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“Prefácio” — Acrónios, de Luís Pedro

Fernando Pessoa

Acrónios, 1933.

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    PREFACIO

    O progresso da poesia, isto é, o das fórmas poeticas ― pois da mesma poesia, que é a verdade viva, não póde haver progresso, nem Homero foi ainda superado ―, obedece àquella dura lei a que todo o progresso obedece; em outras palavras, é um caso particular de um phenomeno geral. Designa-se por progresso a acquisição de uma coisa que é uma vantagem social tambem. É caso typico o da formação da Europa moderna: surgiu atravez da creação, diversa e colorida, das nacionalidades distinctas; resultou na perda do influxo romano e do uso universal da lingua latina, pelos quaes as nações de Europa tinham naturalmente a fraternidade que hoje se busca em vão, porque artificialmente.

    As fórmas poeticas, a dentro da nossa civilização ― isto é, da Grecia até nós ―, atravessaram trez estadios distinctos: o estadio quantitativo, da poesia grega e latina, em que o rhythmo se fundava na quantidade das syllabas, pressuppondo e exigindo uma exactidão e musicalidade de dicção e pronuncia que hoje nem sequer concebemos; o estadio syllabico, em que o numero das syllabas no verso, a accentuação, e artificios como a rima e a strophe rimada faziam por compensar a perda da antiga precisão quantitativa; o estadio rhythmico, em que não se cura de quanto seja regra, ou o pareça, mas se reduz a poesia, tamsòmente, a uma prosa com pausas artificiaes, isto é, independentes das que são naturaes em todo o discurso e nelle se indicam pela pontuação.

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    Cada estadio, ou, antes, cada fórma pela qual cada estadio se distingue, tem, como tudo, vantagens e desvantagens. A poesia quantitativa, apertadissima, obrigava todavia a uma disciplina verbal de tal ordem que se reflectia no mesmo pensamento; porisso a poesia grega e latina é de uma notavel clareza e limpidez. A poesia syllabica, menos apertada, se dissolve a disciplina do pensamento, mantém comtudo a da emoção; é preciso sentir claro, por obscuro que se pense, para lançar equilibradamente o movimento strophico, alinhando e rimando. A poesia rhythmica nem disciplina a inteligencia nem a emoção, a não ser que estas estejam disciplinadas em, e por, si mesmas; segue, porém, todos os movimentos do espirito, como a sombra os do corpo, com grandes e desmedidas distorsões. A primeira estorva a emoção em proveito do pensamento; a segunda estorva o pensamento em proveito da emoção; a terceira a ambos estorva, ou tende a estorvar, em proveito do que, transcendendo pensamento e emoção, é a mesma individualidade.

    É regra de toda a vida social que, quanto mais liberdade nos é dada, menos podemos dar a nós mesmos. Se me fecharem num subterraneo, tenho liberdade de fazer muita coisa sem risco de cahir do telhado abaixo. No telhado, em pleno ar livre, tenho que ver melhor onde ponho os pés. A vantagem e a desvantagem da poesia rhythmica, ou livre, é que ella exige de nós que nos disci [7]plinemos com uma força e uma segurança que as poesias menos livres nos não exigiam, pois ellas mesmas tinham em si com que disciplinar-nos. Isto é vantagem porque a disciplina assim adquirida é mais intima e profunda; é desvantagem porque é muito mais difficil de adquirir.

    O livro de Luiz Pedro, a que estas considerações abstractas servem de breve prefacio, é escripto quasi todo em verso puramente rhythmico; e a tal ponto isso é natural em seu auctor que aquelles mesmos poemas, que são compostos em verso que elle quere que seja regular, abundam em fugas e dissonancias, o que aliás já succedera ao meu velho amigo Alvaro de Campos, no «Opiario» que precedeu a emergencia rhythmica da «Ode Triumphal».

    Para livro de quem principia, o de Luiz Pedro é bom principio. Depois de o escrever, o que lhe compete é investigar o seguinte: se a poesia livre, em que o livro é composto, representa uma incoordenação a que ha que dar, mais tarde, uma disciplina externa; se uma coordenação imperfeita, em que ha que formar, mais tarde, uma disciplina interna.

    Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma; mas, se assim é, alguns hão de ir para lá muito tortos. Ha dois caminhos direitos entre dois pontos: o que vae de um ponto ao outro em linha recta; e o que dá a volta ao mundo até chegar lá, em complemento da mesma linha. Figura o primeiro, no caso presente, a poesia livre; [8]figura o segundo a poesia presa. O segundo é mais facil, porque dá mais espaço para se dar por elle; o primeiro é mais difficil, porque temos que estar certos desde o principio.

    São estas as considerações que submetto a Luiz Pedro, que m'as pediu. Submetto-as tambem a varias outras pessoas, que se esqueceram de m'as pedir.

    FERNANDO PESSOA

    Transcrição feita a partir do exemplar presente na Biblioteca da Casa Fernando Pessoa com a cota 8-426, em https://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt/8-426.
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    PREFÁCIO

    O progresso da poesia, isto é, o das formas poéticas ― pois da mesma poesia, que é a verdade viva, não pode haver progresso, nem Homero foi ainda superado ―, obedece àquela dura lei a que todo o progresso obedece; em outras palavras, é um caso particular de um fenómeno geral. Designa-se por progresso a aquisição de uma coisa que é uma vantagem social também. É caso típico o da formação da Europa moderna: surgiu através da criação, diversa e colorida, das nacionalidades distintas; resultou na perda do influxo romano e do uso universal da língua latina, pelos quais as nações de Europa tinham naturalmente a fraternidade que hoje se busca em vão, porque artificialmente.

    As formas poéticas, a dentro da nossa civilização ― isto é, da Grécia até nós ―, atravessaram três estádios distintos: o estádio quantitativo, da poesia grega e latina, em que o ritmo se fundava na quantidade das sílabas, pressupondo e exigindo uma exatidão e musicalidade de dicção e pronúncia que hoje nem sequer concebemos; o estádio silábico, em que o número das sílabas no verso, a acentuação, e artifícios como a rima e a estrofe rimada faziam por compensar a perda da antiga precisão quantitativa; o estádio rítmico, em que não se cura de quanto seja regra, ou o pareça, mas se reduz a poesia, tão-somente, a uma prosa com pausas artificiais, isto é, independentes das que são naturais em todo o discurso e nele se indicam pela pontuação.

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    Cada estádio, ou, antes, cada forma pela qual cada estádio se distingue, tem, como tudo, vantagens e desvantagens. A poesia quantitativa, apertadíssima, obrigava todavia a uma disciplina verbal de tal ordem que se refletia no mesmo pensamento; por isso a poesia grega e latina é de uma notável clareza e limpidez. A poesia silábica, menos apertada, se dissolve a disciplina do pensamento, mantém contudo a da emoção; é preciso sentir claro, por obscuro que se pense, para lançar equilibradamente o movimento estrófico, alinhando e rimando. A poesia rítmica nem disciplina a inteligência nem a emoção, a não ser que estas estejam disciplinadas em, e por, si mesmas; segue, porém, todos os movimentos do espírito, como a sombra os do corpo, com grandes e desmedidas distorsões. A primeira estorva a emoção em proveito do pensamento; a segunda estorva o pensamento em proveito da emoção; a terceira a ambos estorva, ou tende a estorvar, em proveito do que, transcendendo pensamento e emoção, é a mesma individualidade.

    É regra de toda a vida social que, quanto mais liberdade nos é dada, menos podemos dar a nós mesmos. Se me fecharem num subterrâneo, tenho liberdade de fazer muita coisa sem risco de cair do telhado abaixo. No telhado, em pleno ar livre, tenho que ver melhor onde ponho os pés. A vantagem e a desvantagem da poesia rítmica, ou livre, é que ela exige de nós que nos disci [7]plinemos com uma força e uma segurança que as poesias menos livres nos não exigiam, pois elas mesmas tinham em si com que disciplinar-nos. Isto é vantagem porque a disciplina assim adquirida é mais íntima e profunda; é desvantagem porque é muito mais difícil de adquirir.

    O livro de Luís Pedro, a que estas considerações abstratas servem de breve prefácio, é escrito quase todo em verso puramente rítmico; e a tal ponto isso é natural em seu autor que aqueles mesmos poemas, que são compostos em verso que ele quer que seja regular, abundam em fugas e dissonâncias, o que aliás já sucedera ao meu velho amigo Álvaro de Campos, no «Opiário» que precedeu a emergência rítmica da «Ode Triunfal».

    Para livro de quem principia, o de Luís Pedro é bom princípio. Depois de o escrever, o que lhe compete é investigar o seguinte: se a poesia livre, em que o livro é composto, representa uma incoordenação a que há que dar, mais tarde, uma disciplina externa; se uma coordenação imperfeita, em que há que formar, mais tarde, uma disciplina interna.

    Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma; mas, se assim é, alguns hão de ir para lá muito tortos. Há dois caminhos direitos entre dois pontos: o que vai de um ponto ao outro em linha reta; e o que dá a volta ao mundo até chegar lá, em complemento da mesma linha. Figura o primeiro, no caso presente, a poesia livre; [8]figura o segundo a poesia presa. O segundo é mais fácil, porque dá mais espaço para se dar por ele; o primeiro é mais difícil, porque temos que estar certos desde o princípio.

    São estas as considerações que submeto a Luís Pedro, que mas pediu. Submeto-as também a várias outras pessoas, que se esqueceram de mas pedir.

    FERNANDO PESSOA

    Transcrição feita a partir do exemplar presente na Biblioteca da Casa Fernando Pessoa com a cota 8-426, em https://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt/8-426.
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