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Dez minutos com Fernando Pessoa
A calva socratica, os olhos de corvo de Edgar Poe, e um bigode rizivel, chaplinesco ― eis a traços tão forte como precizos a mascara de Fernando Pessoa. Encontramo-lo friorento e encharcado desta chuva cruel de dezembro a uma mesa do Martinho da Arcada, ultima estampa romantica dos cafés do seculo XX. É ali que vivem agora os derradeiros abencerragens do «Orfeu». A lira não se partiu. Ecôa ainda, mas menos barbara, trazida da velha Grecia, no peito duma sereia. Até a foz romana do Tejo, Fernando Pessoa tem três almas, baptizadas na pia lustral da estetica nova: Alvaro de Campos, o das odes, convulsivo de dinamismo, Ricardo Reis, o classico, que trabalha maravilhosamente a proza, descobrindo na cinza dos tumulos, tesouros de imagens, e Alberto Caeiro, o super-clasico, magestoso como um principe. Mas desta vez fala Fernando Pessoa ― em «pessoa». O titulo da sua obra recente, «Mensagem», está entre nós, como um hifen de amizade literaria. Porque o titulo?
O poeta desce a escada de Jacob, lentamente, coberto de neblinas e de signos misteriosos. A sua inteligencia geometriza palavras, que vai rectificando empóz. A sua confidencia é quasi soturna, tragica de inspiração intima:
― «Mensagem» é um livro nacionalista, e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e depois pela esperança do Encoberto.
É dificil de entender, mas os poetas falam como as cavernas com boca de misterio. De resto os versos são oiro de lingua, fortes como tempestades.
― É um livro novo?
― Escrito em mim ha muito tempo. Ha poemas que são de 1914, quasi do tempo de «Orfeu».
― Mas estes são agora mais classicos, digamos. Versos de almas tranquilas...
― Talvez? É que eu tenho varias maneiras de escrever ― nunca uma.
― E como establece o contacto com o deserto branco do papel?
Pessoa, numa nuvem do opio:
― Por impulso, por intuição, que depois altero. O autor dá lugar ao critico, mas este sabe o que aquele quiz fazer...
― A sua «Mensagem»...
― Projectar no momento presente uma coisa que vem atravez de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quiz marcar o destino imperial de Portugal, esse imperio que perpassou através de D. Sebastião, e que continua, «ha-de ser».
Fernando Pessoa, recolhe-se. Disse tudo. Sobe a escada de Jacob e desaparece á nossa vista, num ceu constelado de enigmas e de belas imagens Ferreira Gomes que está ao nosso lado olha-nos com misterio. Que é do poeta?
A. P.
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Dez minutos com Fernando Pessoa
A calva socrática, os olhos de corvo de Edgar Poe, e um bigode risível, chaplinesco ― eis a traços tão forte como precisos a máscara de Fernando Pessoa. Encontramo-lo friorento e encharcado desta chuva cruel de dezembro a uma mesa do Martinho da Arcada, última estampa romântica dos cafés do século XX. É ali que vivem agora os derradeiros abencerragens do «Orfeu». A lira não se partiu. Ecoa ainda, mas menos bárbara, trazida da velha Grécia, no peito duma sereia. Até a foz romana do Tejo, Fernando Pessoa tem três almas, batizadas na pia lustral da estética nova: Álvaro de Campos, o das odes, convulsivo de dinamismo, Ricardo Reis, o clássico, que trabalha maravilhosamente a prosa, descobrindo na cinza dos túmulos, tesouros de imagens, e Alberto Caeiro, o superclássico, majestoso como um príncipe. Mas desta vez fala Fernando Pessoa ― em «pessoa». O título da sua obra recente, «Mensagem», está entre nós, como um hífen de amizade literária. Porquê o título?
O poeta desce a escada de Jacob, lentamente, coberto de neblinas e de signos misteriosos. A sua inteligência geometriza palavras, que vai retificando empós. A sua confidência é quase soturna, trágica de inspiração íntima:
― «Mensagem» é um livro nacionalista, e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e depois pela esperança do Encoberto.
É difícil de entender, mas os poetas falam como as cavernas com boca de mistério. De resto os versos são oiro de língua, fortes como tempestades.
― É um livro novo?
― Escrito em mim há muito tempo. Há poemas que são de 1914, quase do tempo de «Orfeu».
― Mas estes são agora mais clássicos, digamos. Versos de almas tranquilas...
― Talvez? É que eu tenho várias maneiras de escrever ― nunca uma.
― E como estabelece o contacto com o deserto branco do papel?
Pessoa, numa nuvem do ópio:
― Por impulso, por intuição, que depois altero. O autor dá lugar ao crítico, mas este sabe o que aquele quis fazer...
― A sua «Mensagem»...
― Projetar no momento presente uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D. Sebastião, e que continua, «há de ser».
Fernando Pessoa, recolhe-se. Disse tudo. Sobe a escada de Jacob e desaparece à nossa vista, num céu constelado de enigmas e de belas imagens Ferreira Gomes que está ao nosso lado olha-nos com mistério. Que é do poeta?
A. P. A[rtur] P[ortela]
Dez minutos com Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
Suplemento Literário do Diário de Lisboa , 14 de dezembro de 1934, p. 5.