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A evolução do comércio

Fernando Pessoa

Revista de Comércio e Contabilidade 3, 25 de março de 1926.

  • A EVOLUÇÃO DO COMERCIO

    ESTE estudo é propriamente nosso. Não lhe fomos buscar os elementos a nenhum tratado. Não tivemos mestre para escrevê-lo. O conhecimento atento da historia, e a analise firme dos factos que ela fornece, foi quanto nos foi preciso para a sua elaboração. Como não plagiamos, nem imitamos, nem sequér aceitamos criticamente, mas pensamos por nossa cabeça, visto que ela existe, achamos conveniente começar este artigo por dizer que êle é nosso, e que em nenhum ensaio ou tratado estranho se encontra o estudo qne êle encerra, nem, portanto, os ensinamentos que dêsse estudo se derivam. O seu a seu dono, mesmo quando sejamos nós o dono...

    A actividade social chamada comercio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossiveis, é contudo um dos dois caracteristicos distintivos das sociedades chamadas civilisadas. O outro caracteristico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comercio e a cultura houve sempre uma relação intima, ainda não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notavel que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercicio assiduo do comercio. Comercial, eminentemente comercial, foi Athenas. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.

    A relação entre os dois fenomenos é ao mesmo tempo de paralelismo é de causa-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre individuos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilisacional. Ora como os fenomenos da vida superior são de duas ordens ― materiais e mentais ―, devem ser materiais e mentais os fenomenos da vida superior civilisacional; e, como a vida é essencialmente relação, esses fenomenos devem ser de relação. Como o comercio é, por sua natureza, uma entrepenetração economica das sociedades, é no comercio que as relações materiais entre sociedades atingem o seu maximo; e como a cultura é uma entrepenetração artistica e filosofica das sociedades, é na cultura que as relações mentais entre povos conseguem o seu auge. Segue que uma sociedade com um alto grau de desenvolvimento material e mental, e, portanto, com um alto desenvolvimento da vida de relação, forçosamente será altamente comercial e altamente cultural paralelamente.

    Acresce, ainda, que o comercio é uma distribuição, centrifuga ou centripeta, da produção material, ou industria; e a cultura é uma distribuição, centrifuga ou centripeta, da produção mental, ou arte. Os fenomenos são pois rigorosamente paralelos. E, assim como, nos paizes de grande produção artistica, a curiosidade pela arte alheia se desenvolve, pois que a criação artistica propria não pode exercer-se sem interesse pela arte, e portanto tambem pela arte dos outros; assim tambem, num paiz de grande produção industrial, a necessidade de productos alheios ― que o proprio paiz ou não pode, ou não pode convenientemente, produzir ― nasce do estimulo ás necessidades internas que essa grande produção criou, depois de ter tido nelas origem.

    Mas entre os dois fenomenos ― comercio e cultura ― ha, tambem, uma relação de causa-e-efeito. A cultura, ao aperfeiçoar-se, tende para a universalidade, isto é, para não excluir da sua curiosidade elemento algum estranho. Quanto mais facil fôr o contacto com elementos estranhos, tanto mais essa curiosidade se animará, e a cultura permanecerá viva. Ora como o fenomeno material precede sempre o fenomeno mental, o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem se formado contactos materiais; e, como a cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacifico, o contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico ― e é isto mesmo que, em contraposição á guerra, distingue a actividade social chamada comercio.

    O estabelecimento, um pouco demorado, desta analogia ou paridade entre o fenomeno cultural e o comercial não é uma espécie de digressão ou devaneio nêste artigo e nesta Revista. Visa, antes de mais nada, a mostrar claramente a importancia social do comercio, e a mostrá-la áqueles mesmos que frequentemente a esquecem ou a negam. E como êsses, em geral, são os que são ou se julgam pessoas de cultura, o argumento, que se lhes opõe, é tirado das proprias preocupações dêles; responde-se-lhes na propria lingua que falam, ou dizem falar.

    Mas esta demonstração visa, tambem, a estabelecer ― para o que vamos expôr do que nos parece terem sido, a dentro da civilisação europeia, os estádios da evolução do comercio ― uma espécie de contraprova constante. Se comercio e cultura são actividades sociais necessariamente analogas e paralelas, deve haver uma analogia e um paralelismo entre os estádios da evolução comercial e os da evolução cultural. Determinado, pois, um estádio da evolução do comercio, será facil verificar se está bem determinado, verificando-se se lhe corresponde um estádio paralelo da evolução da cultura.

    Trez são as fases que, a nosso vêr, o comercio tem atravessado no decurso da civilisação a que pertencemos ― isto é, daquela civilisação que começa na chamada Idade Media e de aí se estende até nossos dias. A primeira fase ― a do comerciante mercador (assim lhe chamaremos) ― vai do inicio dessa civilisação até o começo da época «moderna», isto é, o periodo, do seculo dezoito para o dezanove, em que se deu o advento da maquina e do individualismo economico. A segunda fase ― a que chamaremos do comerciante negociante ― vai de aqui até a vinda, não já da maquina, mas da sciencia da maquina, ou seja do que denota a formação do tipo industrial moderno ― a predominancia absoluta (pois até ali era só relativa) da sciencia, por meio da engenharia, na vida pratica; a mecanisação, como dizia Rathenau. A terceira fase ― a do comerciante industrial (tal é o nome que lhe daremos) ― é a que parte e nasce deste ultimo fenomeno e está dando a côr ao tempo presente. A razão dos trez nomes distintivos, de que acabamos de servir-nos, ver-se-ha no decurso desta breve exposição.

    Cumpre, porêm, e sempre, advertir que a realidade não é uma régua, nem uma série de caixas: não tem marcas distintas, nem conhece separações absolutas. Quando, portanto, estabelecemos, para nossa conveniencia mental, «fases» e «periodos» na vida e na historia, e indicamos certos fenomenos como sinais do principio e do fim dessas fases, não devemos esquecer que esses fenomenos, que nos servem convenientemente de balisas, não são instantaneos mas prolongados; e que, assim, ha um largo espaço em que duas «épocas» sucessivas se confundem e se misturam, a ponto de não podermos bem dizer se tal ano ou caso está em uma ou outra delas, ou se não estará, por assim falar, em as duas ao mesmo tempo. Com esta reserva fundamental teem sempre que entender-se as classificações que se fazem na vida, e, sobretudo, na historia.

    Acresce, em materia historica, uma outra reserva, não menos importante. «Civilisação» é um termo abstracto; a realidade concreta está nas nações, ou nas regiões ou camadas sociais délas, que compõem essa «civilisação». Ora essas varias nações, e, dentro délas, essas partes délas, não caminham a par, e no mesmo passo. No mesmo seculo ha paizes que estão vivendo em «seculos» diferentes; no mesmo paiz ha regiões e camadas sociais que estão vivendo simultaneamente em «épocas» diversas. Quando estudamos um periodo historico, e buscamos determinar os seus caracteristicos, fazemo-los pelos paizes e pelas camadas sociais que estão na vanguarda tipica do movimento que nos parece ser o da civilisação, muito embora êsses paizes e essas camadas sejam na ocasião uma minoria. Nem se deve confundir a vanguarda da «civilisação» com a vanguarda da vitalidade social: quando é ascendente a curva da civilisação, a vanguarda está no ponto mais alto; quando é descendente, está no ponto mais baixo. Avança-se para a morte como para a vida.

    Com estas reservas fatais terá o leitor consciente que entender, não só este breve ensaio, mas qualquer estudo historico em que se fale de «evolução», de «fases de progresso», de «periodos de civilisação».

    Na época, em que colocámos o primeiro estádio da evolução do comercio, a civilisação tinha inicialmente, e substancialmente manteve, o tipo guerreiro e religioso. Sendo assim, o exercicio de qualquer mistér, que não fôsse o das armas ou o do sacerdocio, resultava, para a imaginação de todas as classes, inferior e desprezivel. Os misteres, que tinham por fim visivel o lucro, tinha-os essa época por uma espécie de servidão voluntaria, e os distinguia com o ferrete com que se marca a sordidez. Na proporção em que ainda sobrevive (pois ha fenomenos sociais em que ainda sobrevive) o espirito que animou a formação e a conservação déssa época, nessa mesma proporção se mantém ainda o desprezo pelo comerciante. Atinge de preferencia, é certo, o pequeno comerciante de retalho, cuja modestia social lhe não confere defeza alguma contra o antigo oprobio. E, até certo ponto, o pequeno retalhista ― neste mundo moderno de grandes armazens e grandes armazenistas ― é realmente uma sobrevivencia, embora uma sobrevivencia necessaria. Traz, portanto, ligado a si, com os caracteristicos da época ida em que todos eram mentalmente como êle ― por muito que materialmente divergissem ― uma espécie de sombra do desdem que nessa época lhe davam.

    Esta atitude social, universal na Idade Media para o comercio inteiro, sofreu uma transformação, não decisiva mas episodica, na Renascença; e, como é natural, sobretudo a sofreu nas pequenas republicas semiburguezas que distinguiram principalmente a Italia nêsse periodo. Mas, no conceito geral, o comerciante não deixou de ser encarado como, mais tarde ― fóra já da epoca da verdadeira servidão ― haveria de ser encarado o operario; como, aliás, muita gente ainda encara o operario em nossos dias. E se o comerciante escapava a este oprobio nas cidades-estados da Renascença, era, em verdade, não só pelo caracter especial da civilisação nessas comunidades, mas principalmente em virtude da riqueza que acumulasse. A época não dava para melhor conceito. Era o homem rico, e não o comerciante, que nessas sociedades desnobilisadas conseguia a consideração social. Subsistia forte o velho instinto aristocratico: tornadas necessariamente, em muitos casos, pequenas plutocracias, as cidades-estados da Renascença honravam essencialmente o comerciante, quando o honravam, não como comerciante mas como plutocrata ― como, portanto, em certo modo, aristocrata a dentro dêsse sistema.

    A contraprova, segundo o criterio que estabelecemos, é facil. A emergencia episodica do comerciante na vida social foi acompanhada nesta época, e exactamente nas mesmas comunidades, pela emergencia, igualmente episodica, do artista. O facto é conhecidissimo. O tipo geral de cultura, porêm, era de pura erudição; e, sendo assim, a cultura era necessariamente restricta. Era, ainda, servil e empirica, pois a simples erudição é, de sua natureza, parasitaria; e o espirito scientifico, que então renascia, não penetrava, senão incerta e episodicamente, na cultura. Onde havia cultura, porêm, e notadas as reservas expostas, ela era intensa, profunda e curiosa.

    O comercio, nesta época, tinha exactamente o caracter empirico, «especial» e, como comercio consciente, episodico, que a cultura do mesmo tempo revela. A mentalidade do comerciante dêsse tempo era a do nosso comerciante de retalho, ainda que exercesse o comercio em grande escala. O comercio por grosso, como hoje o entendemos, não era conhecido. Aparte isto havia um comercio empirico, de aventura. Assim ao conceito social que se formava do comercio correspondia, em certo modo, a propria primitividade dêle, ou, em outras palavras, o conceito que êle formava de si mesmo. Nenhum elemento de expansão consciente, ou de organisação esboçada, havia entrado, ou podia entrar, no comercio dêste tempo. A inexistencia da contabilidade, propriamente dita, define suficientemente o caracter comercial do periodo. As determinantes sociais do tempo eram outras; o comercio vivia àparte, se não economicamente, pelo menos socialmente.

    É esta a fase a que chamámos do comerciante mercador. Em certo sentido, e por uma razão já exposta, poderiamos ter-lhe chamado do comerciante operario. Haveria restrições especiais que fazer; mas, em sua generalidade representativa, a designação não seria injusta.

    Assim as coisas se mantiveram, salvas as primicias das fôrças vindouras, até se darem, ou se acentuarem, os trez fenomenos que transformaram, simultanea e relacionadamente, os metodos comerciais e a situação social do comercio e do comerciante. Esses trez fenomenos fôram: (1) a transformação social, havia muito preparada, que irrompeu violentamente na Revolução Franceza, (2) o desenvolvimento da vida ultramarina, e (3) o advento da máquina, e, correlativamente, o aperfeiçoamento dos transportes.

    O efeito da primeira destas causas foi psicologicamente curioso. A alteração da situação social do comerciante, proveniente da alteração geral de posições sociais, transformou necessariamente a mentalidade dêle. O mesmo homem tem uma alma diferente, sobretudo na acção, quando se sente livre e quando se sente subordinado. Ao subordinado são organicamente impossiveis a iniciativa e a organisação. Na epoca em que era socialmente subordinado, não podia o comerciante sequer pensar em dar ao comercio uma expansão coerente, 1.º, porque essa expansão era automaticamente tolhida por fôrças sociais invenciveis; 2.º, porque, repercutidas essas fôrças sociais, subsconscientemente, no espirito do proprio comerciante, a êle nem sequer ocorria a possibilidade dessa expansão coerente. Os espiritos subordinados só se sentem bem na rotina, porque a rotina é a subordinação. Liberto, porêm, o comerciante, pela transformação social moderna, dos ultimos vinculos da Idade Media, pôde por fim dedicar-se ao comercio, não como a um simples modo de ganhar a vida, mas como a uma profissão; não como a um mistér, mas como a uma arte.

    Foi pois nesta época que se definiram ou se iniciaram os tipos de comercio hoje correntes, e que nós, nascidos já tarde na nova era, mal podemos pensar que não existissem sempre. Aperfeiçoou-se o espirito de distribuição, e o proprio espirito de comercio. Desta época datam, organisadamente, o comercio de atacado e o comercio de concentração; nela se desenvolveu a vida comissionária, e, mais tarde, se formaram os «grandes armazens» de retalho, os consignatarios, e, por especialisações sucessivas, os agentes de toda a ordem que hoje simplificam as operações de importação e exportação, de distribuição e transporte.

    Paralelamente a isto, os reflexos economicos do individualismo do tempo, estimulando ― fomentando mesmo ― a concorrencia, compeliram o comerciante a sistematisar cada vez mais os seus esforços, a orientar cada vez mais pensadamente a sua actividade, a fazer do seu comercio, não só uma arte, mas uma arte cuidadosamente exercida.

    Nêste mesmo sentido influiram poderosamente as outras duas causas que citámos como determinantes dêste periodo comercial. O desenvolvimento da vida ultramarina, estimulando largamente o comercio a grande distancia e em grande escala, veio alargar os horisontes habituais do comercio normal, e forçar grande numero de comerciantes a, segundo a frase inglêsa, «pensar imperialmente». E o advento da máquina, forçando inevitavelmente a industria a tomar contacto directo com a sciencia, alguma coisa insensivelmente lhe insuflou da sistematisação que é a essencia désta; e como o comercio está em contacto intimo com a industria, para êle foi tambem passando lentamente êsse espirito de sistematisação.

    Em contraposição a isto, mas de acôrdo com o individualismo da época, o grande impulso que o comercio recebêra, a libertação que teve da inferiorisação social, as facilidades que estabeleceu a multiplicação de transportes e a sua melhoria ― tudo isto fez com que se canalisassem para o comercio inumeras actividades sem preparação especial ou tradicional para o exercicio dêle. E isto retardou e complicou a sistematisação que se esboçava.

    É esta fáse toda que chamámos do comerciante negociante. Empregamos esta expressão não como boa, mas á falta de melhor, e sobretudo para não dizer do comerciante comerciante, como seria realmente proprio. O que queremos indicar por ela é que nêste periodo o comercio tomou realmente, e até certo ponto, consciencia de si mesmo. Organizou-se individualmente, analiticamente. Tornou-se arte, mais ou menos bem aplicada. Distingue êste periodo, significativamente, a organisação definida da contabilidade. Uma coisa ainda faltava a êste comercio ― o elemento final da organisação, que é a coordenação, a sintese. Ha organisação, mas fragmentária; ha sistematisação, mas ainda instintiva. Por isso nos servimos da palavra «arte» ao caracterisar este periodo, e errariamos se usassemos de qualquer termo que se aproximasse de «sciencia».

    O fenomeno cultural, que acompanha êste fenomeno comercial, é de um paralelismo flagrante e exacto. O que distingue, nessa esfera, esta época é a preocupação scientifica, e a da vulgarisação ou popularisação da cultura. Com a sciencia, a cultura toma consciencia de si mesma; com o querer por força vulgarisar a sciencia, perturba e perverte essa consciencia que logrou. A vulgarisação scientifica e cultural do seculo dezanove foi quasi sempre incoerente e incoordenada, a popularisação de conhecimentos as mais das vezes imprudente e imperfeita. Ha coisas que se perdem quando se vulgarisam; ha materias de todo impossiveis de popularisar. E o crescente desenvolvimento, a crescente especialisação da sciencia, directa e indirecta, não fez senão multiplicar os conhecimentos invulgarisaveis. O que, em materia cultural, essencialmente carimba êste periodo é a emergência do jornalismo; e, em verdade, a evolução do jornalismo e a do comercio moderno são de um parelelismo nitidissimo.

    Como déstas observações claramente se depreënde, estamos ainda hoje, em grande parte, e em muitas nações, a dentro dêste periodo, ou, seja, ainda no seculo dezanove. Mas as nações da vanguarda comercial e cultural ― valha essa vanguarda o que valer ― passaram já nitidamente para outro periodo, e o certo é que em todas as nações se esboçam, com maior ou menor clareza, os caracteristicos dum periodo novo.

    Trez são as influencias que geraram, e estão gerando. a transformação do segundo periodo no terceiro : (1) a intensificação de todos os factores que criaram o segundo periodo, incluindo o proprio individualismo ― intensificação porêm tão grande que a diferença entre os dois periodos, de quantitativa, passou a ser qualitativa; (2) o aparecimento nitido de concorrencias nacionais, organisadas e definidas, umas vezes reforçando, outras sobrepondo-se, ás concorrencias individuais; e (3) o reaparecimento, e desenvolvimento rapidissimo, do principio sindical.

    O efeito principal destas causas ― nitidamente sobre o comercio, menos nitidamente, do ponto de vista pratico, sobre a cultura ―foi, onde quer que tenham aparecido fortemente, coagir o individuo, na sua vida material, a um grau de disciplina e de organisação que em certas coisas ― e o comercio é uma delas ― merece já, quasi, o nome de scientifica. A concorrencia individual, desenvolvendo-se para além de tudo que o seculo passado sonhara, obrigou o individuo a tomar todas as precauções para poder vencer; e onde essas precauções não são o abandono de todos os escrupulos ― fenomeno aliás hoje correntissimo em todos os ramos ― são o estudo atento dos processos a empregar, o estudo scientifico onde seja possivel, para tomar a deanteira aos concorrentes. O desenvolvimento desmedido da sciencia operou evidentemente no mesmo sentido ― directamente, penetrando todos do espirito scientifico, mas do espirito scientifico de precisão e, sobretudo, especialisação, pois as sciencias, á medida que se desenvolvem, aproximam-se de um estado matematico, e, ao mesmo tempo, se especialisam acentuadamente; e indirectamente, atravez da industria, agora inteiramente penetrada da sciencia, como se vê na proeminencia enorme, e crescente, da engenharia, hoje cheia de ramificações.

    Nêste mesmo sentido operaram os factores a que chamámos as concorrencías nacionais e o principio sindical ― este ultimo, porêm, um pouco duvidosamente. A «concorrencia nacional» organisada foi trazida para a evidencia universal pela Alemanha, cujo sistema de estado não só a estimulava, mas como que a compelia, a organisar nacionalmente, como uma guerra ― com uma tactica e uma estrategia estudadas ― a expansão do seu comercio. Este factor mais obrigou os comerciantes de toda a parte a dar ao seu comercio uma organisação e uma coordenação parecidas com aquelas que são hoje inevitaveis na industria. E é por isto que damos a este periodo da evolução do comercio o nome de do comerciante industrial.

    O principio sindical ― propriamente reacionario ou retrogrado, pois que é uma reversão ás corporações medievais ― emergiu nas classes operarias, e de aí galgou para todas as outras. Como, seja mau ou bom do ponto de vista social, sempre é um elemento de coordenação, temos nêle mais um elemento que se reflectiu no espirito geral e o impeliu mais para se compenetrar da necessidade de organisação. Acresce que o espirito de classe ou de profissão, que ele tende a criar, tem tambem efeitos de rigorosa especialidade, onde êsse espirito não seja apenas politico; assim, no caso das associações comerciais, gerais e especiais, e das camaras de comercio, se estabeleceu para o comerciante individual uma maior facilidade de estudar a sua profissão, ou o ramo especial dela que exerce. E o espirito geral de organisação com isto necessariamente se ampliou.

    O certo é que hoje, e mórmente nos paizes mais avançados materialmente, se vai tornando cada vez mais dificil o exercicio proficuo e duradouro do comercio a quem não o exerça como se fosse uma industria, com estudo, «sciencia» e sistematisação completa. Nêsses mesmos paizes a especialização vai crescendo; é corrente nos Estados Unidos da America as industrias afastarem de si por completo toda a actividade comercial, delegando em distribuidores domesticos e de exportação a venda dos artigos que fabricam. Em tudo isto se vê o espirito que anima, no comercio, a nossa época. Não sabemos se isto é progresso ― porque, em verdade, não se sabe ao certo o que é que constitui o progresso ―; mas é fóra de dúvida que é muito mais proficuo, muito mais interessante, e, até, muito mais simples, o comercio quando é exercido desta maneira. A simplificação da contabilidade organisada tambem define bem, em sua especie, esta epoca do comercio.

    Como estas observações, que acabamos de fazer sobre a fase actual do comercio, são de uma grande evidencia, e todos devem compreender que são exactas, não é necessario buscarmos neste caso a contraprova cultural, ou qualquer contraprova mesmo. E é bom que não tenhamos que ir buscar a contraprova cultural, pois ― talvez porque nossa epoca atravessa uma grande crise de cultura, ― os fenomenos de coordenação cultural estão muito menos nitidos do que os de coordenação comercial. O que se esboça, porêm, nos centros culturais mais representativos vem confirmar nitidamente o que já se passa nos meios comerciais do mesmo nivel. Mas, por emquanto, não ha nesse campo superior mais que esboços, desejos, tendencias. O espirito da sciencia e da engenharia ainda não chegou á arte e á literatura.

  • A EVOLUÇÃO DO COMERCIO

    ESTE estudo é propriamente nosso. Não lhe fomos buscar os elementos a nenhum tratado. Não tivemos mestre para escrevê-lo. O conhecimento atento da historia, e a analise firme dos factos que ela fornece, foi quanto nos foi preciso para a sua elaboração. Como não plagiamos, nem imitamos, nem sequér aceitamos criticamente, mas pensamos por nossa cabeça, visto que ela existe, achamos conveniente começar este artigo por dizer que êle é nosso, e que em nenhum ensaio ou tratado estranho se encontra o estudo qne êle encerra, nem, portanto, os ensinamentos que dêsse estudo se derivam. O seu a seu dono, mesmo quando sejamos nós o dono...

    A actividade social chamada comercio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossiveis, é contudo um dos dois caracteristicos distintivos das sociedades chamadas civilisadas. O outro caracteristico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comercio e a cultura houve sempre uma relação intima, ainda não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notavel que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercicio assiduo do comercio. Comercial, eminentemente comercial, foi Athenas. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.

    A relação entre os dois fenomenos é ao mesmo tempo de paralelismo é de causa-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre individuos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilisacional. Ora como os fenomenos da vida superior são de duas ordens ― materiais e mentais ―, devem ser materiais e mentais os fenomenos da vida superior civilisacional; e, como a vida é essencialmente relação, esses fenomenos devem ser de relação. Como o comercio é, por sua natureza, uma entrepenetração economica das sociedades, é no comercio que as relações materiais entre sociedades atingem o seu maximo; e como a cultura é uma entrepenetração artistica e filosofica das sociedades, é na cultura que as relações mentais entre povos conseguem o seu auge. Segue que uma sociedade com um alto grau de desenvolvimento material e mental, e, portanto, com um alto desenvolvimento da vida de relação, forçosamente será altamente comercial e altamente cultural paralelamente.

    Acresce, ainda, que o comercio é uma distribuição, centrifuga ou centripeta, da produção material, ou industria; e a cultura é uma distribuição, centrifuga ou centripeta, da produção mental, ou arte. Os fenomenos são pois rigorosamente paralelos. E, assim como, nos paizes de grande produção artistica, a curiosidade pela arte alheia se desenvolve, pois que a criação artistica propria não pode exercer-se sem interesse pela arte, e portanto tambem pela arte dos outros; assim tambem, num paiz de grande produção industrial, a necessidade de productos alheios ― que o proprio paiz ou não pode, ou não pode convenientemente, produzir ― nasce do estimulo ás necessidades internas que essa grande produção criou, depois de ter tido nelas origem.

    Mas entre os dois fenomenos ― comercio e cultura ― ha, tambem, uma relação de causa-e-efeito. A cultura, ao aperfeiçoar-se, tende para a universalidade, isto é, para não excluir da sua curiosidade elemento algum estranho. Quanto mais facil fôr o contacto com elementos estranhos, tanto mais essa curiosidade se animará, e a cultura permanecerá viva. Ora como o fenomeno material precede sempre o fenomeno mental, o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem se formado contactos materiais; e, como a cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacifico, o contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico ― e é isto mesmo que, em contraposição á guerra, distingue a actividade social chamada comercio.

    O estabelecimento, um pouco demorado, desta analogia ou paridade entre o fenomeno cultural e o comercial não é uma espécie de digressão ou devaneio nêste artigo e nesta Revista. Visa, antes de mais nada, a mostrar claramente a importancia social do comercio, e a mostrá-la áqueles mesmos que frequentemente a esquecem ou a negam. E como êsses, em geral, são os que são ou se julgam pessoas de cultura, o argumento, que se lhes opõe, é tirado das proprias preocupações dêles; responde-se-lhes na propria lingua que falam, ou dizem falar.

    Mas esta demonstração visa, tambem, a estabelecer ― para o que vamos expôr do que nos parece terem sido, a dentro da civilisação europeia, os estádios da evolução do comercio ― uma espécie de contraprova constante. Se comercio e cultura são actividades sociais necessariamente analogas e paralelas, deve haver uma analogia e um paralelismo entre os estádios da evolução comercial e os da evolução cultural. Determinado, pois, um estádio da evolução do comercio, será facil verificar se está bem determinado, verificando-se se lhe corresponde um estádio paralelo da evolução da cultura.

    Trez são as fases que, a nosso vêr, o comercio tem atravessado no decurso da civilisação a que pertencemos ― isto é, daquela civilisação que começa na chamada Idade Media e de aí se estende até nossos dias. A primeira fase ― a do comerciante mercador (assim lhe chamaremos) ― vai do inicio dessa civilisação até o começo da época «moderna», isto é, o periodo, do seculo dezoito para o dezanove, em que se deu o advento da maquina e do individualismo economico. A segunda fase ― a que chamaremos do comerciante negociante ― vai de aqui até a vinda, não já da maquina, mas da sciencia da maquina, ou seja do que denota a formação do tipo industrial moderno ― a predominancia absoluta (pois até ali era só relativa) da sciencia, por meio da engenharia, na vida pratica; a mecanisação, como dizia Rathenau. A terceira fase ― a do comerciante industrial (tal é o nome que lhe daremos) ― é a que parte e nasce deste ultimo fenomeno e está dando a côr ao tempo presente. A razão dos trez nomes distintivos, de que acabamos de servir-nos, ver-se-ha no decurso desta breve exposição.

    Cumpre, porêm, e sempre, advertir que a realidade não é uma régua, nem uma série de caixas: não tem marcas distintas, nem conhece separações absolutas. Quando, portanto, estabelecemos, para nossa conveniencia mental, «fases» e «periodos» na vida e na historia, e indicamos certos fenomenos como sinais do principio e do fim dessas fases, não devemos esquecer que esses fenomenos, que nos servem convenientemente de balisas, não são instantaneos mas prolongados; e que, assim, ha um largo espaço em que duas «épocas» sucessivas se confundem e se misturam, a ponto de não podermos bem dizer se tal ano ou caso está em uma ou outra delas, ou se não estará, por assim falar, em as duas ao mesmo tempo. Com esta reserva fundamental teem sempre que entender-se as classificações que se fazem na vida, e, sobretudo, na historia.

    Acresce, em materia historica, uma outra reserva, não menos importante. «Civilisação» é um termo abstracto; a realidade concreta está nas nações, ou nas regiões ou camadas sociais délas, que compõem essa «civilisação». Ora essas varias nações, e, dentro délas, essas partes délas, não caminham a par, e no mesmo passo. No mesmo seculo ha paizes que estão vivendo em «seculos» diferentes; no mesmo paiz ha regiões e camadas sociais que estão vivendo simultaneamente em «épocas» diversas. Quando estudamos um periodo historico, e buscamos determinar os seus caracteristicos, fazemo-los pelos paizes e pelas camadas sociais que estão na vanguarda tipica do movimento que nos parece ser o da civilisação, muito embora êsses paizes e essas camadas sejam na ocasião uma minoria. Nem se deve confundir a vanguarda da «civilisação» com a vanguarda da vitalidade social: quando é ascendente a curva da civilisação, a vanguarda está no ponto mais alto; quando é descendente, está no ponto mais baixo. Avança-se para a morte como para a vida.

    Com estas reservas fatais terá o leitor consciente que entender, não só este breve ensaio, mas qualquer estudo historico em que se fale de «evolução», de «fases de progresso», de «periodos de civilisação».

    Na época, em que colocámos o primeiro estádio da evolução do comercio, a civilisação tinha inicialmente, e substancialmente manteve, o tipo guerreiro e religioso. Sendo assim, o exercicio de qualquer mistér, que não fôsse o das armas ou o do sacerdocio, resultava, para a imaginação de todas as classes, inferior e desprezivel. Os misteres, que tinham por fim visivel o lucro, tinha-os essa época por uma espécie de servidão voluntaria, e os distinguia com o ferrete com que se marca a sordidez. Na proporção em que ainda sobrevive (pois ha fenomenos sociais em que ainda sobrevive) o espirito que animou a formação e a conservação déssa época, nessa mesma proporção se mantém ainda o desprezo pelo comerciante. Atinge de preferencia, é certo, o pequeno comerciante de retalho, cuja modestia social lhe não confere defeza alguma contra o antigo oprobio. E, até certo ponto, o pequeno retalhista ― neste mundo moderno de grandes armazens e grandes armazenistas ― é realmente uma sobrevivencia, embora uma sobrevivencia necessaria. Traz, portanto, ligado a si, com os caracteristicos da época ida em que todos eram mentalmente como êle ― por muito que materialmente divergissem ― uma espécie de sombra do desdem que nessa época lhe davam.

    Esta atitude social, universal na Idade Media para o comercio inteiro, sofreu uma transformação, não decisiva mas episodica, na Renascença; e, como é natural, sobretudo a sofreu nas pequenas republicas semiburguezas que distinguiram principalmente a Italia nêsse periodo. Mas, no conceito geral, o comerciante não deixou de ser encarado como, mais tarde ― fóra já da epoca da verdadeira servidão ― haveria de ser encarado o operario; como, aliás, muita gente ainda encara o operario em nossos dias. E se o comerciante escapava a este oprobio nas cidades-estados da Renascença, era, em verdade, não só pelo caracter especial da civilisação nessas comunidades, mas principalmente em virtude da riqueza que acumulasse. A época não dava para melhor conceito. Era o homem rico, e não o comerciante, que nessas sociedades desnobilisadas conseguia a consideração social. Subsistia forte o velho instinto aristocratico: tornadas necessariamente, em muitos casos, pequenas plutocracias, as cidades-estados da Renascença honravam essencialmente o comerciante, quando o honravam, não como comerciante mas como plutocrata ― como, portanto, em certo modo, aristocrata a dentro dêsse sistema.

    A contraprova, segundo o criterio que estabelecemos, é facil. A emergencia episodica do comerciante na vida social foi acompanhada nesta época, e exactamente nas mesmas comunidades, pela emergencia, igualmente episodica, do artista. O facto é conhecidissimo. O tipo geral de cultura, porêm, era de pura erudição; e, sendo assim, a cultura era necessariamente restricta. Era, ainda, servil e empirica, pois a simples erudição é, de sua natureza, parasitaria; e o espirito scientifico, que então renascia, não penetrava, senão incerta e episodicamente, na cultura. Onde havia cultura, porêm, e notadas as reservas expostas, ela era intensa, profunda e curiosa.

    O comercio, nesta época, tinha exactamente o caracter empirico, «especial» e, como comercio consciente, episodico, que a cultura do mesmo tempo revela. A mentalidade do comerciante dêsse tempo era a do nosso comerciante de retalho, ainda que exercesse o comercio em grande escala. O comercio por grosso, como hoje o entendemos, não era conhecido. Aparte isto havia um comercio empirico, de aventura. Assim ao conceito social que se formava do comercio correspondia, em certo modo, a propria primitividade dêle, ou, em outras palavras, o conceito que êle formava de si mesmo. Nenhum elemento de expansão consciente, ou de organisação esboçada, havia entrado, ou podia entrar, no comercio dêste tempo. A inexistencia da contabilidade, propriamente dita, define suficientemente o caracter comercial do periodo. As determinantes sociais do tempo eram outras; o comercio vivia àparte, se não economicamente, pelo menos socialmente.

    É esta a fase a que chamámos do comerciante mercador. Em certo sentido, e por uma razão já exposta, poderiamos ter-lhe chamado do comerciante operario. Haveria restrições especiais que fazer; mas, em sua generalidade representativa, a designação não seria injusta.

    Assim as coisas se mantiveram, salvas as primicias das fôrças vindouras, até se darem, ou se acentuarem, os trez fenomenos que transformaram, simultanea e relacionadamente, os metodos comerciais e a situação social do comercio e do comerciante. Esses trez fenomenos fôram: (1) a transformação social, havia muito preparada, que irrompeu violentamente na Revolução Franceza, (2) o desenvolvimento da vida ultramarina, e (3) o advento da máquina, e, correlativamente, o aperfeiçoamento dos transportes.

    O efeito da primeira destas causas foi psicologicamente curioso. A alteração da situação social do comerciante, proveniente da alteração geral de posições sociais, transformou necessariamente a mentalidade dêle. O mesmo homem tem uma alma diferente, sobretudo na acção, quando se sente livre e quando se sente subordinado. Ao subordinado são organicamente impossiveis a iniciativa e a organisação. Na epoca em que era socialmente subordinado, não podia o comerciante sequer pensar em dar ao comercio uma expansão coerente, 1.º, porque essa expansão era automaticamente tolhida por fôrças sociais invenciveis; 2.º, porque, repercutidas essas fôrças sociais, subsconscientemente, no espirito do proprio comerciante, a êle nem sequer ocorria a possibilidade dessa expansão coerente. Os espiritos subordinados só se sentem bem na rotina, porque a rotina é a subordinação. Liberto, porêm, o comerciante, pela transformação social moderna, dos ultimos vinculos da Idade Media, pôde por fim dedicar-se ao comercio, não como a um simples modo de ganhar a vida, mas como a uma profissão; não como a um mistér, mas como a uma arte.

    Foi pois nesta época que se definiram ou se iniciaram os tipos de comercio hoje correntes, e que nós, nascidos já tarde na nova era, mal podemos pensar que não existissem sempre. Aperfeiçoou-se o espirito de distribuição, e o proprio espirito de comercio. Desta época datam, organisadamente, o comercio de atacado e o comercio de concentração; nela se desenvolveu a vida comissionária, e, mais tarde, se formaram os «grandes armazens» de retalho, os consignatarios, e, por especialisações sucessivas, os agentes de toda a ordem que hoje simplificam as operações de importação e exportação, de distribuição e transporte.

    Paralelamente a isto, os reflexos economicos do individualismo do tempo, estimulando ― fomentando mesmo ― a concorrencia, compeliram o comerciante a sistematisar cada vez mais os seus esforços, a orientar cada vez mais pensadamente a sua actividade, a fazer do seu comercio, não só uma arte, mas uma arte cuidadosamente exercida.

    Nêste mesmo sentido influiram poderosamente as outras duas causas que citámos como determinantes dêste periodo comercial. O desenvolvimento da vida ultramarina, estimulando largamente o comercio a grande distancia e em grande escala, veio alargar os horisontes habituais do comercio normal, e forçar grande numero de comerciantes a, segundo a frase inglêsa, «pensar imperialmente». E o advento da máquina, forçando inevitavelmente a industria a tomar contacto directo com a sciencia, alguma coisa insensivelmente lhe insuflou da sistematisação que é a essencia désta; e como o comercio está em contacto intimo com a industria, para êle foi tambem passando lentamente êsse espirito de sistematisação.

    Em contraposição a isto, mas de acôrdo com o individualismo da época, o grande impulso que o comercio recebêra, a libertação que teve da inferiorisação social, as facilidades que estabeleceu a multiplicação de transportes e a sua melhoria ― tudo isto fez com que se canalisassem para o comercio inumeras actividades sem preparação especial ou tradicional para o exercicio dêle. E isto retardou e complicou a sistematisação que se esboçava.

    É esta fáse toda que chamámos do comerciante negociante. Empregamos esta expressão não como boa, mas á falta de melhor, e sobretudo para não dizer do comerciante comerciante, como seria realmente proprio. O que queremos indicar por ela é que nêste periodo o comercio tomou realmente, e até certo ponto, consciencia de si mesmo. Organizou-se individualmente, analiticamente. Tornou-se arte, mais ou menos bem aplicada. Distingue êste periodo, significativamente, a organisação definida da contabilidade. Uma coisa ainda faltava a êste comercio ― o elemento final da organisação, que é a coordenação, a sintese. Ha organisação, mas fragmentária; ha sistematisação, mas ainda instintiva. Por isso nos servimos da palavra «arte» ao caracterisar este periodo, e errariamos se usassemos de qualquer termo que se aproximasse de «sciencia».

    O fenomeno cultural, que acompanha êste fenomeno comercial, é de um paralelismo flagrante e exacto. O que distingue, nessa esfera, esta época é a preocupação scientifica, e a da vulgarisação ou popularisação da cultura. Com a sciencia, a cultura toma consciencia de si mesma; com o querer por força vulgarisar a sciencia, perturba e perverte essa consciencia que logrou. A vulgarisação scientifica e cultural do seculo dezanove foi quasi sempre incoerente e incoordenada, a popularisação de conhecimentos as mais das vezes imprudente e imperfeita. Ha coisas que se perdem quando se vulgarisam; ha materias de todo impossiveis de popularisar. E o crescente desenvolvimento, a crescente especialisação da sciencia, directa e indirecta, não fez senão multiplicar os conhecimentos invulgarisaveis. O que, em materia cultural, essencialmente carimba êste periodo é a emergência do jornalismo; e, em verdade, a evolução do jornalismo e a do comercio moderno são de um parelelismo nitidissimo.

    Como déstas observações claramente se depreënde, estamos ainda hoje, em grande parte, e em muitas nações, a dentro dêste periodo, ou, seja, ainda no seculo dezanove. Mas as nações da vanguarda comercial e cultural ― valha essa vanguarda o que valer ― passaram já nitidamente para outro periodo, e o certo é que em todas as nações se esboçam, com maior ou menor clareza, os caracteristicos dum periodo novo.

    Trez são as influencias que geraram, e estão gerando. a transformação do segundo periodo no terceiro : (1) a intensificação de todos os factores que criaram o segundo periodo, incluindo o proprio individualismo ― intensificação porêm tão grande que a diferença entre os dois periodos, de quantitativa, passou a ser qualitativa; (2) o aparecimento nitido de concorrencias nacionais, organisadas e definidas, umas vezes reforçando, outras sobrepondo-se, ás concorrencias individuais; e (3) o reaparecimento, e desenvolvimento rapidissimo, do principio sindical.

    O efeito principal destas causas ― nitidamente sobre o comercio, menos nitidamente, do ponto de vista pratico, sobre a cultura ―foi, onde quer que tenham aparecido fortemente, coagir o individuo, na sua vida material, a um grau de disciplina e de organisação que em certas coisas ― e o comercio é uma delas ― merece já, quasi, o nome de scientifica. A concorrencia individual, desenvolvendo-se para além de tudo que o seculo passado sonhara, obrigou o individuo a tomar todas as precauções para poder vencer; e onde essas precauções não são o abandono de todos os escrupulos ― fenomeno aliás hoje correntissimo em todos os ramos ― são o estudo atento dos processos a empregar, o estudo scientifico onde seja possivel, para tomar a deanteira aos concorrentes. O desenvolvimento desmedido da sciencia operou evidentemente no mesmo sentido ― directamente, penetrando todos do espirito scientifico, mas do espirito scientifico de precisão e, sobretudo, especialisação, pois as sciencias, á medida que se desenvolvem, aproximam-se de um estado matematico, e, ao mesmo tempo, se especialisam acentuadamente; e indirectamente, atravez da industria, agora inteiramente penetrada da sciencia, como se vê na proeminencia enorme, e crescente, da engenharia, hoje cheia de ramificações.

    Nêste mesmo sentido operaram os factores a que chamámos as concorrencías nacionais e o principio sindical ― este ultimo, porêm, um pouco duvidosamente. A «concorrencia nacional» organisada foi trazida para a evidencia universal pela Alemanha, cujo sistema de estado não só a estimulava, mas como que a compelia, a organisar nacionalmente, como uma guerra ― com uma tactica e uma estrategia estudadas ― a expansão do seu comercio. Este factor mais obrigou os comerciantes de toda a parte a dar ao seu comercio uma organisação e uma coordenação parecidas com aquelas que são hoje inevitaveis na industria. E é por isto que damos a este periodo da evolução do comercio o nome de do comerciante industrial.

    O principio sindical ― propriamente reacionario ou retrogrado, pois que é uma reversão ás corporações medievais ― emergiu nas classes operarias, e de aí galgou para todas as outras. Como, seja mau ou bom do ponto de vista social, sempre é um elemento de coordenação, temos nêle mais um elemento que se reflectiu no espirito geral e o impeliu mais para se compenetrar da necessidade de organisação. Acresce que o espirito de classe ou de profissão, que ele tende a criar, tem tambem efeitos de rigorosa especialidade, onde êsse espirito não seja apenas politico; assim, no caso das associações comerciais, gerais e especiais, e das camaras de comercio, se estabeleceu para o comerciante individual uma maior facilidade de estudar a sua profissão, ou o ramo especial dela que exerce. E o espirito geral de organisação com isto necessariamente se ampliou.

    O certo é que hoje, e mórmente nos paizes mais avançados materialmente, se vai tornando cada vez mais dificil o exercicio proficuo e duradouro do comercio a quem não o exerça como se fosse uma industria, com estudo, «sciencia» e sistematisação completa. Nêsses mesmos paizes a especialização vai crescendo; é corrente nos Estados Unidos da America as industrias afastarem de si por completo toda a actividade comercial, delegando em distribuidores domesticos e de exportação a venda dos artigos que fabricam. Em tudo isto se vê o espirito que anima, no comercio, a nossa época. Não sabemos se isto é progresso ― porque, em verdade, não se sabe ao certo o que é que constitui o progresso ―; mas é fóra de dúvida que é muito mais proficuo, muito mais interessante, e, até, muito mais simples, o comercio quando é exercido desta maneira. A simplificação da contabilidade organisada tambem define bem, em sua especie, esta epoca do comercio.

    Como estas observações, que acabamos de fazer sobre a fase actual do comercio, são de uma grande evidencia, e todos devem compreender que são exactas, não é necessario buscarmos neste caso a contraprova cultural, ou qualquer contraprova mesmo. E é bom que não tenhamos que ir buscar a contraprova cultural, pois ― talvez porque nossa epoca atravessa uma grande crise de cultura, ― os fenomenos de coordenação cultural estão muito menos nitidos do que os de coordenação comercial. O que se esboça, porêm, nos centros culturais mais representativos vem confirmar nitidamente o que já se passa nos meios comerciais do mesmo nivel. Mas, por emquanto, não ha nesse campo superior mais que esboços, desejos, tendencias. O espirito da sciencia e da engenharia ainda não chegou á arte e á literatura.

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