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As algemas

Fernando Pessoa

Revista de Comércio e Contabilidade 2, 25 de fevereiro de 1926.

  • [33]

    AS ALGEMAS

    SUPONHA o leitor que lhe diziamos:

    ― Ha um paiz em que, depois das oito horas da noite, é crime previsto e punido o comprar maçãs, bananas, uvas, ananazes e tamaras, sendo porêm permitida a compra de damascos, figos, pecegos e passas. Depois das oito horas não se pode ali legalmente comprar arenque, mas podem comprar-se salmão e linguado. Nêsse paiz é crime comprar, depois das oito horas, um pastelão cosinhado, se estiver frio; mas a lei permite a sua venda se, conforme os seus dizeres, «estiver quente ou morno». A sopa em latas, que varios fabricantes fornecem, não pode ser comprada depois das oito horas, a não ser que o mercieiro a aqueça. Chocolates, doces, sorvêtes não podem ser comprados depois das nove e meia da noite, estando porêm abertas as lojas que os fornecem. O camarão é, nessa terra, um problema juridico tremendo, pois existe um camarão em latas que se não sabe se tecnicamente é camarão ou conserva; e os jurisconsultos e legisladores dêsse paiz já uma vez reuniram em conclave solene para determinar a categoria juridica do camarão nêsse estado. Tambem nêsse paiz se não pode comprar aspirina, ou outro qualquer analgesico, depois das oito horas da noite, a não ser, diz a lei, que o farmaceutico fique convencido que «ha motivos razoaveis para supôr» que alguem tenha dores de cabeça. Não se pode, ainda nêsse paiz, comprar, depois das oito horas da noite, um charuto ou um maço de cigarros num bufete de caminho de ferro, salvo se se comprar tambem comida para consumo no comboio. Na agencia de publicações, que ha ali em qualquer gare, não é legal comprar, depois da mesma hora fatidica, um livro ou uma revista, ainda que a agencia esteja, como em geral está, aberta. Nêsse paiz...

    Nesta altura o leitor, irritado, interrompe...

    [34]

    ―Não ha paiz nenhum onde isso aconteça!... A não ser que se chame «paiz» a qualquer reino de revista de âno, ou a qualquer nação sonhada entre os quatro muros de Rilhafoles...

    Enganar-se-ia o leitor que efectivamente fizesse esse reparo. Existe, em verdade, o paiz onde se dão aquelas circunstancias legais. Esse paiz é a Inglaterra ― a livre e prática Inglaterra. E a lei que prescreve aquilo tudo, promulgada durante a Guerra e ainda em vigor, é a Defence of the Realm Act (Lei de Defeza do Reino!), popularmente conhecida, das iniciais do seu nome, pela designação de «Dora».

    *

    Fixemo-nos um pouco nêste exemplo fantastico. Atentemos um momento nêste caso espantoso. O que temos diante de nós é um sinal dos tempos. O ter-se chegado a promulgar, e o continuar-se a manter, num paiz de que se diz, não sem motivo, que está na vanguarda da civilização, uma lei da natureza delirante daquela cujas prescripções citámos, revela flagrantemente a que ponto se chegou no emprego legislativo da restricção do comercio e do consumo.

    A legislação restrictiva do comercio e do consumo, a regulamentação pelo Estado da vida puramente individual, era corrente na civilização monarquica da Edade Media, e no que dela permaneceu na subseqüente. O seculo XIX considerou sempre seu titulo de gloria o ter libertado, ou ir libertando, progressivamente o individuo, social e economicamente, das peias do Estado. No fundo, a doutrina do seculo XIX ― representada em seu relevo maximo nas teorias sociais de Spencer ― é uma reversão á politica da Grecia Antiga, expressa ainda para nós na Politica de Aristóteles ― que o Estado existe para o individuo, e não o individuo para o Estado, excepto quando um manifesto de interêsse colectivo, como na guerra, compele o individuo a abdicar da sua liberdade em proveito da defeza da sociedade, cuja existencia, aliás, é a garantia do exercicio dessa sua mesma liberdade.

    Mas de ha um tempo para cá ― já desde antes da Guerra, mas sobretudo depois da Guerra, que teve por conseqüencia acentuar certas tendencias, e entre elas estas, esboçadas anteriormente ― a tendencia legislativa começou a ser exactamente contrária á do seculo anterior na prática, e dos seculos anteriores na teoria. Recomeçou-se a restringir, social e economicamente, a liberdade do individuo. Começou a tolher-se, social e economicamente, a vida do comerciante.

    [35]

    O problema divide-se, evidentemente, em dois problemas ― o social e politico, e o comercial. O problema propriamente social resume-se nisto: que utilidade, geral ou particular, para a sociedade ou para o individuo, tem o emprego da legislação desta ordem? E o problema propriamente politico é o da questão das funções legitimas do Estado, e dos seus naturais limites ― um dos problemas mais graves, e porventura menos soluveis, da sociologia. Não pertence porêm á indole desta Revista o tratar dêstes problemas, nem, portanto, sequer determinar as causas intimas do fenomeno legislativo cuja evolução acabámos de sumariamente descrever.

    É o problema comercial que tem que preocupar-nos. E o problema comercial é este: Quais são as consequencias comerciais, e economicas, da aplicação da legislação restrictiva? E se as consequencias não são comercial e economicamente beneficas, em proveito de quê, ou de quem, é que se julga legitimo, necessario, ou conveniente produzir esse maleficio comercial e economico? E dar-se-há efectivamente esse proveito?

    É o que vamos examinar.

    *

    A legislação restrictiva assume cinco aspectos, consoante o elemento social que pretende beneficiar. Ha, (1) a legislação restrictiva que pretende beneficiar a colectividade, o paiz: é a que proíbe a importação de determinados artigos, em geral os chamados «de luxo», com o fito de evitar um desequilibrio cambial. Ha, (2), a legislação restrictiva que pretende beneficiar o consumidor colectivo; é a que proíbe a exportação de determinados artigos, em geral os chamados «de primeira necessidade», para que não escasseiem no mercado. Ha, (3), a legislação restrictiva que pretende beneficiar o consumidor individual: é a que proíbe ou cerceia a venda de determinados artigos ― desde a cocaina ás bebidas alcoolicas ― por o seu uso, ou facil abuso, ser nocivo ao individuo; e aquela legislação corrente que proíbe, por exemplo, o jogo de azar é exactamente da mesma natureza. Ha, (4), a legislação restrictiva que pretende beneficiar o operario e o empregado: é a que restringe as horas de trabalho, e as de abertura de estabelecimentos, e põe limites e condições ao exercicio de determinados comercios e de determinadas industrias. Ha, (5), a legislação restrictiva que pretende beneficiar o industrial: é a legislação pautal na sua generalidade proteccionista.

    Fixemos, desde já, o primeiro ponto; tiremos, desde já, a primeira conclusão, que é inevitavel. Todos estes tipos de legislação restrictiva ― beneficiem ou não a quem pretendem beneficiar ― prejudicam aquela desgraçada [36]entidade chamada o comerciante. A 1ª especie de legislação restrictiva limita-lhe as importações; a 2ª limita-lhe as exportações; a 3ª limita-lhe as vendas; a 4ª limita-lhe as condições de produção, se é tambem industrial, e as horas de venda, se é simples comerciante; a 5ª restringe-lhe a liberdade de concorrer. Não consideremos agora se seria socialmente legitima ou ilegitima a liberdade que êle teria se essa vária legislação lha não restringisse. Fixemos apenas este ponto: toda esta legislação prejudica o comerciante, toda esta legislação tende a diminuir e afogar o comercio dum paiz, e, na proporção em que o faz, a cercear a expansão da sua vida economica. Este ponto fica assente, fica irrevogavelmente assente. Resta saber se ha qualquer proveito social neste desproveito comercial, se qualquer dos elementos sociais, que se procura beneficiar com este prejuizo ao comercio, efectivamente beneficía com êsse prejuizo.

    *

    A restricção das importações, e sobretudo a dos artigos «de luxo», não ocorreu nunca a qualquer cerebro lucido como processo directo, ou fundamental, para melhorar o cambio. Todos sabem que a melhoria cambial tem que partir de origens mais vitais e mais profundas. Essa medida é tãosòmente um processo acessorio, ou auxiliar, de tentar conseguir esta melhoria.

    Mas essas importações, que se restringem, de alguma parte hão de vir. E não é de supôr que o paiz, ou paizes, de onde elas veem, aceitem de bom grado essa limitação, por pequena que seja, da sua exportação. Exercerão represalias ― as chamadas represalias economicas. Restringirão, por sua vez, a nossa exportação para êles. E assim a limitação da nossa importação redundará numa limitação da nossa exportação. O impedir que saia ouro dará em impedir tambem que êle entre. Resultado final, pelo melhor: prejuizo para o comerciante importador; nenhuma influencia real no cambio; prejuizo para o comerciante exportador; perturbação da vida economica geral; irritação do consumidor. Resumo: prejuizo e nada.

    *

    A restricção da exportação, para que o artigo não falte no mercado, exerce-se evidentemente apenas quando se manifeste a tendencia de exportar esses artigos, de preferencia a vendê-los no paiz. Ora essa tendencia só se [37]manifestará se a exportação fôr mais remuneradora. E, havendo realmente consumo no paiz, a exportação será mais remuneradora só quando a moeda dêle estiver desvalorisada. Ora num paiz de moeda desvalorisada um dos primeiros propositos dos dirigentes deve ser o valorisá-la; provocar e estimular a exportação é um dos processos mais directos de consegui-lo; mas proibir a exportação não é a maneira mais recomendavel de a estimular. Isto, porêm, é o menos. Limitar a exportação é limitar a produção. Obrigando o produtor, ou o comerciante seu agente, a vender abaixo do que pode vender desconsola-se a produção e o comercio. Resulta que o produtor e o comerciante ou procuram a porta falsa do contrabando, com o que se lesa o Estado, e portanto a colectividade; ou baixam instintivamente a produção e a actividade de venda por verem limitados os seus interêsses primarios. Ninguem exerce de graça uma profissão, por generoso que seja fóra do exercicio déla. Depois, proíbir a exportação é proíbir o comercio de exportação. Como, quando se exporta, se exporta para alguma parte, e essa alguma parte, se não pode comprar a nós, comprará a outrem, segue que a limitação da nossa exportação é, muitas vezes, não só a limitação da exportação presente, mas tambem a da exportação futura, pois perdemos mercados, que, mais tarde, quando a nossa exportação estiver reliberada, talvez já estejam conquistados por outrem, e se nos não abram de novo com facilidade. Assim a legislação restrictiva que visa a abastecer o mercado nacional tende, no fim, para desabastecê-lo, e, quando visa a restringir temporariamente a exportação, consegue, muitas vezes, restringi-la definitivamente.

    *

    Chegámos ao ponto comico desta travessia legislativa. Chegámos ao exame daquela legislação restrictiva que visa a beneficiar o individuo, impedindo que êle faça mal á sua preciosa saude moral e fisica. É este o caso de legislação restrictiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo máximo de toda a legislação restrictiva, quer quanto á sua natureza, quer quanto aos seus efeitos ― a famosa Lei Sêca dos Estados Unidos da America. Vejamos em que deu a operação déssa lei.

    Não olhemos ao caso social; tratá-lo não está na indole désta Revista, nem, portanto, na dêste artigo. Não consideremos o que ha de deprimente e de ignobil na circunstancia de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há de beber e o que não há de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou colête de fôrças, como a um doido. Nem consideremos que, indo [38]por êsse caminho, não ha logar certo onde logicamente se deva parar: se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? porque não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas estas coisas teem importancia para a nossa saúde fisica e moral; e se o Estado se dispõe a ser medico, tutor e ama para uma délas, porque razão se não disporá a sê-lo para todas?

    Não olhemos, tambem, a que êste interêsse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstrata, mas se manifesta atravez de ministros, burocratas e fiscais ― homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto, do ponto de vista moral, senão de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilancia ou tutéla em que sintamos uma autoridade plausivel. Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos só ás conseqüencias rigorosamente materiais da Lei Sêca. Quais fôram elas? Fôram trez.

    (1) Dada a criação necessaria, para o «cumprimento» da Lei, de vastas legiões de fiscais ― mal pagos, como quasi sempre são os funcionarios do Estado, relativamente ao meio em que vivem ― a facil corruptibilidade dêsses elementos, nêste caso tão solicitados, tornou a lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum paiz democratico é, na verdade, restrictiva apenas para as classes menos abastadas, e, particularmente, para os mais poupados e mais sobrios dentro délas. Não ha lei socialmente mais imoral que uma que produz êstes resultados. Temos, pois, como primeira conseqüencia da Lei Sêca, o acrescimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilegios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam.

    (2) Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para directamente fornecer bebidas alcoolicas, pelo menos para as não vêr fornecer, estabeleceu-se, a dentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensissima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuidos, destinada á tecnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comercio ilegal de bebidas alcoolicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem á revogação da Lei Sêca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo, que, dada a poderosa influencia, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Te [39]mos, pois, como segunda conseqüencia da Lei Sêca, a substituição do comercio normal e honesto por um comercio anormal e deshonesto, com a agravante de êste, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um Segundo Estado, anti-social, dentro do proprio Estado. E, como derivante desta segunda conseqüencia, temos, é claro, o prejuizo do Estado, pois não é de supôr que êle cobre impostos aos contrabandistas.

    (3) Quais fôram, porêm, as conseqüencias da Lei Sêca quanto aos fins que directamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoolico, continúa a beber o que quizer. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoolico, bebe da mesma maneira e gasta mais ― isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Ha ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoolicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoolicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedaneos ― loções de cabelo, por exemplo ―, com resultados pouco moralisadores para a propria saúde. Surgiram tambem no mercado americano varias drogas não alcoolicas, mas ainda mais prejudiciais que o alcool; essas são livremente vendidas, pois, se é certo que arruinam a saúde, arruinam-na contudo a dentro da lei, e sem alcool. E o facto é que, segundo informação recente de fonte boa e autorisada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Sêca do que anteriormente se bebia. Conceda-se, porêm, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa secção do publico ele produziu resultados beneficos ― aqueles resultados que êles apontam no acrescimo de depositos nos bancos populares e caixas economicas. Essa secção do publico, composta de individuos trabalhadores, poupados e pouco alcoolicos, não podendo, com efeito, beber qualquer cousa alcoolica sem correr varios riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao alcool, a abster-se dêle, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos ― «moralisar» quem não precisava ser moralisado. Temos, pois, como ultima conseqüencia da Lei Sêca, um efeito excusado e inutil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.

    A Lei Sêca, é certo, é um caso extremo. Mas um caso extremo é como que um caso tipico visto ao microscopio: revela flagrantemente as falhas e as irregularidades dêle. O caso da Lei Sêca é extremo por duas razões ― porque a Lei Sêca é uma lei absolutamente radical, e porque, principalmente em virtude disso, o Estado se viu obrigado a esforçar-se para que ela efec [40]tivamente se cumprisse. As leis menos radicais desta ordem ― como, entre nós, a que pretendeu restringir as horas de consumo das bebidas alcoolicas ― naufragam na reacção surda e insistente do publico, que as desdenha e despreza, e no desleixo de fiscalisação do proprio Estado. Nascem mortas; e, como nos caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inutil de daninha da Lei Sêca dos Estados Unidos.

    *

    A legislação que restringe as horas de trabalho dos operarios e dos empregados, e que, derivadamente, limita, por exemplo, as horas de estarem abertos os estabelecimentos comerciais e industriais, seria aceitavel se para a sua promulgação se estudasse devidamente o equilibrio a estabelecer entre as concessões legitimas a fazer aos operarios e empregados, e as necessidades, não menos legitimas, da produção e do consumo. Em quasi nenhuma lei desta ordem se atende a este equilibrio. O operario ou empregado é considerado como um ente à-parte, fóra do giro economico da sociedade onde vive, misteriosamente desligado do industrial ou comerciante que o emprega, e do consumidor a quem este serve. Legisla-se, em favor do operario ou empregado, contra o comerciante e o industrial, e contra o consumidor; e supõe-se que sobre êsse mesmo empregado ou operario não recairão nunca os efeitos dessa legislação. Limita-se a producção com restricções sobre restricções das horas e das condições de trabalho; irrita-se o consumidor com limitações sobre limitações das horas e das condições de compra e de consumo. Quando, depois, a producção baixa, o consumo se perturba e decresce, e a estructura social inteira (incluindo o operario e o empregado) se sente variadamente disso, olha-se para essas conseqüencias como para um ciclone ou um terremoto, uma coisa vinda de fóra e inteiramente imprevisivel.

    Expôr o assunto é, neste caso, já criticá-lo. A legislação restrictiva desta especie é responsavel por grande parte das crises industriais e comerciais com que o mundo inteiro hoje se vê a braços. E como a classe dos empregados e operarios não é em geral composta de gente rica, é de supôr que seja essa classe uma das que finalmente mais veem a sofrer com os resultados ultimos da legislação que foi feita para seu exclusivo beneficio.

    *

    A legislação pautal, que visa a proteger industrias nacionais, enferma [41]ordinariamente de um mal parecido com o de que sofre a legislação operária, a que acabámos de referir-nos. Raras vezes se estuda devidamente o equilibrio a estabelecer entre os interêsses dessas industrias e os interêsses do consumidor. Por isso o proteccionismo é freqüentemente excessivo, e daí resulta, em uns casos, o afastamento do consumidor, e um conseqüente prejuizo para a propria industria que se pretendeu beneficiar; em outros casos, em que o consumo é «forçado» e a venda portanto certa, o assumir a industria protegida um caracter parasitário, que a desvitaliza e assim a desprepara para as contingencias economicas do futuro. A legislação proteccionista, quando sábiamente orientada, consegue realmente proteger e animar a industria nacional; mas o ser sábiamente orientada quer dizer que nela se estudaram bem os interêsses diversos do consumidor e do comerciante importador. E se estes interêsses se estudaram, e se equilibraram com os do industrial, não se trata já de uma lei restrictiva, mas de uma simples medida economica sem caracter especial. As leis proteccionistas só podem dizer-se restrictivas quando das pautas resulta um proibicionismo evidente. São as leis desta ordem que cáem dentro do nosso estudo, e é a elas que se aplicam as considerações acima feitas.

    *

    Examinados, assim, todos os generos de legislação restrictiva, chegámos á conclusão que todos êles teem de comum, (1) prejudicar o comerciante, (2) produzir perturbações economicas, (3) nunca beneficiar, e as mais das vezes prejudicar, as proprias classes em cujo proveito essas leis foram feitas. A legislação restrictiva, em todos os seus ramos, resulta, portanto, inutil e nociva.

    Nenhuma lei é benefica se ataca qualquer classe social, ou restringe a sua liberdade. As classes sociais não vivem separadas, em compartimentos estanques. Vivem em perpetua interdependencia, em constante entrepenetração. O que lesa uma, lesa todas. A lei que ataca uma, é a todas que ataca. Todo este artigo é uma demonstração dêsse facto.

    Não é pois só o comerciante, mas o publico em geral, que tem o dever para consigo mesmo de reagir energica e constantemente contra a promulgação das leis restrictivas, invariavelmente maleficas, como se demonstrou, por beneficas que pareçam ou as intitulem.

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    AS ALGEMAS

    SUPONHA o leitor que lhe dizíamos:

    ― Há um país em que, depois das oito horas da noite, é crime previsto e punido o comprar maçãs, bananas, uvas, ananases e tâmaras, sendo porém permitida a compra de damascos, figos, pêssegos e passas. Depois das oito horas não se pode ali legalmente comprar arenque, mas podem comprar-se salmão e linguado. Nesse país é crime comprar, depois das oito horas, um pastelão cozinhado, se estiver frio; mas a lei permite a sua venda se, conforme os seus dizeres, «estiver quente ou morno». A sopa em latas, que vários fabricantes fornecem, não pode ser comprada depois das oito horas, a não ser que o merceeiro a aqueça. Chocolates, doces, sorvetes não podem ser comprados depois das nove e meia da noite, estando porém abertas as lojas que os fornecem. O camarão é, nessa terra, um problema jurídico tremendo, pois existe um camarão em latas que se não sabe se tecnicamente é camarão ou conserva; e os jurisconsultos e legisladores desse país já uma vez reuniram em conclave solene para determinar a categoria jurídica do camarão nesse estado. Também nesse país se não pode comprar aspirina, ou outro qualquer analgésico, depois das oito horas da noite, a não ser, diz a lei, que o farmacêutico fique convencido que «há motivos razoáveis para supor» que alguém tenha dores de cabeça. Não se pode, ainda nesse país, comprar, depois das oito horas da noite, um charuto ou um maço de cigarros num bufete de caminho de ferro, salvo se se comprar também comida para consumo no comboio. Na agência de publicações, que há ali em qualquer gare, não é legal comprar, depois da mesma hora fatídica, um livro ou uma revista, ainda que a agência esteja, como em geral está, aberta. Nesse país...

    Nesta altura o leitor, irritado, interrompe...

    [34]

    ― Não há país nenhum onde isso aconteça!... A não ser que se chame «país» a qualquer reino de revista de ano, ou a qualquer nação sonhada entre os quatro muros de Rilhafoles...

    Enganar-se-ia o leitor que efetivamente fizesse esse reparo. Existe, em verdade, o país onde se dão aquelas circunstâncias legais. Esse país é a Inglaterra ― a livre e prática Inglaterra. E a lei que prescreve aquilo tudo, promulgada durante a Guerra e ainda em vigor, é a Defence of the Realm Act (Lei de Defesa do Reino!), popularmente conhecida, das iniciais do seu nome, pela designação de «Dora».

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    Fixemo-nos um pouco neste exemplo fantástico. Atentemos um momento neste caso espantoso. O que temos diante de nós é um sinal dos tempos. O ter-se chegado a promulgar, e o continuar-se a manter, num país de que se diz, não sem motivo, que está na vanguarda da civilização, uma lei da natureza delirante daquela cujas prescrições citámos, revela flagrantemente a que ponto se chegou no emprego legislativo da restrição do comércio e do consumo.

    A legislação restritiva do comércio e do consumo, a regulamentação pelo Estado da vida puramente individual, era corrente na civilização monárquica da Idade Média, e no que dela permaneceu na subsequente. O século XIX considerou sempre seu título de glória o ter libertado, ou ir libertando, progressivamente o indivíduo, social e economicamente, das peias do Estado. No fundo, a doutrina do século XIX ― representada em seu relevo máximo nas teorias sociais de Spencer ― é uma reversão à política da Grécia Antiga, expressa ainda para nós na Política de Aristóteles ― que o Estado existe para o indivíduo, e não o indivíduo para o Estado, exceto quando um manifesto de interesse coletivo, como na guerra, compele o indivíduo a abdicar da sua liberdade em proveito da defesa da sociedade, cuja existência, aliás, é a garantia do exercício dessa sua mesma liberdade.

    Mas de há um tempo para cá ― já desde antes da Guerra, mas sobretudo depois da Guerra, que teve por consequência acentuar certas tendências, e entre elas estas, esboçadas anteriormente ― a tendência legislativa começou a ser exatamente contrária à do século anterior na prática, e dos séculos anteriores na teoria. Recomeçou-se a restringir, social e economicamente, a liberdade do indivíduo. Começou a tolher-se, social e economicamente, a vida do comerciante.

    [35]

    O problema divide-se, evidentemente, em dois problemas ― o social e político, e o comercial. O problema propriamente social resume-se nisto: que utilidade, geral ou particular, para a sociedade ou para o indivíduo, tem o emprego da legislação desta ordem? E o problema propriamente político é o da questão das funções legítimas do Estado, e dos seus naturais limites ― um dos problemas mais graves, e porventura menos solúveis, da sociologia. Não pertence porém à índole desta Revista o tratar destes problemas, nem, portanto, sequer determinar as causas íntimas do fenómeno legislativo cuja evolução acabámos de sumariamente descrever.

    É o problema comercial que tem que preocupar-nos. E o problema comercial é este: Quais são as consequências comerciais, e económicas, da aplicação da legislação restritiva? E se as consequências não são comercial e economicamente benéficas, em proveito de quê, ou de quem, é que se julga legítimo, necessário, ou conveniente produzir esse malefício comercial e económico? E dar-se-á efetivamente esse proveito?

    É o que vamos examinar.

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    A legislação restritiva assume cinco aspetos, consoante o elemento social que pretende beneficiar. Há, (1) a legislação restritiva que pretende beneficiar a coletividade, o país: é a que proíbe a importação de determinados artigos, em geral os chamados «de luxo», com o fito de evitar um desequilíbrio cambial. Há, (2), a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor coletivo; é a que proíbe a exportação de determinados artigos, em geral os chamados «de primeira necessidade», para que não escasseiem no mercado. Há, (3), a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor individual: é a que proíbe ou cerceia a venda de determinados artigos ― desde a cocaína às bebidas alcoólicas ― por o seu uso, ou fácil abuso, ser nocivo ao indivíduo; e aquela legislação corrente que proíbe, por exemplo, o jogo de azar é exatamente da mesma natureza. Há, (4), a legislação restritiva que pretende beneficiar o operário e o empregado: é a que restringe as horas de trabalho, e as de abertura de estabelecimentos, e põe limites e condições ao exercício de determinados comércios e de determinadas indústrias. Há, (5), a legislação restritiva que pretende beneficiar o industrial: é a legislação pautal na sua generalidade protecionista.

    Fixemos, desde já, o primeiro ponto; tiremos, desde já, a primeira conclusão, que é inevitável. Todos estes tipos de legislação restritiva ― beneficiem ou não a quem pretendem beneficiar ― prejudicam aquela desgraçada [36]entidade chamada o comerciante. A 1ª espécie de legislação restritiva limita-lhe as importações; a 2ª limita-lhe as exportações; a 3ª limita-lhe as vendas; a 4ª limita-lhe as condições de produção, se é tambem industrial, e as horas de venda, se é simples comerciante; a 5ª restringe-lhe a liberdade de concorrer. Não consideremos agora se seria socialmente legítima ou ilegítima a liberdade que ele teria se essa vária legislação lha não restringisse. Fixemos apenas este ponto: toda esta legislação prejudica o comerciante, toda esta legislação tende a diminuir e afogar o comércio dum país, e, na proporção em que o faz, a cercear a expansão da sua vida económica. Este ponto fica assente, fica irrevogavelmente assente. Resta saber se há qualquer proveito social neste desproveito comercial, se qualquer dos elementos sociais, que se procura beneficiar com este prejuízo ao comércio, efetivamente beneficia com esse prejuízo.

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    A restrição das importações, e sobretudo a dos artigos «de luxo», não ocorreu nunca a qualquer cérebro lúcido como processo direto, ou fundamental, para melhorar o câmbio. Todos sabem que a melhoria cambial tem que partir de origens mais vitais e mais profundas. Essa medida é tão-somente um processo acessório, ou auxiliar, de tentar conseguir esta melhoria.

    Mas essas importações, que se restringem, de alguma parte hão de vir. E não é de supor que o país, ou países, de onde elas vêm, aceitem de bom grado essa limitação, por pequena que seja, da sua exportação. Exercerão represálias ― as chamadas represálias económicas. Restringirão, por sua vez, a nossa exportação para eles. E assim a limitação da nossa importação redundará numa limitação da nossa exportação. O impedir que saia ouro dará em impedir também que ele entre. Resultado final, pelo melhor: prejuízo para o comerciante importador; nenhuma influência real no câmbio; prejuízo para o comerciante exportador; perturbação da vida económica geral; irritação do consumidor. Resumo: prejuízo e nada.

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    A restrição da exportação, para que o artigo não falte no mercado, exerce-se evidentemente apenas quando se manifeste a tendência de exportar esses artigos, de preferência a vendê-los no país. Ora essa tendência só se [37]manifestará se a exportação for mais remuneradora. E, havendo realmente consumo no país, a exportação será mais remuneradora só quando a moeda dele estiver desvalorizada. Ora num país de moeda desvalorizada um dos primeiros propósitos dos dirigentes deve ser o valorizá-la; provocar e estimular a exportação é um dos processos mais diretos de consegui-lo; mas proibir a exportação não é a maneira mais recomendável de a estimular. Isto, porém, é o menos. Limitar a exportação é limitar a produção. Obrigando o produtor, ou o comerciante seu agente, a vender abaixo do que pode vender desconsola-se a produção e o comércio. Resulta que o produtor e o comerciante ou procuram a porta falsa do contrabando, com o que se lesa o Estado, e portanto a coletividade; ou baixam instintivamente a produção e a atividade de venda por verem limitados os seus interesses primários. Ninguém exerce de graça uma profissão, por generoso que seja fora do exercício dela. Depois, proibir a exportação é proibir o comércio de exportação. Como, quando se exporta, se exporta para alguma parte, e essa alguma parte, se não pode comprar a nós, comprará a outrem, segue que a limitação da nossa exportação é, muitas vezes, não só a limitação da exportação presente, mas tambem a da exportação futura, pois perdemos mercados, que, mais tarde, quando a nossa exportação estiver reliberada, talvez já estejam conquistados por outrem, e se nos não abram de novo com facilidade. Assim a legislação restritiva que visa a abastecer o mercado nacional tende, no fim, para desabastecê-lo, e, quando visa a restringir temporariamente a exportação, consegue, muitas vezes, restringi-la definitivamente.

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    Chegámos ao ponto cómico desta travessia legislativa. Chegámos ao exame daquela legislação restritiva que visa a beneficiar o indivíduo, impedindo que ele faça mal à sua preciosa saúde moral e física. É este o caso de legislação restritiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo máximo de toda a legislação restritiva, quer quanto à sua natureza, quer quanto aos seus efeitos ― a famosa Lei Seca dos Estados Unidos da América. Vejamos em que deu a operação dessa lei.

    Não olhemos ao caso social; tratá-lo não está na índole desta Revista, nem, portanto, na deste artigo. Não consideremos o que há de deprimente e de ignóbil na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há de beber e o que não há de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou colete de forças, como a um doido. Nem consideremos que, indo [38]por esse caminho, não há lugar certo onde logicamente se deva parar: se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? porque não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas estas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, porque razão se não disporá a sê-lo para todas?

    Não olhemos, tambem, a que este interesse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstrata, mas se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais — homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto, do ponto de vista moral, senão de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível. Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos só às consequências rigorosamente materiais da Lei Seca. Quais foram elas? Foram três.

    (1) Dada a criação necessária, para o «cumprimento» da Lei, de vastas legiões de fiscais — mal pagos, como quase sempre são os funcionários do Estado, relativamente ao meio em que vivem — a fácil corruptibilidade desses elementos, neste caso tão solicitados, tornou a lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum país democrático é, na verdade, restritiva apenas para as classes menos abastadas, e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados. Temos, pois, como primeira consequência da Lei Seca, o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam.

    (2) Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para diretamente fornecer bebidas alcoólicas, pelo menos para as não ver fornecer, estabeleceu-se, a dentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensíssima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuídos, destinada à técnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem à revogação da Lei Seca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo, que, dada a poderosa influência, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Te [39]mos, pois, como segunda consequência da Lei Seca, a substituição do comércio normal e honesto por um comércio anormal e desonesto, com a agravante de este, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um Segundo Estado, antissocial, dentro do próprio Estado. E, como derivante desta segunda consequência, temos, é claro, o prejuízo do Estado, pois não é de supor que ele cobre impostos aos contrabandistas.

    (3) Quais foram, porém, as consequências da Lei Seca quanto aos fins que diretamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoólico, continua a beber o que quiser. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoólico, bebe da mesma maneira e gasta mais — isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Há ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos — loções de cabelo, por exemplo —, com resultados pouco moralizadores para a própria saúde. Surgiram também no mercado americano várias drogas não alcoólicas, mas ainda mais prejudiciais que o álcool; essas são livremente vendidas, pois, se é certo que arruínam a saúde, arruinam-na contudo a dentro da lei, e sem álcool. E o facto é que, segundo informação recente de fonte boa e autorizada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Seca do que anteriormente se bebia. Conceda-se, porém, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa secção do público ele produziu resultados benéficos — aqueles resultados que eles apontam no acréscimo de depósitos nos bancos populares e caixas económicas. Essa secção do público, composta de indivíduos trabalhadores, poupados e pouco alcoólicos, não podendo, com efeito, beber qualquer coisa alcoólica sem correr vários riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao álcool, a abster-se dele, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos — «moralizar» quem não precisava ser moralizado. Temos, pois, como última consequência da Lei Seca, um efeito escusado e inútil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.

    A Lei Seca, é certo, é um caso extremo. Mas um caso extremo é como que um caso típico visto ao microscópio: revela flagrantemente as falhas e as irregularidades dele. O caso da Lei Seca é extremo por duas razões — porque a Lei Seca é uma lei absolutamente radical, e porque, principalmente em virtude disso, o Estado se viu obrigado a esforçar-se para que ela efe [40]tivamente se cumprisse. As leis menos radicais desta ordem — como, entre nós, a que pretendeu restringir as horas de consumo das bebidas alcoólicas — naufragam na reação surda e insistente do público, que as desdenha e despreza, e no desleixo de fiscalização do próprio Estado. Nascem mortas; e, como nos caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inútil de daninha da Lei Seca dos Estados Unidos.

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    A legislação que restringe as horas de trabalho dos operários e dos empregados, e que, derivadamente, limita, por exemplo, as horas de estarem abertos os estabelecimentos comerciais e industriais, seria aceitável se para a sua promulgação se estudasse devidamente o equilíbrio a estabelecer entre as concessões legítimas a fazer aos operários e empregados, e as necessidades, não menos legítimas, da produção e do consumo. Em quase nenhuma lei desta ordem se atende a este equilíbrio. O operário ou empregado é considerado como um ente à parte, fora do giro económico da sociedade onde vive, misteriosamente desligado do industrial ou comerciante que o emprega, e do consumidor a quem este serve. Legisla-se, em favor do operário ou empregado, contra o comerciante e o industrial, e contra o consumidor; e supõe-se que sobre esse mesmo empregado ou operário não recairão nunca os efeitos dessa legislação. Limita-se a produção com restrições sobre restrições das horas e das condições de trabalho; irrita-se o consumidor com limitações sobre limitações das horas e das condições de compra e de consumo. Quando, depois, a produção baixa, o consumo se perturba e decresce, e a estrutura social inteira (incluindo o operário e o empregado) se sente variadamente disso, olha-se para essas consequências como para um ciclone ou um terremoto, uma coisa vinda de fora e inteiramente imprevisível.

    Expor o assunto é, neste caso, já criticá-lo. A legislação restritiva desta espécie é responsável por grande parte das crises industriais e comerciais com que o mundo inteiro hoje se vê a braços. E como a classe dos empregados e operários não é em geral composta de gente rica, é de supor que seja essa classe uma das que finalmente mais vêm a sofrer com os resultados últimos da legislação que foi feita para seu exclusivo benefício.

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    A legislação pautal, que visa a proteger indústrias nacionais, enferma [41]ordinariamente de um mal parecido com o de que sofre a legislação operária, a que acabámos de referir-nos. Raras vezes se estuda devidamente o equilíbrio a estabelecer entre os interesses dessas indústrias e os interesses do consumidor. Por isso o protecionismo é frequentemente excessivo, e daí resulta, em uns casos, o afastamento do consumidor, e um consequente prejuízo para a própria indústria que se pretendeu beneficiar; em outros casos, em que o consumo é «forçado» e a venda portanto certa, o assumir a indústria protegida um carácter parasitário, que a desvitaliza e assim a desprepara para as contingências económicas do futuro. A legislação protecionista, quando sabiamente orientada, consegue realmente proteger e animar a indústria nacional; mas o ser sabiamente orientada quer dizer que nela se estudaram bem os interesses diversos do consumidor e do comerciante importador. E se estes interesses se estudaram, e se equilibraram com os do industrial, não se trata já de uma lei restritiva, mas de uma simples medida económica sem carácter especial. As leis protecionistas só podem dizer-se restritivas quando das pautas resulta um proibicionismo evidente. São as leis desta ordem que caem dentro do nosso estudo, e é a elas que se aplicam as considerações acima feitas.

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    Examinados, assim, todos os géneros de legislação restritiva, chegámos à conclusão que todos eles têm de comum, (1) prejudicar o comerciante, (2) produzir perturbações económicas, (3) nunca beneficiar, e as mais das vezes prejudicar, as próprias classes em cujo proveito essas leis foram feitas. A legislação restritiva, em todos os seus ramos, resulta, portanto, inútil e nociva.

    Nenhuma lei é benéfica se ataca qualquer classe social, ou restringe a sua liberdade. As classes sociais não vivem separadas, em compartimentos estanques. Vivem em perpétua interdependência, em constante entrepenetração. O que lesa uma, lesa todas. A lei que ataca uma, é a todas que ataca. Todo este artigo é uma demonstração desse facto.

    Não é pois só o comerciante, mas o público em geral, que tem o dever para consigo mesmo de reagir enérgica e constantemente contra a promulgação das leis restritivas, invariavelmente maléficas, como se demonstrou, por benéficas que pareçam ou as intitulem.

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    • Aristóteles
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