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A CASA BRANCA NAU PRETA
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o verão apagou-se...
Nem sonho, nem scismo, um torpor alastra em meu cerebro...
Não existe amanhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguem teve por mim...
Ha uma interrupção lateral na minha consciencia...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...
Quem dera que houvesse
Um estado não perfeitamente interior para alma,
Um objectivismo com guisos imoveis á roda de em mim...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Doe-me por detraz das costas da minha consciencia de sentir...
As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Nos ritmos perdidos das canções mortas dos marinheiros de sonho.
Arvores paradas da quinta, vistas atravez da janela,
Arvores extranhas a mim a um ponto inconcebivel á consciencia de as estar vendo,
Arvores eguaes todas a não serem mais que eu ve-las,
Não poder eu fazer qualquer cousa genero haver arvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá,
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...
Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?...
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro
Naus partem... Naus, não: barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isso devia ser o sentido da vida...
Quem poz as fórmas das arvores dentro da existencia das arvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho o meu pensamento que me dóe estar sem ele,
Sentir sem auxilio de poder para quando quizer, e o mar alto
E a ultima viagem, sempre para lá, das naus a subir...
Não ha substancias de pensamento na materia de alma com que penso...
Ha só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e quase eu...
Na vidraça aberta, fronteira ao angulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... (O morador é abstracto.)
Fecho o olhar e os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta,
E eu parado, mole, adormecido,
Tenho pela vista o tacto do mar lá em baixo embalando-me longe de aqui,
Tenho-o na inconsciencia e sofro...
Aos proprios palacios distantes a nau que penso não leva.
Ás escadas dando sobre o mar inatingivel ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplicitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu portico
E o mar entra por os Teus olhos o portico cessando...
Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá...
Humida sombra nos sons do tanque nocturno sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som doe...
Milagre do aparecimento da Senhora das Angustias aos loucos...
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos...
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa
E o mundo para além dos vitraes paisagem sem ruinas...
A casa branca nau preta...
Felicidade na Australia...
11 de Outubro de 1916
FERNANDO PESSOA
Director de Orpheu -
A CASA BRANCA NAU PRETA
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe amanhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...
Quem dera que houvesse
Um estado não perfeitamente interior para alma,
Um objetivismo com guizos imóveis à roda de em mim...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por de trás das costas da minha consciência de sentir...
As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Nos ritmos perdidos das canções mortas dos marinheiros de sonho.
Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá,
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...
Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?...
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro
Naus partem... Naus, não: barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isso devia ser o sentido da vida...
Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...
Não há substâncias de pensamento na matéria de alma com que penso...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e quase eu...
Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... (O morador é abstrato.)
Fecho o olhar e os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta,
E eu parado, mole, adormecido,
Tenho pela vista o tato do mar lá em baixo embalando-me longe de aqui,
Tenho-o na inconsciência e sofro...
Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
Às escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os Teus olhos o pórtico cessando...
Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá...
Húmida sombra nos sons do tanque noturno sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói...
Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos...
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos...
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...
A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...
11 de outubro de 1916
FERNANDO PESSOA
Diretor de Orpheu
A Casa Branca Nau Preta
Fernando Pessoa
O Heraldo , 1 de julho de 1917, p. 2.