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Impressões do Crepusculo
I
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Sôa dentro da minh’alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho —
Sôas-me sempre distante…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
II
Pauis de roçarem ansias pela minh’alma em ouro...
Dobre longinquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Baloiçar de cimos de palma...
Silencio que as folhas fitam em nós... Outôno delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ansia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra cousa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estende-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Cimbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recúo que invade
O meu abandonar-me a mim-proprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, ôco de têr-se...
O Misterio sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não contêr-se...
A sentinela é hirta — a lança que finca no chão
É mais alta do que ela... Pra que é tudo isto?... Dia chão...
Trepadeiras de desproposito lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são élos de erro...
Fanfarras de ópios de silencios futuros... Longes trens...
Portões vistos longe... atravez das arvores... tão de ferro!
29 — Março — 1913
FERNANDO PESSÔA.
O poema “Ó sino da minha aldeia”, aqui incluído em “Impressões do Crepusculo”, foi republicado em “Alguns Poemas / De um Cancioneiro”, Athena 3, dezembro de 1924, pp. 82-88. A segunda publicação apresenta, para além de diferenças ortográficas, variantes no último verso da segunda estrofe e em três versos da terceira estrofe. -
Impressões do Crepúsculo
I
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minh’alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho —
Soas-me sempre distante…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
II
Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Baloiçar de cimos de palma...
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta — a lança que finca no chão
É mais alta do que ela... Pra que é tudo isto?... Dia chão...
Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro...
Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...
Portões vistos longe... através das arvores... tão de ferro!
29 — março — 1913
FERNANDO PESSOA.
O poema “Ó sino da minha aldeia”, aqui incluído em “Impressões do Crepusculo”, foi republicado em “Alguns Poemas / De um Cancioneiro”, Athena 3, dezembro de 1924, pp. 82-88. A segunda publicação apresenta, para além de diferenças ortográficas, variantes no último verso da segunda estrofe e em três versos da terceira estrofe.
Impressões do Crepúsculo
Fernando Pessoa
A Renascença , fevereiro de 1914, p. 11.