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Como organizar Portugal

Fernando Pessoa

Acção , 1 de maio de 1919, pp. 2-4.

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    COMO ORGANIZAR PORTUGAL

    Quando a guerra findou — como se a guerra alguma vez findasse, ou houvesse neste mundo senão guerra! —; quando, enfim, findou esta guerra de ha pouco, passou a ser assumpto de primeiro plano aquillo, já de havia bastante discutido, a que mais vulgarmente se chamou «os problemas da reconstrução». A phrase é ingleza, e, como participa da nebulosidade mental que caracteriza os inglezes, susceptivel de ser mal interpretada. Se o termo diz respeito ao mero restabelecimento das vias normaes da vida pacifica, tem cabimento etymologico; se diz respeito á reconstituição das industrias estagnadas, á reedificação das cidades destruidas, tem cabimento tambem. A phrase porém tem um sentido vulgar arbitrariamente mais lato: quando se diz «reconstruir», quer, em geral, dizer-se simplesmente «organizar». E esta idéa de organização não tem origem simplesmente na necessidade de preencher lacunas, que a guerra abrisse, ou de reparar estragos, que os exercitos fizessem. Tem uma, de certo modo, mais vergonhosa origem.

    Durante quatro annos supportaram os alliados embates sobre embates dos allemães. Aguentaram-os conforme os Deuses foram servidos, ora bem, ora mal, ora confiando, ora descrendo, até que o mais velho dos Deuses, o Tempo, lhes concedeu a victoria. E durante esses quatro annos, e atravez da dura experiencia que elles fôram, aprenderam — com que proveito, ainda se não sabe — pelo menos uma cousa. Repararam que a força da Allemanha provinha, não da valentia notavel dos componentes individuaes dos seus exercitos, não da pericia especial dos seus chefes militares, mas de ser na guerra o que era na paz, e na disciplina particular da vida guerreira o que era no geral de toda a sua vida — uma nação plenamente organizada, coherindo dynamicamente em virtude de uma applicação intelligente e estudada dos principios de organização. A inveja é mãe do estimulo, como a curiosidade o é da sciencia; da inveja da organização allemã nasceu o fallar-se tanto em organizar tanta cousa.

    Se é fácil, porém, fallar em organizar, menos fácil é, ao que parece, organizar deveras, ou, pelo menos, indicar como se organize. Nem se pode conceber epocha mais inapta para tomar sobre si o encargo intellectual que a palavra «organização» comporta. Os homens do nosso tempo, destituidos por completo do senso das realidades, extraviados por hypotheticos «direitos», «justiças» e «liberdades» da noção scientifica das cousas, não logram, nem mesmo em theoria, visionar a construção da practica. Um seculo, ou mais, de «principios de 89», um seculo, ou mais, de «liberdade, igualdade, fraternidade» tornou o geral dos europeus, salvo os allemães, obtuso para aquellas noções concretas, com as quaes seguramente se construe o futuro.

    E um estudo, como este, da organização, devia, para ser completo, começar pela eliminação critica de quanto lixo a loucura dos seculos mortos, os idealismos frustes do seculo passado, deixaram nas almas; por uma analyse — facil, afinal — que mostrasse como, desde a Revolução Franceza, o espirito humano, no que politico, retrogradou, e como as idéas de liberdade, de egualdade e de fraternidade, como as teem entendido desde Babeuf aos bolchevistas, não são mais que restos laicos da ideologia christan, drogas de reclame para uso das plebes por educar.

    Isto, porém, estorvaria o intuito directo d’este estudo, que é o de determinar em que principios deve ficar assente qualquer theoria da organização social, e, em especial, da organização social portugueza.

    Supponhamos que queremos organizar a sociedade portugueza; como a organizaremos?

    *

    É evidente que o problema da organização se divide em trez partes, uma das quaes compete ao theorico, e as outras duas ao practico. Temos, primeiro, a determinação do plano ou norma, segundo o qual se vae organizar; temos, depois, a collocação, nos logares que lhes competem, dos homens competentes que hão de effectivar, na practica, essa organização; temos, por ultimo, a coordenação dynamica dos exforços d’esses homens, a maneira especial de pôr a organização em marcha. A primeira parte é de pura theoria, a segunda e a terceira pertencem já á practica. Para a primeira não há senão regras; para a segunda e a terceira não há outra regra senão a realidade, nem outra norma, na segunda parte, senão a intuição na escolha dos homens, e, na terceira, o espirito practico de coordenação de exforços.

    Não nos interessa — escusado é dizel-o — senão aquella parte que é theoria, e é d’essa que vamos tratar. As outras duas partes, que competem aos practicos, não nos interessam porque não podem ser objecto de estudo, nem para ellas ha regras que se possam dar. Antes, porém, de entrarmos na theoria, propriamente dita, vejamos bem de que especie de theoria é que se trata.

    É que ha duas especies de theorias — a theoria puramente scientifica e interpretativa, e a theoria preliminar da acção. A cada uma d’ellas corresponde um modo determinado de analyse, uma attitude especial do espirito. A analyse de um problema para o comprehender não é egual á analyse do mesmo problema para applicar á practica a sua solução. Comprehender involve esmiuçar o mais possivel; resolver involve simplificar: ha, portanto, opposição entre as attitudes do espirito em um, e outro, caso. Quem estuda um problema para o comprehender não tem deante do seu espirito senão esse problema; quem estuda um problema para o resolver e applicar tem deante do seu espirito duas cousas — o problema, e a realidade a que ha de ser applicada a sua solucção. No primeiro caso, a attenção tem que concentrar-se apenas sobre o problema; no segundo, tem que estudar qual a media entre o problema e a realidade. Não é só que o escrupulo normalmente excessivo da comprehensão entibia, de ordinario, a vontade; isso é com o theorista e não com a theoria, e só lhe pode fazer realmente mal se elle pretende ser, além de planeador, o chefe practico da execução do seu plano. É que toda a realização é a diagonal do parallelogramo de forças, cujos lados são a idéa a applicar e a realidade a que ella se aplica.

    Quanto mais concretamente plausivel seja a theoria que se tenta applicar, mais facilmente será applicada; ou, em outras palavras, e para me servir da imagem justa que empreguei, quanto mais pequeno fôr o angulo entre a linha-fôrça da theoria e a linha-fôrça da realidade, menor será o desvio, de ambas, da diagonal da realização.

    Esta é a parte que compete á theoria. A intensidade da fôrça applicada, que graphicamente se representa pelo comprimento da linha, pertence já á practica. D’ella não trataremos, nem podemos tratar.

    Applique-se, agora, esta doutrina. Tratando de organizar, tratamos de organizar qualquer cousa; determinemos primeiro que cousa é essa, para que, desde o principio, possamos limitar a nossa investigação a um ponto concreto. Não se trata — é bem de ver — de uma theoria da organização abstracta, da organização attitude mental, que tanto pode ser applicada a um poema como a um estado, a um tratado de philosophia como a uma empreza de commercio. O que procuramos organizar é a sociedade portugueza;  é sobre esse ponto, e sobre esse apenas, que temos que fazer incidir a nossa investigação.

    O estudo d’esse ponto, porém, desdobra-se em trez partes. Para a analyse, a sociedade portugueza é, primeiro sociedade, e depois sociedade portugueza; temos, portanto, que investigar, primeiro, em que principios deve assentar a organização de qualquer sociedade, e, depois, por que applicação especial d’esses principios deve ser organizada a sociedade portugueza. São estas as duas primeiras partes, mas como nellas apenas se assentam principios, uma terceira parte, derivada e complementar de aquellas, será o estudo dos processos a adoptar para realizar a organização, cujos principios estabeleçam.

    *

    Na investigação dos principios em que deve assentar a organização de qualquer sociedade, tropeçamos, logo de começo, num obstaculo — a ausencia de ponto de apoio scientifico para tal determinação.

    Tomando a imagem da chimica, podemos dizer que a sciencia chamada sociologia está ainda no seu periodo alchimico. De forte e seguro, em materia sociologica ou politica, pouco temos— nós, humanidade em geral—a não ser a «Politica» de Aristoteles, fructo de toda a experiencia politica da Grecia antiga, e «O Principe», de Machiavelli, fructo de toda a experiencia politica da Renascença. Um como outro, habitantes de pequenos estados, onde as engrenagens da politica estavam patentes, podiam colher ensinamentos que são vedados aos subditos de grandes nações, onde a profusão de elementos acidentaes e heterogenos obscurece as grandes linhas, as linhas simples, da realidade substancial. Desde a Revolução Franceza, sobretudo, se perdeu por completo o senso das realidades sociaes, em proveito de theorias abstractas, de sentimentalismos vagos, de imperialismos mysticos e mixtos. E de então para cá, na era dos grandes estados e do internacionalismo crescente, que a progressiva facilidade de communicações e de relações instaurou, ficou sendo completa a obnubilação do senso politico. Foi em meios como estes que nasceram as modernas theorias sociologicas. Não admira que a nada cheguem e de nada sirvam, e que se possa dizer que estamos ante ellas como os velhos diplomatas recommendavam que se estivesse, para aprender, ante o celebre governo da Sicilia: esse governo era uma perfeita lição de administração, pois bastava ver o que ele fazia, e fazer o contrario, para se acertar.

    Privados, assim, de apoio scientifico — pois a propria «Politica» de Aristoteles é mais uma collecção de apontamentos admiraveis do que uma obra scientificamente coherente —, não temos remédio senão entrar sosinhos, e sem mais recursos que a propria lógica, na investigação do problema.

    Não vamos, porém, investigar quaes as leis fundamentais e eternas, pelas quais as sociedades se regem; tal empreza seria, simplesmente, a de escrever um tratado de sociologia. O nosso fim, como já se explicou, é apenas ver o problema em relação á practica; basta, portanto, no caso presente, que descubramos qual a lei, o principio que serve de esteio ás sociedades; se fôr na verdade fundamental, tal qual é nos servirá para o nosso fim practico.

    Limitemos, ainda mais, o problema. Escusamos de procurar o principio fundamental de todas as especies de sociedades; basta que procuremos o que serve de base ás sociedades civilizadas ou progressivas. Mais do que isto não é preciso, pois a uma sociedade civilizada e progressiva (embora atrazada e perturbada) se hão de applicar, por fim, as nossas conclusões. Vemo-nos, assim, livres do que Summer Maine disse ser um problema capital da sociologia — qual a distinção fundamental entre as sociedades susceptiveis e as insusceptiveis de progresso?

    Ora se considerarmos uma sociedade progressiva, a propria designação está dizendo que o seu principio fundamental se liga com o progresso. Escusamos de definir progresso; e assim nos vemos livres de um outro dos pesadellos da sociologia. Para o nosso caso, basta determinar a dynamica do progresso, sem examinar o conteúdo logico do termo.

    O progresso, seja o que fôr, e quer se considere bom quer mau, é, com certeza, uma alteração, e uma alteração envolve o abandono de certos habitos, de certos costumes, de certas normas e attitudes que, por serem velhas, se tornaram queridas, e, por serem usuaes, se tornaram necessarias. A alteração chamada progresso incide, portanto, quando não sobre os instinctos, pelo menos sobre os habitos dos individuos, ou da maioria dos individuos, que compõem uma sociedade. Ora o homem, como todos os animaes, é essencialmente uma creatura de instinctos e de habitos; a sciencia psychologica terá des [3]coberto pouco, mas isso, pelo menos, descobriu. A essencia do progresso é portanto uma coisa que choca os homens no que teem de mais humano; a attitude instinctiva da maioria dos homens perante o progresso é, portanto, a resistência a elle. A resistencia é grande, patente e forte, se a alteração que se tenta fazer é notavel e fere ou muitos habitos ou habitos muito arreigados; de ordinario, e na normalidade do progresso, como este é lento, a resistencia é fraca, e opera como freio e não como obstaculo.

    Temos, pois, que, nas sociedades progressivas, o que ha de fundamental se resume em duas forças — uma que tende a fazer progredir, outra que tende a resistir ao progresso.

    Ora a sciencia constata que tudo quanto vive, vive em virtude do equilibrio de duas forças — uma força de integração e uma força de desintegração. A vitalidade de qualquer sêr está na razão directa do equilibrio d’estas duas forças; com o desequilibrio d’ellas, essa vitalidade diminue.

    A sociedade, como é composta de entes vivos, é, evidentemente regida por esta mesma lei; e isto embora não se queira ter a sociedade por um organismo. Basta que seja composta de entes vivos para que lhe seja aplicada a lei fundamental da vida. Nós constatámos, nas sociedades progressivas, a existencia, precisamente, de duas forças. Applicando a este caso especial aquella lei geral, podemos já concluir que no equilibrio das forças de progresso e de resistencia ao progresso reside a vitalidade de uma nação.

    É quanto precisavamos saber de fundamental. Resta agora que formemos uma idéa clara dos phenomenos que se dão em qualquer sociedade civilizada quando se dá uma ruptura de equilibrio pelo predominio de uma, ou de outra, d’aquellas duas forças.

    Quando a ruptura de equilibrio se dá pelo predominio excessivo da força conservadora, dá-se uma estagnação, um entorpecimento, e o grau d’essa estagnação depende do grau do predomínio da força conservadora. Por atrazada, porém, que seja essa sociedade progressiva, algumas classes haverá, visto que ela é progressiva, que não estejam dispostas a aceitar essa estagnação. Essas classes buscarão progredir, instinctiva ou conscientemente, e esse seu exforço produzirá, tarde ou cedo, dois resultados funestos. O primeiro é que perderão o contacto com as classes estagnadas do paiz, dando-se assim uma quebra de cohesão social, e, portanto, uma baixa da vitalidade nacional, pela desintegração produzida; essa baixa de vitalidade, por sua vez, attingindo-os, ou aos seus descendentes, diminue-lhes tudo quanto trabalha para o progresso — o poder de pensar originalmente, a imaginação construtiva, a vontade directora. O segundo é que, perdido o contacto com as outras classes do paiz, os progressivos são fatalmente levados a viver mentalmente com o estrangeiro, e assim se desnacionalizam, abrindo ainda mais o abysmo entre elles e os outros, que, na sua estagnação, permanecem agarrados ao passado e às tradições nacionaes. E, quando a baixa de vitalidade nacional por fim attinge as classes progressivas, essa vida com o estrangeiro, perdidas já as qualidades que originam e orientam, transforma-se em servilismo desnacionalizado, em mimetismo idiota das coisas que veem de fôra.

    Quando a ruptura de equilibrio se dá pela predominancia da corrente progressiva, acontece que as outras classes, não podendo acompanhar esse progresso (se o pudessem acompanhar não se rompia o equilibrio) e não se adaptando portanto a elle, passam a reagir violentamente, e o paiz cahe na anarchia. como do mesmo modo, que no caso contrario, um abysmo se abre entre as duas partes do paiz, temos a mesma perda de coesão e, portanto, de vitalidade nacional. E como uma d’essas partes, não coerindo com a outra, passa a viver mentalmente do estrangeiro, temos aqui tambem, mas em maior escala, o phenomeno de desnacionalização, que no caso opposto tambem se notou.

    Ha, em dois pontos, similhança entre os resultados dos desequilibrios; em ambos os casos perda de cohesão e de vitalidade nacional, em ambos os casos desnacionalização de parte do paiz. A explicação é simples. É que esses phenomenos são os que caracterizam todas as decadencias, e as decadencias são, por igual, a estagnação em que uma sociedade super-conservadora se enterra, e a anarchia em que cahe uma sociedade super-progressiva.

    No intuito, cuja razão já expliquei, de simplificar o problema, tenho estudado apenas os seus traços fundamentais. Isto não quer dizer que elle não seja, quando estudado com um fim puramente scientifico, muito mais complexo, e que não haja, nos periodos de estagnação, phenomenos de anarchia, nem nos de anarchia, phenomenos de estagnação. Esses phenomenos, porém, são, em cada um dos casos, secundarios; vinco apenas, em cada caso, o phenomeno fundamental e definidor.

    Isto posto, passarei d’esta analyse geral ao estudo particular do problema portuguez.

    *

    Encarando o problema portuguez com o mesmo criterio, e, portanto, com o mesmo proposito de simplificação, constata-se, sem grande trabalho, que na nossa vida nacional se deu uma grande ruptura de equilibrio, e, muito depois, duas outras perturbações, de caracter secundario, e subsidiarias de aquela.

    Onde quer que se colloque o inicio da nossa decadencia — da decadencia resultante do formidavel exforço com que realizámos as descobertas e as conquistas —, ahi se deve collocar o inicio da grande ruptura de equilibrio, que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo, e a morte em tantos combates, precisamente d’aquelles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, em uma sociedade, instinctivamente reagem contra todo o avanço. É um dos casos mais visiveis da creação de uma predominancia das forças conservadoras. Com isto, visto á luz do que se explicou, queda revelado o porquê da nossa decadencia.

    Todos os phenomenos se seguiram, que na devida altura detalhei, como o seguimento fatal da supertradicionalização. O que restava de progressivo desnacionalizou-se depressa. Cavou-se um abysmo entre esses e a maioria do paiz. Em uns e outros, o nivel intellectual, o nivel cultural, o nivel da vontade practica e útil foi baixando. Um ou outro homem de maior destaque surgia e desaparecia, e a sua obra, quando não morria com elle, morria pouco depois, pois não havia cohesão social, por onde se propagasse, nem interesse intellectual, por onde, ao menos, se mantivesse. A Restauração, livrando-nos da maior vergonha externa, não nos livrou, nem trouxe quem nos livrasse, da vergonha interna parallela. Ficámos independentes como paiz e dependentes como individuos. Tornámos a ser portuguezes de nacionalidade, mas nunca mais tornámos a ser portuguezes de mentalidade. Nem portuguezes, nem nada.

    Só da obra do Marquez de Pombal alguma coisa ficou, e isso não pela energia do homem, nem mesmo pelas suas grandes qualidades de organizador, mas pelo ponto de apoio que deu a essa obra — o desenvolvimento industrial e commercial do paiz. No fim d’este estudo se verá a que vem esta observação. O que Pombal creou, porém, sumiu-se com as invasões francezas. Depois d’ellas a nossa desnacionalização teve o seu periodo abysmico: só o nome da nossa independencia nos ficou.

    Pode, á primeira vista, parecer que a implantação do constitucionalismo representa uma reacção do espirito progressivo contra o peso do tradicionalismo. O constitucionalismo, porém, foi uma coisa muito differente: foi um simples phenomeno de desnacionalização. Longe de suspender a nossa decadencia, vincou bem que estavamos em decadencia. Uma reacção do espirito progressivo procuraria reformar a nossa antiga monarchia, procuraria estimular energias, modificar o nosso modo de não-ser economico. Reacção do espirito progressivo foi a obra de Pombal. O constitucionalismo, porém, não fez senão trazer-nos um regimen politico inteiramente estranho a toda a nossa vida nacional, inteiramente inadaptavel a todas as condições, materiaes como culturaes, da nossa verdadeira indole. Destruiu e expoliou inutil e estupidamente, tendo em mira apenas a nossa impossivel adaptação a um regimen que nenhum sentimento portuguez queria, e que a toda a intelligencia verdadeiramente portugueza instinctivamente repugnava. O resultado foi aquella politica que todos nós conhecemos, e que em oitenta anos o afundou. Foi isto o constitucionalismo — um 1640 feito por Miguel de Vasconcellos.

    O unico bem, que o constitucionalismo trouxe, proveiu de um dos seus maiores males. As grandes convulsões sociais, as revoluções, as guerras civis, embora politicamente nada produzam, teem ao menos a vantagem de sacudir energias lethargicas; e é a este genero de mal do constitucionalismo que devemos a eclosão, no seculo passado, de individualidades de destaque relativo, se bem que innegavel. De obra politica, porém, não deixou senão um abysmo maior entre as classes sociaes e uma desnacionalização mais adeantada e corrupta.

    O que se diz do constitucionalismo pode dizer-se, sem perigo de errar, da implantação da Republica. Nenhuma reacção do espirito progressivo a instaurou; foi um phenomeno, ainda mais adeantado, da nossa decadencia, da nossa desnacionalização. Se o regimen constitucional pouquissimo pontos de contacto tem com quanto em nós seja portuguez, a republica franceza que implantaram em Portugal não tem, então nenhuns. Uma reacção verdadeira do espirito progressivo, se achasse indispensavel acabar com o systema constitucional, só o teria feito para reconstruir o nosso antigo systema de regimen, ainda que o fizesse (conceda-se) sob uma forma republicana.

    Dizer da Republica que a sua vinda foi motivada pelos erros e crimes do constitucionalismo vale o mesmo que se se dissesse que a vinda do constitucionalismo fora motivada pelos erros e crimes da velha monarchia; em ambos os casos a justificação é incompleta, pois esses erros e esses crimes podem ser razão para se deitar abaixo o que, com efeito, se derrubou, mas não teem nada que ver com o ter-se posto lá o que, nos dois casos, lá se poz.

    Eis, pois, a nossa situação: fundamentalmente, uma ruptura de equilibrio social por predominancia dos elementos retrogrados e improgressivos; secundariamente, uma crescente desnacionalização, pois que a Republica levou o virus do estrangeirismo a um maior numero de classes do que a monarchia constitucional.

    As condições do problema estão postas. Vamos, agora, á sua solução.

    *

    É evidente que a organização reconstrutiva a dar a uma sociedade, onde se deu uma ruptura de equilibrio varía consoante se trate de uma ruptura de equilibrio por superprogressivismo, ou por supertradicionalização. A supertradicionalização é um mal mais fundo, mas menos grave, que o excesso de espirito progressivo. O ponto é intuitivo: é mais facil fazer ir para a frente mais depressa quem para lá vai indo muito devagar, do que fazer voltar atraz quem vae indo para a frente muito depressa. A base mental da supertradicionalização é a falta de educação e de vitalidade do espirito, no geral do povo; e, nas classes desnacionalizadas, uma educação escassa e viciada. A base mental do desequilibrio opposto, é, em todas as classes, uma educação viciada, de onde deriva a acção excessiva de umas e a reacção violenta de outras. Ora o resultado psychico de uma falta de educação é a ignorancia, a estupidez, a falta de interesse, a carencia de attenção e de vontade; o remedio a empregar deve atingir, portanto, directamente, as qualidades intellectuaes, deve ser de ordem a produzir uma transformação mental da maioria do povo, de todo o povo mesmo, pois, produzida que seja na maioria apathica, esta ou vitaliza ou esmaga a minoria desnacionalizada. Na educação viciada o caso é diferente, porque a educação viciada attinge primordialmente os sentimentos, e dá, marcantemente a perversão do caracter; aqui, como é de vêr, o remédio deve incidir directamente sobre os sentimentos, sobre as qualidades affectivas. Na supertradicionalização, a decadencia revela-se directamente pela estagnação e o atrazo, e apenas secundariamente pela descohesão social e pelo estrangeirismo; o remedio, portanto, sobre dever ser um transformador mental, deve ser directamente adaptado a quebrar o atrazo da nação. No superprogressivismo, a decadencia revela-se directamente pela anarquia e a desnacionalização; o remedio, nesse caso, sobre dever ser um transformador affectivo, deve tender directamente a unir as classes desunidas e fortalecer o patriotismo de todas.

    No caso do superprogressivismo, o remedio é já patente. Há só um processo de transformar affectivamente uma nação inteira, approximando, ao mesmo tempo, as classes desunidas e fortalecendo o patriotismo. Esse remedio é a guerra — uma guerra qualquer, preferivelmente justa, em que violentamente se lance a nação. É, sem dúvida, o processo germanico, a doutrina germanica. [4]Mas isso é para mim uma garantia de que este raciocinio seguiu certo. Sempre que, em matéria de organização, uma theoria é bem pensada, leva-nos a uma conclusão que os allemães já praticaram.

    O caso do remedio para o excesso de espirito progressivo não é, porém, o que nos interessa.

    No caso do superconservantismo, o remedio a applicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e de energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atrazo da nação. Ora ha só um genero de transformação, applicavel a uma nação inteira, e pela qual se lhe avive o espirito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma transformação profissional. E, como se trata de um paiz atrazado, e todos os paizes atrazados são predominantemente agricolas, é evidente que a unica transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização systematica do pais.

    Educação simultaneamente da intelligencia e da vontade, transformador ao mesmo tempo da mentalidade geral e do atrazo material do paiz, o industrialismo systematico, systematicamente applicado, é o remedio para as decadencias de atrazo, é, portanto, o remedio para o mal de Portugal. E se, de ha muito, esse remedio nos tem sido necessario, na conjunctura presente, em que, pelas condições da industria moderna, pode ser rapido e, pelas condições geraes da civilização, tem que ser urgente, passa de ser uma necessidade para ser a primeira de todas as necessidades.

    Detalhar esse plano fundamental, assentar as suas bases practicas, estabelecer o modo de lhe dar realização — nenhuma d’estas cousas é objecto d’este estudo, ou assumpto da minha competencia. O que me cabia fazer está feito.

    Fernando Pessoa

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    COMO ORGANIZAR PORTUGAL

    Quando a guerra findou — como se a guerra alguma vez findasse, ou houvesse neste mundo senão guerra! —; quando, enfim, findou esta guerra de há pouco, passou a ser assunto de primeiro plano aquilo, já de havia bastante discutido, a que mais vulgarmente se chamou «os problemas da reconstrução». A frase é inglesa, e, como participa da nebulosidade mental que caracteriza os ingleses, suscetível de ser mal interpretada. Se o termo diz respeito ao mero restabelecimento das vias normais da vida pacífica, tem cabimento etimológico; se diz respeito à reconstituição das indústrias estagnadas, à reedificação das cidades destruídas, tem cabimento também. A frase porém tem um sentido vulgar arbitrariamente mais lato: quando se diz «reconstruir», quer, em geral, dizer-se simplesmente «organizar». E esta ideia de organização não tem origem simplesmente na necessidade de preencher lacunas, que a guerra abrisse, ou de reparar estragos, que os exércitos fizessem. Tem uma, de certo modo, mais vergonhosa origem.

    Durante quatro anos suportaram os aliados embates sobre embates dos alemães. Aguentaram-nos conforme os Deuses foram servidos, ora bem, ora mal, ora confiando, ora descrendo, até que o mais velho dos Deuses, o Tempo, lhes concedeu a vitória. E durante esses quatro anos, e através da dura experiência que eles foram, aprenderam — com que proveito, ainda se não sabe — pelo menos uma coisa. Repararam que a força da Alemanha provinha, não da valentia notável dos componentes individuais dos seus exércitos, não da perícia especial dos seus chefes militares, mas de ser na guerra o que era na paz, e na disciplina particular da vida guerreira o que era no geral de toda a sua vida — uma nação plenamente organizada, coerindo dinamicamente em virtude de uma aplicação inteligente e estudada dos princípios de organização. A inveja é mãe do estímulo, como a curiosidade o é da ciência; da inveja da organização alemã nasceu o falar-se tanto em organizar tanta coisa.

    Se é fácil, porém, falar em organizar, menos fácil é, ao que parece, organizar deveras, ou, pelo menos, indicar como se organize. Nem se pode conceber época mais inapta para tomar sobre si o encargo intelectual que a palavra «organização» comporta. Os homens do nosso tempo, destituídos por completo do senso das realidades, extraviados por hipotéticos «direitos», «justiças» e «liberdades» da noção científica das coisas, não logram, nem mesmo em teoria, visionar a construção da prática. Um século, ou mais, de «princípios de 89», um século, ou mais, de «liberdade, igualdade, fraternidade» tornou o geral dos europeus, salvo os alemães, obtuso para aquelas noções concretas, com as quais seguramente se constrói o futuro.

    E um estudo, como este, da organização, devia, para ser completo, começar pela eliminação crítica de quanto lixo a loucura dos séculos mortos, os idealismos frustes do século passado, deixaram nas almas; por uma análise — fácil, afinal — que mostrasse como, desde a Revolução Francesa, o espírito humano, no que político, retrogradou, e como as ideias de liberdade, de igualdade e de fraternidade, como as têm entendido desde Babeuf aos bolchevistas, não são mais que restos laicos da ideologia cristã, drogas de reclame para uso das plebes por educar.

    Isto, porém, estorvaria o intuito direto deste estudo, que é o de determinar em que princípios deve ficar assente qualquer teoria da organização social, e, em especial, da organização social portuguesa.

    Suponhamos que queremos organizar a sociedade portuguesa; como a organizaremos?

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    É evidente que o problema da organização se divide em três partes, uma das quais compete ao teórico, e as outras duas ao prático. Temos, primeiro, a determinação do plano ou norma, segundo o qual se vai organizar; temos, depois, a colocação, nos lugares que lhes competem, dos homens competentes que hão de efetivar, na prática, essa organização; temos, por último, a coordenação dinâmica dos esforços desses homens, a maneira especial de pôr a organização em marcha. A primeira parte é de pura teoria, a segunda e a terceira pertencem já à prática. Para a primeira não há senão regras; para a segunda e a terceira não há outra regra senão a realidade, nem outra norma, na segunda parte, senão a intuição na escolha dos homens, e, na terceira, o espírito prático de coordenação de esforços.

    Não nos interessa — escusado é dizê-lo — senão aquela parte que é teoria, e é dessa que vamos tratar. As outras duas partes, que competem aos práticos, não nos interessam porque não podem ser objeto de estudo, nem para elas há regras que se possam dar. Antes, porém, de entrarmos na teoria, propriamente dita, vejamos bem de que espécie de teoria é que se trata.

    É que há duas espécies de teorias — a teoria puramente científica e interpretativa, e a teoria preliminar da ação. A cada uma delas corresponde um modo determinado de análise, uma atitude especial do espírito. A análise de um problema para o compreender não é igual à análise do mesmo problema para aplicar à prática a sua solução. Compreender envolve esmiuçar o mais possível; resolver envolve simplificar: há, portanto, oposição entre as atitudes do espírito em um, e outro, caso. Quem estuda um problema para o compreender não tem diante do seu espírito senão esse problema; quem estuda um problema para o resolver e aplicar tem diante do seu espírito duas coisas — o problema, e a realidade a que há de ser aplicada a sua solução. No primeiro caso, a atenção tem que concentrar-se apenas sobre o problema; no segundo, tem que estudar qual a média entre o problema e a realidade. Não é só que o escrúpulo normalmente excessivo da compreensão entibia, de ordinário, a vontade; isso é com o teorista e não com a teoria, e só lhe pode fazer realmente mal se ele pretende ser, além de planeador, o chefe prático da execução do seu plano. É que toda a realização é a diagonal do paralelogramo de forças, cujos lados são a ideia a aplicar e a realidade a que ela se aplica.

    Quanto mais concretamente plausível seja a teoria que se tenta aplicar, mais facilmente será aplicada; ou, em outras palavras, e para me servir da imagem justa que empreguei, quanto mais pequeno for o ângulo entre a linha-força da teoria e a linha-força da realidade, menor será o desvio, de ambas, da diagonal da realização.

    Esta é a parte que compete à teoria. A intensidade da força aplicada, que graficamente se representa pelo comprimento da linha, pertence já à prática. Dela não trataremos, nem podemos tratar.

    Aplique-se, agora, esta doutrina. Tratando de organizar, tratamos de organizar qualquer coisa; determinemos primeiro que coisa é essa, para que, desde o princípio, possamos limitar a nossa investigação a um ponto concreto. Não se trata — é bem de ver — de uma teoria da organização abstrata, da organização atitude mental, que tanto pode ser aplicada a um poema como a um estado, a um tratado de filosofia como a uma empresa de comércio. O que procuramos organizar é a sociedade portuguesa;  é sobre esse ponto, e sobre esse apenas, que temos que fazer incidir a nossa investigação.

    O estudo desse ponto, porém, desdobra-se em três partes. Para a análise, a sociedade portuguesa é, primeiro sociedade, e depois sociedade portuguesa; temos, portanto, que investigar, primeiro, em que princípios deve assentar a organização de qualquer sociedade, e, depois, por que aplicação especial desses princípios deve ser organizada a sociedade portuguesa. São estas as duas primeiras partes, mas como nelas apenas se assentam princípios, uma terceira parte, derivada e complementar de aquelas, será o estudo dos processos a adotar para realizar a organização, cujos princípios estabeleçam.

    *

    Na investigação dos princípios em que deve assentar a organização de qualquer sociedade, tropeçamos, logo de começo, num obstáculo — a ausência de ponto de apoio científico para tal determinação.

    Tomando a imagem da química, podemos dizer que a ciência chamada sociologia está ainda no seu período alquímico. De forte e seguro, em matéria sociológica ou política, pouco temos — nós, humanidade em geral — a não ser a «Política» de Aristóteles, fruto de toda a experiência política da Grécia antiga, e «O Príncipe», de Machiavelli, fruto de toda a experiência política da Renascença. Um como outro, habitantes de pequenos estados, onde as engrenagens da política estavam patentes, podiam colher ensinamentos que são vedados aos súbditos de grandes nações, onde a profusão de elementos acidentais e heterógenos obscurece as grandes linhas, as linhas simples, da realidade substancial. Desde a Revolução Francesa, sobretudo, se perdeu por completo o senso das realidades sociais, em proveito de teorias abstratas, de sentimentalismos vagos, de imperialismos místicos e mistos. E de então para cá, na era dos grandes estados e do internacionalismo crescente, que a progressiva facilidade de comunicações e de relações instaurou, ficou sendo completa a obnubilação do senso político. Foi em meios como estes que nasceram as modernas teorias sociológicas. Não admira que a nada cheguem e de nada sirvam, e que se possa dizer que estamos ante elas como os velhos diplomatas recomendavam que se estivesse, para aprender, ante o célebre governo da Sicília: esse governo era uma perfeita lição de administração, pois bastava ver o que ele fazia, e fazer o contrário, para se acertar.

    Privados, assim, de apoio científico — pois a própria «Política» de Aristóteles é mais uma coleção de apontamentos admiráveis do que uma obra cientificamente coerente —, não temos remédio senão entrar sozinhos, e sem mais recursos que a própria lógica, na investigação do problema.

    Não vamos, porém, investigar quais as leis fundamentais e eternas, pelas quais as sociedades se regem; tal empresa seria, simplesmente, a de escrever um tratado de sociologia. O nosso fim, como já se explicou, é apenas ver o problema em relação à prática; basta, portanto, no caso presente, que descubramos qual a lei, o princípio que serve de esteio às sociedades; se for na verdade fundamental, tal qual é nos servirá para o nosso fim prático.

    Limitemos, ainda mais, o problema. Escusamos de procurar o princípio fundamental de todas as espécies de sociedades; basta que procuremos o que serve de base às sociedades civilizadas ou progressivas. Mais do que isto não é preciso, pois a uma sociedade civilizada e progressiva (embora atrasada e perturbada) se hão de aplicar, por fim, as nossas conclusões. Vemo-nos, assim, livres do que Summer Maine disse ser um problema capital da sociologia — qual a distinção fundamental entre as sociedades suscetíveis e as insuscetíveis de progresso?

    Ora se considerarmos uma sociedade progressiva, a própria designação está dizendo que o seu princípio fundamental se liga com o progresso. Escusamos de definir progresso; e assim nos vemos livres de um outro dos pesadelos da sociologia. Para o nosso caso, basta determinar a dinâmica do progresso, sem examinar o conteúdo lógico do termo.

    O progresso, seja o que for, e quer se considere bom quer mau, é, com certeza, uma alteração, e uma alteração envolve o abandono de certos hábitos, de certos costumes, de certas normas e atitudes que, por serem velhas, se tornaram queridas, e, por serem usuais, se tornaram necessárias. A alteração chamada progresso incide, portanto, quando não sobre os instintos, pelo menos sobre os hábitos dos indivíduos, ou da maioria dos indivíduos, que compõem uma sociedade. Ora o homem, como todos os animais, é essencialmente uma criatura de instintos e de hábitos; a ciência psicológica terá des [3]coberto pouco, mas isso, pelo menos, descobriu. A essência do progresso é portanto uma coisa que choca os homens no que têm de mais humano; a atitude instintiva da maioria dos homens perante o progresso é, portanto, a resistência a ele. A resistência é grande, patente e forte, se a alteração que se tenta fazer é notável e fere ou muitos hábitos ou hábitos muito arreigados; de ordinário, e na normalidade do progresso, como este é lento, a resistência é fraca, e opera como freio e não como obstáculo.

    Temos, pois, que, nas sociedades progressivas, o que há de fundamental se resume em duas forças — uma que tende a fazer progredir, outra que tende a resistir ao progresso.

    Ora a ciência constata que tudo quanto vive, vive em virtude do equilíbrio de duas forças — uma força de integração e uma força de desintegração. A vitalidade de qualquer ser está na razão direta do equilíbrio destas duas forças; com o desequilíbrio delas, essa vitalidade diminui.

    A sociedade, como é composta de entes vivos, é, evidentemente regida por esta mesma lei; e isto embora não se queira ter a sociedade por um organismo. Basta que seja composta de entes vivos para que lhe seja aplicada a lei fundamental da vida. Nós constatámos, nas sociedades progressivas, a existência, precisamente, de duas forças. Aplicando a este caso especial aquela lei geral, podemos já concluir que no equilíbrio das forças de progresso e de resistência ao progresso reside a vitalidade de uma nação.

    É quanto precisávamos saber de fundamental. Resta agora que formemos uma ideia clara dos fenómenos que se dão em qualquer sociedade civilizada quando se dá uma rutura de equilíbrio pelo predomínio de uma, ou de outra, daquelas duas forças.

    Quando a rutura de equilíbrio se dá pelo predomínio excessivo da força conservadora, dá-se uma estagnação, um entorpecimento, e o grau dessa estagnação depende do grau do predomínio da força conservadora. Por atrasada, porém, que seja essa sociedade progressiva, algumas classes haverá, visto que ela é progressiva, que não estejam dispostas a aceitar essa estagnação. Essas classes buscarão progredir, instintiva ou conscientemente, e esse seu esforço produzirá, tarde ou cedo, dois resultados funestos. O primeiro é que perderão o contacto com as classes estagnadas do país, dando-se assim uma quebra de coesão social, e, portanto, uma baixa da vitalidade nacional, pela desintegração produzida; essa baixa de vitalidade, por sua vez, atingindo-os, ou aos seus descendentes, diminui-lhes tudo quanto trabalha para o progresso — o poder de pensar originalmente, a imaginação construtiva, a vontade diretora. O segundo é que, perdido o contacto com as outras classes do país, os progressivos são fatalmente levados a viver mentalmente com o estrangeiro, e assim se desnacionalizam, abrindo ainda mais o abismo entre eles e os outros, que, na sua estagnação, permanecem agarrados ao passado e às tradições nacionais. E, quando a baixa de vitalidade nacional por fim atinge as classes progressivas, essa vida com o estrangeiro, perdidas já as qualidades que originam e orientam, transforma-se em servilismo desnacionalizado, em mimetismo idiota das coisas que vêm de fora.

    Quando a rutura de equilíbrio se dá pela predominância da corrente progressiva, acontece que as outras classes, não podendo acompanhar esse progresso (se o pudessem acompanhar não se rompia o equilíbrio) e não se adaptando portanto a ele, passam a reagir violentamente, e o país cai na anarquia. como do mesmo modo, que no caso contrário, um abismo se abre entre as duas partes do país, temos a mesma perda de coesão e, portanto, de vitalidade nacional. E como uma dessas partes, não coerindo com a outra, passa a viver mentalmente do estrangeiro, temos aqui também, mas em maior escala, o femómeno de desnacionalização, que no caso oposto tambem se notou.

    Há, em dois pontos, semelhança entre os resultados dos desequilíbrios; em ambos os casos perda de coesão e de vitalidade nacional, em ambos os casos desnacionalização de parte do país. A explicação é simples. É que esses fenómenos são os que caracterizam todas as decadências, e as decadências são, por igual, a estagnação em que uma sociedade superconservadora se enterra, e a anarquia em que cai uma sociedade superprogressiva.

    No intuito, cuja razão já expliquei, de simplificar o problema, tenho estudado apenas os seus traços fundamentais. Isto não quer dizer que ele não seja, quando estudado com um fim puramente científico, muito mais complexo, e que não haja, nos períodos de estagnação, fenómenos de anarquia, nem nos de anarquia, fenómenos de estagnação. Esses fenómenos, porém, são, em cada um dos casos, secundários; vinco apenas, em cada caso, o fenómeno fundamental e definidor.

    Isto posto, passarei desta análise geral ao estudo particular do problema português.

    *

    Encarando o problema português com o mesmo critério, e, portanto, com o mesmo propósito de simplificação, constata-se, sem grande trabalho, que na nossa vida nacional se deu uma grande rutura de equilíbrio, e, muito depois, duas outras perturbações, de caráter secundário, e subsidiárias de aquela.

    Onde quer que se coloque o início da nossa decadência — da decadência resultante do formidável esforço com que realizámos as descobertas e as conquistas —, aí se deve colocar o início da grande rutura de equilíbrio, que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo, e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, em uma sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço. É um dos casos mais visíveis da criação de uma predominância das forças conservadoras. Com isto, visto à luz do que se explicou, queda revelado o porquê da nossa decadência.

    Todos os fenómenos se seguiram, que na devida altura detalhei, como o seguimento fatal da supertradicionalização. O que restava de progressivo desnacionalizou-se depressa. Cavou-se um abismo entre esses e a maioria do país. Em uns e outros, o nível intelectual, o nível cultural, o nível da vontade prática e útil foi baixando. Um ou outro homem de maior destaque surgia e desaparecia, e a sua obra, quando não morria com ele, morria pouco depois, pois não havia coesão social, por onde se propagasse, nem interesse intelectual, por onde, ao menos, se mantivesse. A Restauração, livrando-nos da maior vergonha externa, não nos livrou, nem trouxe quem nos livrasse, da vergonha interna paralela. Ficámos independentes como país e dependentes como indivíduos. Tornámos a ser portugueses de nacionalidade, mas nunca mais tornámos a ser portugueses de mentalidade. Nem portugueses, nem nada.

    Só da obra do Marquês de Pombal alguma coisa ficou, e isso não pela energia do homem, nem mesmo pelas suas grandes qualidades de organizador, mas pelo ponto de apoio que deu a essa obra — o desenvolvimento industrial e comercial do país. No fim deste estudo se verá a que vem esta observação. O que Pombal criou, porém, sumiu-se com as invasões francesas. Depois delas a nossa desnacionalização teve o seu período abísmico: só o nome da nossa independência nos ficou.

    Pode, à primeira vista, parecer que a implantação do constitucionalismo representa uma reação do espírito progressivo contra o peso do tradicionalismo. O constitucionalismo, porém, foi uma coisa muito diferente: foi um simples fenómeno de desnacionalização. Longe de suspender a nossa decadência, vincou bem que estávamos em decadência. Uma reação do espírito progressivo procuraria reformar a nossa antiga monarquia, procuraria estimular energias, modificar o nosso modo de não-ser económico. Reação do espírito progressivo foi a obra de Pombal. O constitucionalismo, porém, não fez senão trazer-nos um regímen político inteiramente estranho a toda a nossa vida nacional, inteiramente inadaptável a todas as condições, materiais como culturais, da nossa verdadeira índole. Destruiu e expoliou inútil e estupidamente, tendo em mira apenas a nossa impossível adaptação a um regímen que nenhum sentimento português queria, e que a toda a inteligência verdadeiramente portuguesa instintivamente repugnava. O resultado foi aquela política que todos nós conhecemos, e que em oitenta anos o afundou. Foi isto o constitucionalismo — um 1640 feito por Miguel de Vasconcelos.

    O único bem, que o constitucionalismo trouxe, proveio de um dos seus maiores males. As grandes convulsões sociais, as revoluções, as guerras civis, embora politicamente nada produzam, têm ao menos a vantagem de sacudir energias letárgicas; e é a este género de mal do constitucionalismo que devemos a eclosão, no século passado, de individualidades de destaque relativo, se bem que inegável. De obra política, porém, não deixou senão um abismo maior entre as classes sociais e uma desnacionalização mais adiantada e corrupta.

    O que se diz do constitucionalismo pode dizer-se, sem perigo de errar, da implantação da República. Nenhuma reação do espírito progressivo a instaurou; foi um fenómeno, ainda mais adiantado, da nossa decadência, da nossa desnacionalização. Se o regímen constitucional pouquíssimos pontos de contacto tem com quanto em nós seja português, a república francesa que implantaram em Portugal não tem, então nenhuns. Uma reação verdadeira do espírito progressivo, se achasse indispensável acabar com o sistema constitucional, só o teria feito para reconstruir o nosso antigo sistema de regímen, ainda que o fizesse (conceda-se) sob uma forma republicana.

    Dizer da República que a sua vinda foi motivada pelos erros e crimes do constitucionalismo vale o mesmo que se se dissesse que a vinda do constitucionalismo fora motivada pelos erros e crimes da velha monarquia; em ambos os casos a justificação é incompleta, pois esses erros e esses crimes podem ser razão para se deitar abaixo o que, com efeito, se derrubou, mas não têm nada que ver com o ter-se posto lá o que, nos dois casos, lá se pôs.

    Eis, pois, a nossa situação: fundamentalmente, uma rutura de equilíbrio social por predominância dos elementos retrógrados e improgressivos; secundariamente, uma crescente desnacionalização, pois que a República levou o vírus do estrangeirismo a um maior número de classes do que a monarquia constitucional.

    As condições do problema estão postas. Vamos, agora, à sua solução.

    *

    É evidente que a organização reconstrutiva a dar a uma sociedade, onde se deu uma rutura de equilíbrio varia consoante se trate de uma rutura de equilíbrio por superprogressivismo, ou por supertradicionalização. A supertradicionalização é um mal mais fundo, mas menos grave, que o excesso de espírito progressivo. O ponto é intuitivo: é mais fácil fazer ir para a frente mais depressa quem para lá vai indo muito devagar, do que fazer voltar atrás quem vai indo para a frente muito depressa. A base mental da supertradicionalização é a falta de educação e de vitalidade do espírito, no geral do povo; e, nas classes desnacionalizadas, uma educação escassa e viciada. A base mental do desequilíbrio oposto, é, em todas as classes, uma educação viciada, de onde deriva a ação excessiva de umas e a reação violenta de outras. Ora o resultado psíquico de uma falta de educação é a ignorância, a estupidez, a falta de interesse, a carência de atenção e de vontade; o remédio a empregar deve atingir, portanto, diretamente, as qualidades intelectuais, deve ser de ordem a produzir uma transformação mental da maioria do povo, de todo o povo mesmo, pois, produzida que seja na maioria apática, esta ou vitaliza ou esmaga a minoria desnacionalizada. Na educação viciada o caso é diferente, porque a educação viciada atinge primordialmente os sentimentos, e dá, marcantemente a perversão do carácter; aqui, como é de ver, o remédio deve incidir diretamente sobre os sentimentos, sobre as qualidades afetivas. Na supertradicionalização, a decadência revela-se diretamente pela estagnação e o atraso, e apenas secundariamente pela descoesão social e pelo estrangeirismo; o remédio, portanto, sobre dever ser um transformador mental, deve ser diretamente adaptado a quebrar o atraso da nação. No superprogressivismo, a decadência revela-se diretamente pela anarquia e a desnacionalização; o remédio, nesse caso, sobre dever ser um transformador afetivo, deve tender diretamente a unir as classes desunidas e fortalecer o patriotismo de todas.

    No caso do superprogressivismo, o remédio é já patente. Há só um processo de transformar afetivamente uma nação inteira, aproximando, ao mesmo tempo, as classes desunidas e fortalecendo o patriotismo. Esse remédio é a guerra — uma guerra qualquer, preferivelmente justa, em que violentamente se lance a nação. É, sem dúvida, o processo germânico, a doutrina germânica. [4]Mas isso é para mim uma garantia de que este raciocínio seguiu certo. Sempre que, em matéria de organização, uma teoria é bem pensada, leva-nos a uma conclusão que os alemães já praticaram.

    O caso do remédio para o excesso de espírito progressivo não é, porém, o que nos interessa.

    No caso do superconservantismo, o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e de energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atraso da nação. Ora há só um género de transformação, aplicável a uma nação inteira, e pela qual se lhe avive o espírito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma transformação profissional. E, como se trata de um país atrasado, e todos os países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização sistemática do país.

    Educação simultaneamente da inteligência e da vontade, transformador ao mesmo tempo da mentalidade geral e do atraso material do país, o industrialismo sistemático, sistematicamente aplicado, é o remédio para as decadências de atraso, é, portanto, o remédio para o mal de Portugal. E se, de há muito, esse remédio nos tem sido necessário, na conjuntura presente, em que, pelas condições da indústria moderna, pode ser rápido e, pelas condições gerais da civilização, tem que ser urgente, passa de ser uma necessidade para ser a primeira de todas as necessidades.

    Detalhar esse plano fundamental, assentar as suas bases práticas, estabelecer o modo de lhe dar realização — nenhuma destas coisas é objeto deste estudo, ou assunto da minha competência. O que me cabia fazer está feito.

    Fernando Pessoa

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