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Do ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺDisse Amielʺ)

Bernardo Soares

Revolução , 7 de junho de 1932, p. 3.

  • Do "Livro do Desasocego"

    Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

    Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador debil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.

    De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce herva, chove na herva que cresce, e o sol doira a extensão da herva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tamsómente a verdade de uma metáfora.

    Estas palavras casuaes foram-me dictadas pela grande extensão da cidade, vista á luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafisico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento.

    O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da outra banda são de uma Suissa achatada. Sái um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até á hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instínto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz!

    FERNANDO PESSOA

  • Do "Livro do Desasocego"

    Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

    Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver. De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora. Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com urna virtude nobre do entendimento. O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da outra banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz!

    FERNANDO PESSOA

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