENTE
Com duas mãos — o Acto e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho trémulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Occidente o véu rasgou,
Foi alma a Sciencia e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
[61]VIII.
FERNÃO DE MAGALHÃES
No valle clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do valle vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?[62]
São os Titans, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quiz cingir o materno vulto —
Cingil-o, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda commanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas elles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do valle pelas encostas
Dos mudos montes.
[63]IX.
ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o odio da sua guerra
E pasmam. Pelo valle onde se ascende aos céus
Surge um silencio, e vae, da nevoa ondeando
os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-o, ao durar, os medos, hombro a
hombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a
flauta
Cahe-lhe, e em extase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abysmo à alma do Argonauta.
[64]X.
MAR PORTUGUEZ
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lagrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.
[65]XI.
A ULTIMA NAU
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Imperio,
Foi-se a ultima nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mysterio.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta[66]
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlantica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou
spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que ha a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mysterio.
Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Imperio.
[67]XII.
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silencio hostil,
O mar universal e a saüdade.
Mas a chamma, que a vida em nós creou,
Se ainda ha vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a occultou:
A mão do vento póde erguel-a ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ancia —,
Com que a chamma do exforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
TERCEIRA PARTE
O ENCOBERTO
[*]PAX IN EXCELSIS.[*]I.
OS SYMBOLOS
[*][75]PRIMEIRO
D. SEBASTIÃO
Sperae! Cahi no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervallo em que esteja a alma immersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
[76]SEGUNDO
O QUINTO IMPERIO
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem[77]
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será theatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grecia, Roma, Christandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
[78]TERCEIRO
O DESEJADO
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!
[79]QUARTO
AS ILHAS AFORTUNADAS
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguem que nos falla,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ella nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter logar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos dispertando,
Cala a voz, e ha só o mar.
[80]QUINTO
O ENCOBERTO
Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que symbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Christo.
Que symbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
II.
OS AVISOS
[*][83]PRIMEIRO
O BANDARRA
Sonhava, anonymo e disperso,
O Imperio por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Christo.
Não foi nem santo nem heroe,
Mas Deus sagrou com Seu signal
Este, cujo coração foi
Não portuguez mas Portugal.
[84]SEGUNDO
ANTONIO VIEIRA
O céu estrella o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à gloria tem,
Imperador da lingua portugueza,
Foi-nos um céu tambem.
No immenso espaço seu de meditar,
Constellado de fórma e de visão,
Surge, prenuncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do ethereo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Imperio
Doira as margens do Tejo.
[85]TERCEIRO
Screvo meu livro à beira-magua.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de agua.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vacuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo[86]
De a quem morreu o falso Deus,
E a dispertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras portuguez,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anceio que Deus fez?
Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da nevoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
III.
OS TEMPOS
[*][89]PRIMEIRO
NOITE
A nau de um d'elles tinha se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a nevoa escura.
Tempo foi. Nem primeiro nem segundo[91]
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à patria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
[90] Como a um captivo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o vêem, vêem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ancia
Fitando a prohibida azul distancia.
Senhor, os dois irmãos do nosso Nome‒
O Poder e o Renome —
Ambos se foram pelo mar da edade
À tua eternidade;
E com elles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de heroe,
Queremos ir buscal-os, d'esta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distancia
De nós; e, em febre de ancia,
A Deus as mãos alçamos.
Mas Deus não dá licença que partamos.
[92]SEGUNDO
TORMENTA
Que jaz no abysmo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Isto, e o mysterio de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relampago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar scuro struge.
[93]TERCEIRO
CALMA
Que costa é que as ondas contam
E se não póde encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
Ilha proxima e remota,[94]
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Póde encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sósinho?
Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,
E que, um d'elles encontrado,
Aqui, onde ha só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O paiz afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?
[95]QUARTO
ANTEMANHÃ
O mostrengo que está no fim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia,
Do novo dia sem acabar;
E disse: «Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo,
Nem o Terceiro quer desvendar?»
E o som na treva de elle rodar
Faz mau o somno, triste o sonhar,
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que seu senhor veio aqui buscar.
Que veio aqui seu senhor chamar —
Chamar Aquelle que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.
[96]QUINTO
NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fatuo encerra.
Ninguem sabe que coisa quer.
Ninguem conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Fratres.
Pessoa publicou vários dos poemas do livro Mensagem, cuja historia genética remonta-se pelo menos até 1913 (cf. MPPV), em diferentes lugares ao longo de duas décadas. As publicações "Mar Português" e "Tríptico" são preparatórias do material aproveitado na versão impressa e contém variantes significativas nos títulos e alguns versos dos poemas. Por exemplo, o poema no livro intitulado "O Mostrengo" antes levou o título "O Morcego" em "Mar Português", o mesmo "Occidente", antes "Os decobridores do ocidente" e "Fernão de Magalhães", antes "Dança dos Titãs", poemas todos que apresentam mudanças significativas em alguns versos. No caso dos poemas publicados em "Tríptico", existem diferenças menores nos poemas "O infante D. Henrique", "D. João o Segundo", enquanto que o poema "Afonso de Albuquerque" foi completamente refeito para o livro, mantendo únicamente o título. Após a publicação do livro impresso alguns poemas formam republicados em jornais. É o caso de "O infante", "O Mostrengo" e "Prece", publicados no Suplemento literario do Diário de Lisboa, a 14 de Dezembro de 1934, sob o título Do livo Mensagem de Fernando Pessoa; "O dos castelos" e "D. Afonso Heriques" publicados em O "Notícias" Ilustrado a 6 de janeiro de 1935 sob o título "Mensagem" por Fernando Pessoa (Os Campos); e finalmente, os poemas "D. Dinis" e "Terceiro" foram republicados parcialmente no Suplemento do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, a 10 de março de 1935, ainda com diferenças ortotipográficas (cf. Xavier, 2020, p. 559). No caso do poema "D. Fernando, Infante de Portugal" conhece-se a publicação previa sob o título "Gládio" com a dedicatória a Alberto da Cunha Dias, primeiro como parte do conjunto "Alguns Poemas" e depois autónomamente em "Gládio". O poema "Prece" também foi publicado autónomamente, em 1929, com ligeiras variantes ortotipográficas. -
Fernando Pessoa
Mensagem
Lisboa 1934
Parceria Antonio Maria Pereira
44 Rua Augusta 54Benedictus Dominus Deus
Noster Qui Dedit Nobis
Signum.PRIMEIRA PARTE
BRASÃO
BELLUM SINE BELLO
I.
OS CAMPOS
[15]PRIMEIRO
O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
[16]SEGUNDO
O DAS QUINAS
Vendem os Deuses o que dão.
A glória compra-se a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem basta o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu
II.
OS CASTELOS
[19]PRIMEIRO
ULISSES
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
[20]SEGUNDO
VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.
[21]TERCEIRO
O CONDE D. HENRIQUE
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.
[22]QUARTO
D. TAREJA
As nações todas são mistérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios.
Vela por nós!
Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza!
Dê tua prece outro destino[23]
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
[24]QUINTO
D. AFONSO HENRIQUES
Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como bênção!
[25]SEXTO
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio murmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
[26]SÉTIMO (I)
D. JOÃO O PRIMEIRO
O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.
Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender,
Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama,
A sombra eterna.
[27]SÉTIMO (II)
D. FILIPA DE LENCASTRE
Que enigma havia em teu seio
Que só génios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia?
Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Graal,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!
[31]III.
AS QUINAS
PRIMEIRA
D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
[32]SEGUNDA
D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
[33]TERCEIRA
D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir,
E claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo mais é com Deus!
[34]QUARTA
D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.
[35]QUINTA
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura o que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
[39]IV.
A COROA
NUN'ÁLVARES PEREIRA
Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.
Esperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
[43]V.
O TIMBRE
A CABEÇA DO GRIFO
O INFANTE D. HENRIQUE
Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
[44]UMA ASA DO GRIFO
D. JOÃO O SEGUNDO
Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidável vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu.
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
[45]A OUTRA ASA DO GRIFO
AFONSO DE ALBUQUERQUE
De pé, sobre os países conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
Tão poderoso que não quer o quanto
Pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.
SEGUNDA PARTE
MAR PORTUGUÊS
[*] POSSESSIO MARIS [*][51]I.
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
[52]II.
HORIZONTE
O' mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —[53]
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
[54]III.
PADRÃO
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano[55]
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
[56]IV.
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?[57]
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu.
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
[58]V.
EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.
[59]VI.
OS COLOMBOS
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É uma justa auréola dada
Por uma luz emprestada.
[60]VII.
OCIDENTE
Com duas mãos — o Ato e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho trémulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
[61]VIII.
FERNÃO DE MAGALHÃES
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?[62]
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto —
Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
[63]IX.
ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando
os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a
ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a
flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.
[64]X.
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
[65]XI.
A ÚLTIMA NAU
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta[66]
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou
espaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
[67]XII.
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
[80]TERCEIRA PARTE
O ENCOBERTO
[*] PAX IN EXCELSIS [*]I.
OS SÍMBOLOS
[*][75]PRIMEIRO
D. SEBASTIÃO
Esperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
[76]SEGUNDO
O QUINTO IMPÉRIO
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem[77]
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
[78]TERCEIRO
O DESEJADO
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Graal!
[79]QUARTO
AS ILHAS AFORTUNADAS
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.
QUINTO
O ENCOBERTO
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
II.
OS AVISOS
[83]PRIMEIRO
O BANDARRA
Sonhava, anónimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português mas Portugal.
[84]SEGUNDO
ANTÓNIO VIEIRA
O céu estrela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
E' um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.
[85]TERCEIRO
Escrevo meu livro à beira-mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo[86]
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
III.
OS TEMPOS
[89]PRIMEIRO
NOITE
A nau de um deles tinha se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo foi. Nem primeiro nem segundo[91]
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
[90] Como a um cativo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o veem, veem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ânsia
Fitando a proibida azul distância.
Senhor, os dois irmãos do nosso Nome‒
O Poder e o Renome —
Ambos se foram pelo mar da idade
À tua eternidade;
E com eles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de herói.
Queremos ir buscá-los, desta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distância
De nós; e, em febre de ânsia,
A Deus as mãos alçamos.
Mas Deus não dá licença que partamos.
[92]SEGUNDO
TORMENTA
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar escuro estruge.
[93]TERCEIRO
CALMA
Que costa é que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
Ilha próxima e remota,[94]
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
Haverá rasgões no espaço
Que deem para outro lado,
E que, um deles encontrado,
Aqui, onde há só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O país afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?
[95]QUARTO
ANTEMANHÃ
O mostrengo que está no fim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia,
Do novo dia sem acabar;
E disse: «Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo,
Nem o Terceiro quer desvendar?»
E o som na treva de ele rodar
Faz mau o sono, triste o sonhar,
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que seu senhor veio aqui buscar.
Que veio aqui seu senhor chamar —
Chamar Aquele que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.
[96]QUINTO
NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Fratres.
Pessoa publicou vários dos poemas do livro Mensagem, cuja historia genética remonta-se pelo menos até 1913 (cf. MPPV), em diferentes lugares ao longo de duas décadas. As publicações "Mar Português" e "Tríptico" são preparatórias do material aproveitado na versão impressa e contém variantes significativas nos títulos e alguns versos dos poemas. Por exemplo, o poema no livro intitulado "O Mostrengo" antes levou o título "O Morcego" em "Mar Português", o mesmo "Occidente", antes "Os decobridores do ocidente" e "Fernão de Magalhães", antes "Dança dos Titãs", poemas todos que apresentam mudanças significativas em alguns versos. No caso dos poemas publicados em "Tríptico", existem diferenças menores nos poemas "O infante D. Henrique", "D. João o Segundo", enquanto que o poema "Afonso de Albuquerque" foi completamente refeito para o livro, mantendo únicamente o título. Após a publicação do livro impresso alguns poemas formam republicados em jornais. É o caso de "O infante", "O Mostrengo" e "Prece", publicados no Suplemento literario do Diário de Lisboa, a 14 de Dezembro de 1934, sob o título Do livo Mensagem de Fernando Pessoa; "O dos castelos" e "D. Afonso Heriques" publicados em O "Notícias" Ilustrado a 6 de janeiro de 1935 sob o título "Mensagem" por Fernando Pessoa (Os Campos); e finalmente, os poemas "D. Dinis" e "Terceiro" foram republicados parcialmente no Suplemento do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, a 10 de março de 1935, ainda com diferenças ortotipográficas (cf. Xavier, 2020, p. 559). No caso do poema "D. Fernando, Infante de Portugal" conhece-se a publicação previa sob o título "Gládio" com a dedicatória a Alberto da Cunha Dias, primeiro como parte do conjunto "Alguns Poemas" e depois autónomamente em "Gládio". O poema "Prece" também foi publicado autónomamente, em 1929, com ligeiras variantes ortotipográficas.
Mensagem
Fernando Pessoa
Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 44 Rua Augusta 54 / Editora Império, Dezembro de 1934, 15-96.