-
COMO FERNANDO PESSOA VÊ ANTONIO BOTTO
O seu lirismo e a sua paixão
O livro «Ciume» de Antonio Botto representa uma nova fase da sua fase de sempre. Certos elementos, dos que compõem a essencia dos seus poemas, emergem neste livro mais declarada ou distintivamente do que em seus livros anteriores. É esta a diferença, que poderá ser tida por pequena ou por grande consoante a sensibilidade de cada um e a reacção dessa sensibilidade perante uns e outros poemas — os da fase anterior e os da presente.
De um modo geral, ainda que concreto, pode dizer-se que a obra poetica de Antonio Botto gira e se anima em torno de quatro idéas, ou estados mentais — a emoção sem paixão, a inteligencia das superficies, o sentimento contraditorio, e a ironia emotiva. Estes quatro elementos não são, porém, diversos, desconexos ou simplesmente juxta-postos: derivam de um mesmo fundo temperamental, que por todos eles igual e concordantemente se manifesta.
Por emoção sem paixão entendo, como sem dificuldades entenderá qualquer, que os estados emotivos do poeta não comportam, nem envolvem, nenhum aprofundamento ou intensificação. Antonio Botto não analisa emotivamente as suas emoções, nem de tal modo nelas se concentra que automaticamente, se animem, aqueçam, se convertam em paixões.
Com analise emotiva das emoções — em oposição implicita á analise intelectual delas — quero significar aquele estado em que o poeta, ou o homem, se concentra sonhadoramente no que sente, e assim o multiplica, o desdobra, o sente diversa e divididamente. Tal estado merece o nome de paixão, não porque envolva intensidade, mas porque implica absorção. Antonio Botto não se dá tal estado. As suas emoções são simples e directas, embora os seus sentimentos — isto é, os prolongamentos temperamentais de essas emoções sejam porventura complicados. Isto, porém, é já outro assunto, de que mais adiante se tratará.
Se não existe em Antonio Botto essa analise emotiva das emoções, tampouco existe, ainda menos existe a paixão propriamente dita — aquela exaltação da emoção por meio da qual esta exclui todo outro elemento, e, concentrandose num ponto ou fito, imprime ao espirito uma unidade emotiva.
Por inteligencia das superficies entendo, como é intuitivo, aquela inteligencia que se preocupa tam sómente com os aspectos exteriores das coisas — quer os seres externos, a que comumente chamamos coisas, quer aqueles seres internos, a que comumente chamamos emoções. Se Antonio Botto pouco se preocupa com a analise emotiva das suas emoções, tam pouco ou menos ainda se preocupa com a analise intelectual delas. Deixa-as passar e fita-as bem. Se por vezes lhes desdobra os mantos, todavia, nunca as interroga. «Deixa-me vêr como és por fóra», diz ele a cada coisa que sente.
Isto ficará mais claro, ou, se se preferir, menos obscuro, se compararmos a acção da inteligencia das superficies com a dos dois outros tipos de inteligencia, a que poderemos chamar a inteligencia de aprofundamento e a inteligencia de definição. A primeira busca ir até ao fundo das coisas, á alma e essencia dos seres, e pode ser intuitiva e até, por isso mesmo, extra-intelectual. A segunda, atenta ao mesmo fito, não pretende consegui-lo por um processo de sondagem, mais analogo á visão que ao entendimento: procura antes, por uma analise paciente da superficie, deduzir dela o fundo, vêr nela não o que ela é, mas o que simbolisa ou figura. Por isso, na exposição, a inteligencia de aprofundamento é normalmente gnomica ou analogica, a de definição normalmente raciocinada ou discursiva. É que esta vive mais do processo do que do intuito dele.
É evidente que a inteligencia de definição de pouco ou de nada serve a um poeta: seu ritmo é de natureza oposta ao ritmo da emoção, em que a poesia assenta: dá-se uma interferencia de ondas, e portanto uma anulação de efeitos, como em Boileau ou Pope, que são prosadores em verso. E a inteligencia de aprofundamento, se devéras pode servi-lo, muitas vezes estorva com o que dá e confunde com o que afirma; são duas visões simultaneas — uma do fundo, outra da superfície; só quando, o que é raro, exactamente se sobrepõem, surge, como no Kubla Khan de Coleridge, uma grande obra de arte, e então como que sobrenatural. Uma e outra valem mais, para o poeta, nos seus reflexos do que nas suas presenças: servem-o desde que ele se não sirva delas. Assim Poe, prodigioso raciocinador, escreveu poemas admiraveis, sem sombra de raciocinio, porque sabia raciocinar: o raciocinio ausente está presente no facto de esses poemas não serem, como em substancia são, simples loucura. Assim Shakespeare, prodigioso aprofundador, escreveu versos espantosos, sem sombra de aprofundamento, porque sabia aprofundar: a frase, naturalmente natural, vive da luz que lhe ministra uma presença que lhe é estranha.
Por sentimento contraditorio quere dizer aquela subtileza da emoção consigo mesma, pela qual imediatamente compreende que traz sempre em si dois elementos opostos. Toda emoção sentida é a diagonal de um paralelograma de forças: vive de ambas e a ambas anula. Como toda a vida é, de um modo ou de outro, um sistema de atracção e repulsão, tudo quanto sentimos contém obscuramente duas forças, essas duas forças; e ha certos estados de sentimento — entendendo este como a permaente, da emoção — em que a diagonal se decompõe, talvez por fraquesa em sentir, nas duas forças de que se forma. Então o espirito toma consciencia de cada emoção como dupla, de cada sentimento como a contradição de si mesmo. O homem sente que, ao sentir, é dois. É o odi et amo de Catulo.
Foi sempre esta uma das feições mais constantes e mais caracteristicas, da obra poetica ou outra, de Antonio Botto. Sempre ele se mostrou sentindo o contrario do que estava a sentir. Sempre ele disse, ao mesmo tempo o avesso do que dizia. O mesmo ritmo de todos os seus versos traz, no fluxo audivel, o sussurro implicito do refluxo que se lhe vai seguir.
A ironia emotiva nasce naturalmente do sentimento contraditorio, desde que a paixão não intervenha, ou a inteligencia não seja de aprofundar ou definir. Se a paixão intervem, a contradição do sentimento sofre-se com revolta. Se a inteligencia aprofunda ou define, a contradição do sentimento repele-se com raiva. Se, como em Antonio Botto, nem uma nem outra coisa se dá, a contradição do sentimento aceita-se com um sorriso — um sorriso triste, talvez, mas um sorriso triste é, em si mesmo, uma contradição e uma ironia.
Que está, afinal, no fundo de tudo isto? Um temperamento conscientemente emotivo, que, por emotivo exclui tanto a paixão como as formas intensas da inteligencia; que, por consciente, conhece as suas contradições e se alimenta da ironia delas. Em resumo, Antonio Botto. E assim o que a analise dividira em quatro, tem a mesma logica que reconhecer que a vida reunira em um.
Em seus livros anteriores, Antonio Botto afirmara-se mais como só um emotivo sem paixão e um contraditorio de sentimentos. Neste, melhor consigo, estabelece-se como tambem um inteligente das superficies e um ironista das suas emoções. Em outras palavras, revela-se, agora, o total de si mesmo.
E isto, que se diz em poucas palavras, levou tantas para dizer que se ia dizer!
FERNANDO PESSOA
-
COMO FERNANDO PESSOA VÊ ANTÓNIO BOTTO
O seu lirismo e a sua paixão
O livro «Ciúme» de António Botto representa uma nova fase da sua fase de sempre. Certos elementos, dos que compõem a essência dos seus poemas, emergem neste livro mais declarada ou distintivamente do que em seus livros anteriores. É esta a diferença, que poderá ser tida por pequena ou por grande consoante a sensibilidade de cada um e a reação dessa sensibilidade perante uns e outros poemas — os da fase anterior e os da presente.
De um modo geral, ainda que concreto, pode dizer-se que a obra poética de António Botto gira e se anima em torno de quatro ideias, ou estados mentais — a emoção sem paixão, a inteligência das superfícies, o sentimento contraditório, e a ironia emotiva. Estes quatro elementos não são, porém, diversos, desconexos ou simplesmente justapostos: derivam de um mesmo fundo temperamental, que por todos eles igual e concordantemente se manifesta.
Por emoção sem paixão entendo, como sem dificuldades entenderá qualquer, que os estados emotivos do poeta não comportam, nem envolvem, nenhum aprofundamento ou intensificação. António Botto não analisa emotivamente as suas emoções, nem de tal modo nelas se concentra que automaticamente, se animem, aqueçam, se convertam em paixões.
Com análise emotiva das emoções — em oposição implícita à análise intelectual delas — quero significar aquele estado em que o poeta, ou o homem, se concentra sonhadoramente no que sente, e assim o multiplica, o desdobra, o sente diversa e divididamente. Tal estado merece o nome de paixão, não porque envolva intensidade, mas porque implica absorção. António Botto não se dá tal estado. As suas emoções são simples e diretas, embora os seus sentimentos — isto é, os prolongamentos temperamentais de essas emoções sejam porventura complicados. Isto, porém, é já outro assunto, de que mais adiante se tratará.
Se não existe em António Botto essa análise emotiva das emoções, tão-pouco existe, ainda menos existe a paixão propriamente dita — aquela exaltação da emoção por meio da qual esta exclui todo outro elemento, e, concentrando-se num ponto ou fito, imprime ao espírito uma unidade emotiva.
Por inteligência das superfícies entendo, como é intuitivo, aquela inteligência que se preocupa tão-somente com os aspetos exteriores das coisas — quer os seres externos, a que comummente chamamos coisas, quer aqueles seres internos, a que comummente chamamos emoções. Se António Botto pouco se preocupa com a análise emotiva das suas emoções, tão-pouco ou menos ainda se preocupa com a análise intelectual delas. Deixa-as passar e fita-as bem. Se por vezes lhes desdobra os mantos, todavia, nunca as interroga. «Deixa-me ver como és por fora», diz ele a cada coisa que sente.
Isto ficará mais claro, ou, se se preferir, menos obscuro, se compararmos a ação da inteligência das superfícies com a dos dois outros tipos de inteligência, a que poderemos chamar a inteligência de aprofundamento e a inteligência de definição. A primeira busca ir até ao fundo das coisas, à alma e essência dos seres, e pode ser intuitiva e até, por isso mesmo, extraintelectual. A segunda, atenta ao mesmo fito, não pretende consegui-lo por um processo de sondagem, mais análogo à visão que ao entendimento: procura antes, por uma análise paciente da superfície, deduzir dela o fundo, ver nela não o que ela é, mas o que simboliza ou figura. Por isso, na exposição, a inteligência de aprofundamento é normalmente gnómica ou analógica, a de definição normalmente raciocinada ou discursiva. É que esta vive mais do processo do que do intuito dele.
É evidente que a inteligência de definição de pouco ou de nada serve a um poeta: seu ritmo é de natureza oposta ao ritmo da emoção, em que a poesia assenta: dá-se uma interferência de ondas, e portanto uma anulação de efeitos, como em Boileau ou Pope, que são prosadores em verso. E a inteligência de aprofundamento, se deveras pode servi-lo, muitas vezes estorva com o que dá e confunde com o que afirma; são duas visões simultâneas — uma do fundo, outra da superfície; só quando, o que é raro, exatamente se sobrepõem, surge, como no Kubla Khan de Coleridge, uma grande obra de arte, e então como que sobrenatural. Uma e outra valem mais, para o poeta, nos seus reflexos do que nas suas presenças: servem-no desde que ele se não sirva delas. Assim Poe, prodigioso raciocinador, escreveu poemas admiráveis, sem sombra de raciocínio, porque sabia raciocinar: o raciocínio ausente está presente no facto de esses poemas não serem, como em substância são, simples loucura. Assim Shakespeare, prodigioso aprofundador, escreveu versos espantosos, sem sombra de aprofundamento, porque sabia aprofundar: a frase, naturalmente natural, vive da luz que lhe ministra uma presença que lhe é estranha.
Por sentimento contraditório quer dizer aquela subtileza da emoção consigo mesma, pela qual imediatamente compreende que traz sempre em si dois elementos opostos. Toda emoção sentida é a diagonal de um paralelograma de forças: vive de ambas e a ambas anula. Como toda a vida é, de um modo ou de outro, um sistema de atração e repulsão, tudo quanto sentimos contém obscuramente duas forças, essas duas forças; e há certos estados de sentimento — entendendo este como a permaente, da emoção — em que a diagonal se decompõe, talvez por fraqueza em sentir, nas duas forças de que se forma. Então o espírito toma consciência de cada emoção como dupla, de cada sentimento como a contradição de si mesmo. O homem sente que, ao sentir, é dois. É o odi et amo de Catulo.
Foi sempre esta uma das feições mais constantes e mais características, da obra poética ou outra, de António Botto. Sempre ele se mostrou sentindo o contrário do que estava a sentir. Sempre ele disse, ao mesmo tempo o avesso do que dizia. O mesmo ritmo de todos os seus versos traz, no fluxo audível, o sussurro implícito do refluxo que se lhe vai seguir.
A ironia emotiva nasce naturalmente do sentimento contraditório, desde que a paixão não intervenha, ou a inteligência não seja de aprofundar ou definir. Se a paixão intervém, a contradição do sentimento sofre-se com revolta. Se a inteligência aprofunda ou define, a contradição do sentimento repele-se com raiva. Se, como em António Botto, nem uma nem outra coisa se dá, a contradição do sentimento aceita-se com um sorriso ― um sorriso triste, talvez, mas um sorriso triste é, em si mesmo, uma contradição e uma ironia.
Que está, afinal, no fundo de tudo isto? Um temperamento conscientemente emotivo, que, por emotivo exclui tanto a paixão como as formas intensas da inteligência; que, por consciente, conhece as suas contradições e se alimenta da ironia delas. Em resumo, António Botto. E assim o que a análise dividira em quatro, tem a mesma lógica que reconhecer que a vida reunira em um.
Em seus livros anteriores, António Botto afirmara-se mais como só um emotivo sem paixão e um contraditório de sentimentos. Neste, melhor consigo, estabelece-se como também um inteligente das superfícies e um ironista das suas emoções. Em outras palavras, revela-se, agora, o total de si mesmo.
E isto, que se diz em poucas palavras, levou tantas para dizer que se ia dizer!
FERNANDO PESSOA
Como Fernando Pessoa vê António Botto
Fernando Pessoa
Suplemento Literário do Diário de Lisboa , 1 de março de 1935, p. 6.