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Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)

Fernando Pessoa

Athena 2, novembro de 1924, pp. 41-42.

  • [41]

    MARIO DE SÁ-CARNEIRO

    (1890-1916)

    Atque in perpetuum, frater, ave atque vale! Carmina 101, Catulo

    CAT.

    Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E porcerto a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os signaes notaveis d’esse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama ama só a egual, porque o faz egual com amal-o. Como porém o homem não pode ser egual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino: estagna só deus fingido, doente da sua ficção.

    Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se per morte o acabamento do que constitue a vida. E como á vida, além da mesma vida, a constitue o instincto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instincto natural com que vivel-a. Uns morrem; aos outros, tirado o instincto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem morte, morrem a vida em ella mesma. E é na juventude, quando nelles desabrocha a flor fatal e unica, que começam a sua morte vivida.

    No heroe, no sancto e no genio os Deuses se lembram dos homens. O heroe é um homem como todos, a quem coube por sorte o auxilio divino; não está nelle a luz que lhe astreia a fronte, sol da gloria ou luar da morte, e lhe separa o rosto dos de seus pares. O sancto é um homem bom a que os Deuses, por misericordia, cegaram, para que não soffresse; cego, pode crer no bem, em si, e em deuses melhores, pois não vê, na alma que cuida propria e nas cousas incertas que o cercam, a operação irremediavel do capricho dos Deuses, o jugo superior do Destino. Os Deuses são amigos do heroe, compadecem-se do sancto; só ao genio, porém, é que verdadeiramente amam. Mas o amor dos Deuses, como por destino não é humano, revela-se em aquillo em que humanamente se não revelára amor. Se só ao genio, amando-o, tornam seu egual, só ao genio dão, sem que queiram, a maldição fatal do abraço de fogo com que tal o affagam. Se a quem deram a belleza, [42]só seu attributo, castigam com a consciencia da mortalidade d’ella; se a quem deram a sciencia, seu attributo tambem, punem com o conhecimento do que nella ha de eterna limitação; que angustias não farão pesar sobre aquelles, genios do pensamento ou da arte, a quem, tornando-os creadores, deram a sua mesma essencia? Assim ao genio caberá, além da dor da morte da belleza alheia, e da magoa de conhecer a universal ignorancia, o soffrimento proprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, exul ao mesmo tempo em duas terras.

    Genio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a gloria os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, incolas da incomprehensão ou da indifferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.

    Mas para Sá-Carneiro, genio não só da arte mas da innovação nella, junctou-se, á indifferença que circumda os genios, o escarneo que persegue os innovadores, prophetas, como Cassandra, de verdades que todos teem por mentira. In quâ scribebat, barbara terra fuit. Mas, se a terra fôra outra, não variára o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilegio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se soffre a propria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruinas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sel-o. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A gloria é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado barbaro, que a guarda impoz imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldicto, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quizeram assim.

    Fernando Pessoa

  • [41]

    MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

    (1890-1916)

    Atque in perpetuum, frater, ave atque vale! Carmina 101, Catulo

    CAT. CAT[ULO]

    Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino: estagna só deus fingido, doente da sua ficção.

    Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la. Uns morrem; aos outros, tirado o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida.

    No herói, no santo e no génio os Deuses se lembram dos homens. O herói é um homem como todos, a quem coube por sorte o auxílio divino; não está nele a luz que lhe astreia a fronte, sol da glória ou luar da morte, e lhe separa o rosto dos de seus pares. O santo é um homem bom a que os Deuses, por misericórdia, cegaram, para que não sofresse; cego, pode crer no bem, em si, e em deuses melhores, pois não vê, na alma que cuida própria e nas coisas incertas que o cercam, a operação irremediável do capricho dos Deuses, o jugo superior do Destino. Os Deuses são amigos do herói, compadecem-se do santo; só ao génio, porém, é que verdadeiramente amam. Mas o amor dos Deuses, como por destino não é humano, revela-se em aquilo em que humanamente se não revelara amor. Se só ao génio, amando-o, tornam seu igual, só ao génio dão, sem que queiram, a maldição fatal do abraço de fogo com que tal o afagam. Se a quem deram a beleza, [42]só seu atributo, castigam com a consciência da mortalidade dela; se a quem deram a ciência, seu atributo também, punem com o conhecimento do que nela há de eterna limitação; que angústias não farão pesar sobre aqueles, génios do pensamento ou da arte, a quem, tornando-os criadores, deram a sua mesma essência? Assim ao génio caberá, além da dor da morte da beleza alheia, e da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, êxul ao mesmo tempo em duas terras.

    Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.

    Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. In quâ scribebat, barbara terra fuit. Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A gloria é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.

    Fernando Pessoa

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    • Catulo
    • Fernando Pessoa
    • Mário de Sá-Carneiro