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[4]
Addiamento
Depois de àmanhã, sim, só depois de àmanhã…
Levarei àmanhã a pensar em depois de àmanhã,
E assim será possivel; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistencia confusa da minha subjectividade objectiva,
O somno da minha vida real, intercalado,
O cansaço anticipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um electrico…
Esta especie de alma…
Só depois de àmanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar àmanhã no dia seguinte…
Elle é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-hei á secretaria para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de àmanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
[5] Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de àmanhã…
Quando era creança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infancia…
Depois de àmanhã serei outro,
A minha vida triumphar-se-ha,
Todas as minhas qualidades reaes de intelligente, lido e práctico
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de àmanhã…
Hoje quero dormir, redigirei àmanhã…
Por hoje, qual é o espectaculo que me repetiria a infancia?
Mesmo para eu comprar os bilhetes àmanhã,
Que depois de àmanhã é que está bem o espectaculo…
Antes, não…
Depois de àmanhã terei a pose publica que àmanhã estudarei.
Depois de àmanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de àmanhã…
Tenho somno como o frio de um cão vadio.
Tenho muito somno.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de àmanhã…
Sim, talvez só depois de àmanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
ALVARO DE CAMPOS
Poema publicado em A Revista da Solução Editora, 1929 e Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930. Apresentamos aqui as imagens de ambas as publicações, cujos textos são, em termos formais e de conteúdo, idênticos. -
[4]
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
[5] Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
ÁLVARO DE CAMPOS
Poema publicado em A Revista da Solução Editora, 1929 e Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930. Apresentamos aqui as imagens de ambas as publicações, cujos textos são, em termos formais e de conteúdo, idênticos.
Adiamento
Álvaro de Campos
A Revista da Solução Editora 1, 1929, pp. 4-5.
Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes 1, 1930, pp. 4-5.