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Carta ao autor de ʺSácháʺ

Fernando Pessoa

Contemporânea 8, fevereiro de 1923, pp. 93-95.

  • [93]

    CARTA AO AUTHOR DE "SÁCHÁ"

    Meu querido Francisco Manuel:

    ACABO de conviver, como se fôsse consigo, com a leitura da sua novella-film «Sáchá». Olhei-lhe os episodios, mais que os li. Atravessei-os como quem passa por gente. E tive o prazer de que foi acompanhando-o que fiz essa travessia bariolée.

    Não direi, da sua novella, que ella é notavel como litteratura. Digo, porém, que é notavel como elegancia. A sua intenção, supponho, não foi que ella fôsse outra cousa. Fez v. bem, que o proprio da elegancia é não aspirar senão a sel-o.

    Raros, de entre os que escrevem, podem ser verdadeiramente escriptores ― isto é, escriptores superiormente, artistas pela palavra escripta. O exercicio superior das lettras exige, como toda a especialidade superior, uma predisposição complexa, e uma preparação complexa tambem. Quanto á predisposição, nada ha que dizer senão que ou se nasce com ella, ou de todo se não possue. Quanto á preparação, poucos ha, mesmo entre os de certo modo predispostos, que supportem sem inconstancia a disciplina que devem querer impôr-se. E, mesmo assim, uma predisposição, embora grande, e uma preparação, embora constante, ha mistér que tenham sido, equilibrada a primeira, e começada a segunda, por uma educação feliz na infancia; o que procede de circumstancias em que nem a herança organica, nem a escolha propria, são elementos causaes. Nem deve esquecer que a influencia do meio, em que vive o escriptor já adulto, collabora no resultado. Com tantos e tão diversos elementos construe o Destino, assim em litteratura como em outro qualquer modo da intelligencia, o accidente final a que se chama o genio.

    Em grande numero dos que escrevem, portanto, ou o escrever é um simples vehiculo de idéas, e elles serão philosophos, porém não são escri [94]ptores; ou a litteratura é uma profissão, que exercem, e não serão elles artistas, senão artifices; ou o que escrevem é conscientemente uma distracção de seu espirito, escripta para que se entretenham os outros com aquillo, com que o proprio author se entreteve. Não fallo dos que escrevem fóra d’estas trez razões, e suppondo que são escriptores verdadeiros. Esses, que são a maioria, não são nada.

    N’estes trez typos do escriptor, que propriamente o não é, um só resultado litterario nos pode prender o espirito ― a approximação, que haja em suas obras, da verdadeira litteratura. No pensador isto dá-se quando a força da intenção aquece, por sua mesma violencia, a phrase e a palavra, e a eloquencia surge como voz do pensamento. No artifice das lettras isto acontece quando a habilidade do fazedor simula de perto, pela acção justa de um instincto mimetico, o escrupulo do artista. No «entretido» isto resulta quando, sendo a sua personalidade intelligentemente interessante, elle consegue transpôl-a inconscientemente para o que escreve; não tanto escrevendo, quanto fallando-nos por escripto.

    V. e o seu «Sáchá» estão no caso d’esta terceira especie. Como v. tem uma personalidade decorativamente rica, havia com que interessar, logo que fôsse espontaneo na manifestação d’ella. E v. foi espontaneo: escreveu sem pensar que escrevia, escreveu pensando só em si. Porisso pôde confiar aos quadros da sua novella o segredo subtil de quem é. Porisso a fallou, mais que a escreveu; e os episodios da sua narrativa imprecisa participam da sua propria graça e da sua elegancia inimitavel.

    A sua personalidade futil, feminil, escandalosamente europeia, complicadamente sociavel, predestinada póro a póro para todas as astucias da elegancia e todas as subtilezas de conhecel-o, transparece coloridamente no seu livro. E, se n’elle v. faz tão naturalmente, com um conhecimento tão authentico e organico, a cinematographia local do semi-cosmopolitismo elegante, producto da invasão das aristocracias pela grande finança, e em o qual as maneiras são cada vez mais um accidente da moda, e a futilidade cada vez mais uma funcção do aborrecimento, não é senão porque tudo isso vive em si, e porque essa atmosphera social é uma componente do seu espirito.

    E, ainda que não houvesse estas razões geraes para que v. encantasse, revelando-se, haveria outras, particulares, e que sobremaneira prendem (pela ironia, para comnosco, do contraste) os espiritos da minha indole. Não são essas razões motivos para que todos appreciem o «Sáchá»; porisso digo que são particulares, e as dou apenas como minhas.

    A mim, espirito especulativo e metaphysico, e porisso triste e desgracioso, fascina-me a attracção do seu constraste commigo. V., sendo como é, põe elegancia em tudo; eu, ainda que fôsse elegante em alguma cousa, de tal modo o seria que o não seria. O emprego excessivo e absorvente da intelligencia, o abuso da sinceridade, o escrupulo da justiça, a preoccupa [95]ção da analyse, que nada acceita como se pudesse ser o que se mostra, são qualidades que poderão um dia tornar-me notavel; privam, porém, de toda especie de elegancia, porque não permittem nenhuma illusão de felicidade.

    Os espiritos constituidos como o meu nascem velhos e vivem vencidos. A mais esplendorosa mocidade physica, se por acaso a temos, não chega nunca ao nosso espirito; a maior celebridade tem sempre para nós um sabor soturno de derrota, um laivo cruel de inutilidade e de erro. Força é que tomemos tudo a serio: a futilidade, portanto, é-nos extrangeira. Porisso, ao tornar-nos conscientes, adquirimos para com ella, que por natureza é moça, uma das attitudes dos velhos para com a mocidade: nos peores de indole, a amargura e o despeito do excluido; nos melhores, o carinho triste do saudoso. Tive, creio, a felicidade unica de, tendo que ser d’estes , não ser dos peores. Porisso me fascina, como disse, o contraste de v. commigo; da sua mocidade ingenita, da sua futilidade triumphal, com o meu cansaço innato de predestinado á derrota, ainda que ella possa chamar-se victoria.

    V. nasceu vencedor, porque as fadas no seu nascimento, enganaram a fada maligna. Não venceu v. como os que vencem pela victoria, com o conseguimento, que sempre pesa porque existe; com o exforço, que é sempre vil porque fatiga; com o merecimento, que é racional e porisso sem vida. O seu fado foi mais menino. Coube-lhe a victoria como vida, que não como victoria. Deram-lhe amorosamente como berço o que aos melhores de nós, que nos maltratamos, de mau grado cabe como tumba.

    Desejo-lhe, meu querido Francisco Manuel, que nunca passe do seu ar e dos seus gestos a mocidade que o Destino lhe concedeu, como a um jovem deus, não como episodio passageiro e mortal da edade, senão como segredo da vida e carne do proprio sentimento.

    Guardo do que v. escreveu a memoria dispersa e nitida que fica dos perfumes. Não é a reminiscencia de uma cousa espiritual, porém não o é de uma cousa da materia. Vive no intervallo das cousas que podem definir-se. É uma aura, uma atmosphera, uma agrado indistincto, uma presença para quem sorrimos. Neste caso é v. mesmo.

    Tudo mais é philosophia.

    FERNANDO PESSOA

  • [93]

    CARTA AO AUTOR DE "SÁCHÁ"

    Meu querido Francisco Manuel:

    ACABO de conviver, como se fosse consigo, com a leitura da sua novela-filme «Sáchá». Olhei-lhe os episódios, mais que os li. Atravessei-os como quem passa por gente. E tive o prazer de que foi acompanhando-o que fiz essa travessia bariolée.

    Não direi, da sua novela, que ela é notável como literatura. Digo, porém, que é notável como elegância. A sua intenção, suponho, não foi que fosse outra coisa. Fez v. bem, que o próprio da elegância é não aspirar senão a sê-lo.

    Raros, de entre os que escrevem, podem ser verdadeiramente escritores ― isto é, escritores superiormente, artistas pela palavra escrita. O exercício superior das letras exige, como toda a especialidade superior, uma predisposição complexa, e uma preparação complexa também. Quanto à predisposição, nada há que dizer senão que ou se nasce com ela, ou de todo se não possui. Quanto à preparação, poucos há, mesmo entre os de certo modo predispostos, que suportem sem inconstância a disciplina que devem querer impor-se. E, mesmo assim, uma predisposição, embora grande, e uma preparação, embora constante, há mister que tenham sido, equilibrada a primeira, e começada a segunda, por uma educação feliz na infância; o que procede de circunstâncias em que nem a herança orgânica, nem a escolha própria, são elementos causais. Nem deve esquecer que a influência do meio, em que vive o escritor já adulto, colabora no resultado. Com tantos e tão diversos elementos constrói o Destino, assim em literatura como em outro qualquer modo da inteligência, o acidente final a que se chama o génio.

    Em grande número dos que escrevem, portanto, ou o escrever é um simples veículo de ideias, e eles serão filósofos, porém não são escri [94]tores; ou a literatura é uma profissão, que exercem, e não serão eles artistas, senão artífices; ou o que escrevem é conscientemente uma distração de seu espírito, escrita para que se entretenham os outros com aquilo, com que o próprio autor se entreteve. Não falo dos que escrevem fora destas três razões, e supondo que são escritores verdadeiros. Esses, que são a maioria, não são nada.

    Nestes três tipos do escritor, que propriamente o não é, um só resultado literário nos pode prender o espírito ― a aproximação, que haja em suas obras, da verdadeira literatura. No pensador isto dá-se quando a força da intenção aquece, por sua mesma violência, a frase e a palavra, e a eloquência surge como voz do pensamento. No artífice das letras isto acontece quando a habilidade do fazedor simula de perto, pela ação justa de um instinto mimético, o escrúpulo do artista. No «entretido» isto resulta quando, sendo a sua personalidade inteligentemente interessante, ele consegue transpô-la inconscientemente para o que escreve; não tanto escrevendo, quanto falando-nos por escrito.

    V. e o seu «Sáchá» estão no caso desta terceira espécie. Como v. tem uma personalidade decorativamente rica, havia com que interessar, logo que fosse espontâneo na manifestação dela. E v. foi espontâneo: escreveu sem pensar que escrevia, escreveu pensando só em si. Por isso pôde confiar aos quadros da sua novela o segredo subtil de quem é. Por isso a falou, mais que a escreveu; e os episódios da sua narrativa imprecisa participam da sua própria graça e da sua elegância inimitável.

    A sua personalidade fútil, feminil, escandalosamente europeia, complicadamente sociável, predestinada poro a poro para todas as astúcias da elegância e todas as subtilezas de conhecê-lo, transparece coloridamente no seu livro. E, se nele v. faz tão naturalmente, com um conhecimento tão autêntico e orgânico, a cinematografia local do semicosmopolitismo elegante, produto da invasão das aristocracias pela grande finança, e em o qual as maneiras são cada vez mais um acidente da moda, e a futilidade cada vez mais uma função do aborrecimento, não é senão porque tudo isso vive em si, e porque essa atmosfera social é uma componente do seu espírito.

    E, ainda que não houvesse estas razões gerais para que v. encantasse, revelando-se, haveria outras, particulares, e que sobremaneira prendem (pela ironia, para connosco, do contraste) os espíritos da minha índole. Não são essas razões motivos para que todos apreciem o «Sáchá»; por isso digo que são particulares, e as dou apenas como minhas.

    A mim, espírito especulativo e metafísico, e por isso triste e desgracioso, fascina-me a atração do seu contraste comigo. V., sendo como é, põe elegância em tudo; eu, ainda que fosse elegante em alguma coisa, de tal modo o seria que o não seria. O emprego excessivo e absorvente da inteligência, o abuso da sinceridade, o escrúpulo da justiça, a preocupa [95]ção da análise, que nada aceita como se pudesse ser o que se mostra, são qualidades que poderão um dia tornar-me notável; privam, porém, de toda espécie de elegância, porque não permitem nenhuma ilusão de felicidade.

    Os espíritos constituídos como o meu nascem velhos e vivem vencidos. A mais esplendorosa mocidade física, se por acaso a temos, não chega nunca ao nosso espírito; a maior celebridade tem sempre para nós um sabor soturno de derrota, um laivo cruel de inutilidade e de erro. Força é que tomemos tudo a sério: a futilidade, portanto, é-nos estrangeira. Por isso, ao tornar-nos conscientes, adquirimos para com ela, que por natureza é moça, uma das atitudes dos velhos para com a mocidade: nos piores de índole, a amargura e o despeito do excluído; nos melhores, o carinho triste do saudoso. Tive, creio, a felicidade única de, tendo que ser destes, não ser dos piores. Por isso me fascina, como disse, o contraste de v. comigo; da sua mocidade ingénita, da sua futilidade triunfal, com o meu cansaço inato de predestinado à derrota, ainda que ela possa chamar-se vitória.

    V. nasceu vencedor, porque as fadas no seu nascimento, enganaram a fada maligna. Não venceu v. como os que vencem pela vitória, com o conseguimento, que sempre pesa porque existe; com o esforço, que é sempre vil porque fatiga; com o merecimento, que é racional e por isso sem vida. O seu fado foi mais menino. Coube-lhe a vitória como vida, que não como vitória. Deram-lhe amorosamente como berço o que aos melhores de nós, que nos maltratamos, de mau grado cabe como tumba.

    Desejo-lhe, meu querido Francisco Manuel, que nunca passe do seu ar e dos seus gestos a mocidade que o Destino lhe concedeu, como a um jovem deus, não como episódio passageiro e mortal da idade, senão como segredo da vida e carne do próprio sentimento.

    Guardo do que v. escreveu a memória dispersa e nítida que fica dos perfumes. Não é a reminiscência de uma coisa espiritual, porém não o é de uma coisa da matéria. Vive no intervalo das coisas que podem definir-se. É uma aura, uma atmosfera, uma agrado indistinto, uma presença para quem sorrimos. Neste caso é v. mesmo.

    Tudo mais é filosofia.

    FERNANDO PESSOA

  • Nomes

    • Fernando Pessoa
    • Francisco Manuel Cabral Metello

    Títulos

    • SÁCHÁ