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[13]
HORA ABSURDA
O teu silencio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flammulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silencio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...
Meu coração é uma amphora que cahe e que se parte...
O teu silencio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéa de ti é um cadaver que o mar traz á praia…, e emtanto
Tu és a tela irreal em que érro em côr a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a idéa
Que temos de que um fumo perfuma de ocio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha idéa de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fóra... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ella escombros d’ella...
Na minha atenção ha uma viuva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma unica estrella...
Hoje o céu é pesado como a idéa de nunca chegar a um porto...
A chuva miuda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,[14]
Minhas ancias todas talhadas num marmore que não ha,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alégro,
E a minha bondade inversa não é nem bôa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se á beira dos caminhos...
Os pendões das victorias medievaes nem chegaram ás cruzadas...
Puzeram in-folios uteis entre as pedras das barricadas...
E a herva cresceu nas vias-ferreas com viços damninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!...
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela fallam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquella angustia de sonhar mais que até para si calam...
O palacio está em ruinas... Dóe ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguem ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquelle logar-outomno...
Esta paysagem é um manuscripto com a phrase mais bella cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquella luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ansias, brisas fortuitas?...
Porque me afflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as nymphas... Veiu o sol e já tinham partido...
O teu silencio que me embala é a idéa de naufragar,
E a idéa de a tua voz soar a lyra d’um Apollo fingido...
Já não ha caudas de pavões todas olhos nos jardins de outr’ora...
As proprias sombras estão mais tristes... Ainda
Ha rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que echo de passos pela alameda que eis finda...
Todos os occasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Seccou em teu olhar a idéa de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas[15]
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu throno de alheamento ha gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lampada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silencio é um perfil de pincaro ao sol!
Todas as princezas sentirem o seio opprimido...
Da ultima janella do castello só um girasol
Se vê, e o sonhar que ha outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Valle... Perto?...
Arde o collegio e uma creança ficou fechada na aula...
Porque não ha de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silencio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Ha coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéa sabe á lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdel-o?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silencio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão bello, tão bello,
Mas mais bello é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma cathedral de silencios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem principio mas com fim...
Alguem vae entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viuvas gosam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tedio é uma estatua de uma mulher que ha de vir,
O perfume que os crysantemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o proposito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paysagens de todas as terras,
Endireitar á força a curva dos horisontes,
E gemer por ter de viver, como um ruido brusco de serras...
Ha tão pouca gente que ame as paysagens que não existem!...[16]
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalégra!...
Que o meu ouvir o teu silencio não seja nuvens que attristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tedio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciencia de ter consciencia de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flôr murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longinquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de gloria!...
Estatua acéphala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escripto ao centro este lemma — Victoria!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tedios e de opios de ocios medonhos!...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua propria alma...
Eu fui amado em effigie num paiz para além dos sonhos...
Lisboa, 4 de Julho de 1913.
FERNANDO PESSÔA.
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HORA ABSURDA
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia…, e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,[14]
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias-férreas com viços daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!...
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo.. . Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios ..
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas[15]
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentirem o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Porque não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...[16]
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos! ...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
Lisboa, 4 de julho de 1913.
FERNANDO PESSOA.
Hora Absurda
Fernando Pessoa
Exílio , abril de 1916, pp. 13-16.