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O que um milionario americano fez em Portugal
A Colónia Infantil Macfadden em S. João do Estoril
Os milionários, e sobretudo os milionários americanos, que são popularmente os típicos, não gosam, em geral, de uma celebridade entusiástica. Do género de consideração que recebem dos que lhes são alheios, é exemplo cómico aquela frase com que Chesterton abre um dos seus contos: «Quer-me parecer que há uma centena de novelas policiárias que começam com a descoberta de que foi assassinado um milionário americano, acontecimento que, por qualquer motivo, é tido como uma espécie de desgraça.»
Esta falta de afeição pública é derivada, na sua quási totalidade, da normal inveja humana a quem é muito rico, ou muito poderoso, ou muito inteligente. A inveja, porém, decresce, porque se altera com a admiração, na proporção em que o invejante tem consciência da impossibilidade de atingir a situação do invejado. É difícil o homem qualquer supôr-se capaz de uma celebridade ou posição que assente na superioridade intelectual; pode, é certo, negar essa superioridade intelectual, mas então e que inveja não é já a inteligência que nega, mas a posição ou celebridade, que não pode negar. É mais fácil, mas ainda difícil, supôr-se um qualquer capaz de uma celebridade de poder; embora atribua a conquista dêsse poder a qualidades em si mesmas inferiores, como o servilismo ou a hipocrisia, tem que convir consigo, contra vontade, que o servilismo teve que ser firme e a hipocrisia hábil para conseguirem êsse fim. O que êle inveja, portanto, sem que o queira ou confesse, não é o poder conquistado, mas a firmeza, ainda que servil, e a habilidade, ainda que hipócrita, com que êsse poder se conquistou.
O caso do dinheiro é inteiramente diferente. O dinheiro é, aparentemente, um fenómeno externo e ocasional, e a fortuna que aquele acumulou em anos de trabalho paciente ou inteligente, pode êste igualá-la numa grande noite de roleta, num desvairamento feliz na Bôlsa, num bilhete único da lotaria. Estes casos, porém, são excepções, nem os ministra a realidade senão para o fim clássico de provarem a regra. As fortunas assim feitas, ràpidamente estão desfeitas: o que o vento trouxe, o vento o leva. Não assentando num acto de inteligência ou de vontade, não há inteligência que as defenda nem vontade que as possa conservar.
O facto é que as grandes fortunas, quando não sejam hereditárias são quási sempre efeito, em sua origem, de um poderoso exercício da vontade ou da inteligência, e particularmente daquela espécie prática da vontade que estabelece um só fim e dêle se não desvia, ou daquela espécie prática da inteligência que consiste na vigilância das oportunidades e no seu aproveitamento imediato. Mais tarde, sim, no desenvolvimento da fortuna, podem entrar outros elementos, mas a vontade ou inteligência original constantemente resguarda e defende o que originalmente criou.
Os milionários são, por traz do dinheiro, homens, e àparte êsse dinheiro, têm as qualidades e os defeitos que tinham quando o não tinham. Se havia nêles, ingenitamente, uma forte tendência filantropica, será absurdo que se esqueçam de a realizar quando a podem realizar sem dificuldade. A dureza, a implacabilidade, que miticamente se atribuem aos grandes financeiros, são efeito, não do dinheiro, mas da luta; são comuns a êles e aos lutadores por dinheiro que nunca o alcançaram. Conheço pequenos lojistas, caixeiros de praça, donas de casa, que, em virtude da luta comum pelo dinheiro, têm a mesma dureza, a mesma implacabilidade, que o protagonista de Les affaires sont les affaires . O fundo moral é o mesmo; o que a êstes falta é o golpe de vista, a inteligencia penetrante, a imaginação construtiva; o que êstes não atingem é a riqueza e a posição a que, com êsse fundo, essas qualidades levam; o de que êstes não sofrem é da visibilidade dessa posição.
Bernarr Macfadden, milionário americano, é sinceramente um filantropo, e essa sinceridade é tanto mais manifesta e incontestável, quando se efectiva por processos que são a aplicação de teorias e de sistemas que constituiram sempre a sua principal preocupação. Começou êle a sua vida prática por, sendo débil, se curar dessa debilidade por processos gimnásticos e dieteticos que êle mesmo originou. Começou a sua riqueza por publicar e vender bem revistas em que êsses processos se explicavam e defendiam. Aplica a sua riqueza, em parte, a disseminar gratuitamente êsses processos, principalmente na criação de colónias infantis, onde crianças debeis recebem, pela aplicação dos mesmos processos, uma educação física, e até moral, que lhes dá a saúde e a alegria e as põe no caminho de uma vida sã, forte e independente. Há, pois, uma continuidade absoluta em toda a vida dêste homem, uma sinceridade essencial manifestada por essa mesma continuidade. Não se trata de dar um milhão de dolars ou de libras a êste ou àquêle hospital, num gesto impessoal, externo e decorativo — caro, é certo, porém fácil a quem o caro é barato. Trata se de um acto não só moral mas intelectual e as altas obras sociais são aquelas em que colaboram a moral e a inteligência.
Até ao ano passado, as colónias infantis de Macfadden não existiam senão nos Estados Unidos; uma experiencia com rapazes italianos — a primeira a saír da antiga norma — foi contudo [23]feita, ainda, nos Estados Unidos, para onde os rapazes seguiram de Itália. O ano anterior, porém, decidiu Macfadden fazer uma experiencia, ou, mais própriamente, uma exibição, na Europa: beneficiava um certo número de crianças débeis, e, ao mesmo tempo, fazia uma demonstração a aproveitar, fôsse pela Sociedade das Nações, que a registrasse para os devidos efeitos como demonstração eficaz; fôsse pelo país onde se realizasse, que, verificando os resultados, naturalmente se decidiria a aplicar os processos; fôsse por ambos cumulativamente. No caso provável de o país escolhido decidir aplicar às suas crianças — sobretudo às pobres — os processos ali mesmo demonstrados, era, até, possível que Macfadden continuasse a manter, à sua custa, a primitiva colónia demonstrativa, que assim permaneceria como colónia tipo.
Dada a circunstância de a demonstração dever ser, primàriamente, levada ao conhecimento da Sociedade das Nações, parece que o país em que se pensou em realizá-la era, como parecia melhor, a Suiça. Macfadden admitia, porém, a possibilidade de ser outro país mais apropriado à experiência. Bastava que fôsse apropriado e que fôsse europeu.
Com êste fito encarregou um seu amigo, o jornalista americano Albin E. Johnson, de descobrir qual seria o melhor país, e o melhor local nêsse país, para se realizar a demonstração. Sucede que Albin Johnson era — como creio que ainda é — correspondente especial de vários jornais americanos junto da Sociedade das Nações; e sucede que, em virtude dessa situação, veio em 1930 a Portugal, acompanhado de sua mulher, na excursão que aqui fizeram, a convite do Govêrno Português, os jornalistas que ali trabalhavam. Madame Johnson ficou encantada com Portugal e sugeriu a seu marido que fôsse êste o país indicado a Macfadden para a realização da experiência. Expôz-lhe (foi o próprio Johnson que mo contou) que não havia em parte alguma da Europa, que êles ambos conheciam bem, clima igual ao de Portugal, e sobretudo da zona que vai de Lisboa a Cascaes, e que, advindo do estabelecimento da Colónia infantil um grande rèclame para o país onde se estabelecesse (dados os numerosos jornais e revistas de que Macfadden é proprietário), era mais justo àparte o próprio clima, que fôsse escolhido Portugal do que a Suiça. Portugal merecia toda a propaganda, e não a tinha; a Suiça tinha, e tem, a sua propaganda automàticamente feita.
Johnson concordou imediatamente, e para isso, antes de saír de Portugal, entrou em contacto com quem justamente lhe foi indicado para melhor o orientar no assunto — o Dr. Fernando Lobo d’Avila Lima, meu velho amigo, homem preocupado com problemas educativos, e preocupado sincera e tècnicamente com êles, sem intuito de propaganda própria ou de comércio ulterior. Assim se realizou a primeira entrevista, a que assisti, e nela ficou assente que seria proposto a Macfadden que a demonstração se fizesse em Portugal.
O sistema Macfadden consiste –tanto quanto mais tarde pude averiguar– na reünião de três elementos: vida, quanto possível, ao ar livre; uma dieta simples e estudada; certos exercícios gimnásticos. Estes últimos, baseados no princípio geral vulgarmente conhecido por gimnástica sueca, caracterizam-se todavia por neles se incluírem elementos de dissociação. O propósito, assim buscado e conseguido, é de desmecanizar os movimentos, chamando, pois, a atenção constantemente à superfície. O aluno nunca sabe qual a voz de comando que lhe vai ser dada a seguir, nem a ordem de movimentos em que vai ser feito determinado exercício, nem a fórma exacta como vai ser chamado a coordenar certos movimentos.
Tudo isto está bem visto e bem pensado. O corpo não é mais do que o instrumento da vontade, a ferramenta de que o espírito se serve para actuar sôbre o mundo em que, por êsse [24]mesmo corpo, exteriormente existe. O propósito racional da gimnástica é, pois, através da educação do corpo, educar a vontade; e a vontade educa-se, primàriamente, através da atenção. Os processos gimnásticos vulgares, pelos quais se considera o corpo como um cadáver vivo cujo músculos há que assoprar, não servem senão para criar inúteis fortes, bêbados da musculatura, homens cujo ideal social é o de serem carroceiros sem carroça. Não assim nos verdadeiros sistemas gimnásticos, nem, particularmente, no sistema Macfadden. Nêste, os exercícios tendem, como depois pude observar, para tornar a atenção pronta, rápida, intensa, os movimentos inteligentes e disciplinados, e a generalidade do sistema a fazer do indivíduo um ser disperto, livre, maleável, capaz de agir alegremente e depressa, apto a pensar, naturalmente, pela sua própria cabeça.
Foi isto que Bernarr Macfadden se propôz realizar na Europa, e possìvelmente em Portugal. Foi isto que em Portugal, com cincoenta rapazitos pobres, e no curto espaço de seis meses, triunfalmente realizou.
Desde o princípio, e embora a minha intervenção no assunto nunca fôsse senão, por assim dizer, abstracta e contemplativa, segui com grande interêsse as fases, primeiro incertas e para a realização, depois certas e de execução, do seu desenvolvimento. O meu interêsse não era o de ser, em qualquer sentido, entendido na matéria, mas o de vêr as vantagens que advinham para o país da efectivação do projecto, e também a lembrança de quanto, embora tão longe de atleta eu devo à gimnástica. Quando, em 1907, o Prof. Egas Moniz me passou, para fins gimnásticos, para as mãos de Luís Furtado Coelho, para ser cadáver só me faltava morrer. Em menos de três meses, e a três lições por semana pôz-me Furtado Coelho em tal estado de transformação que, diga-se com modestia, ainda hoje existo — com que vantagens para a civilização europeia, não me compete a mim dizer. Eu não sabia, é certo, se o sistema Macfadden tinha parecenças, excepto gerais, com o de Furtado Coelho, nem se os instrutores de Macfadden teriam a inegualável competência, intelectual e profissional, do meu velho professor e amigo, ou o dom dinâmico, que êle tinha e tem, de imediatamente fazer criar interesse pela gimnástica a quem está no estado de não saber ter interesse por coisa alguma. Parti, porém, do princípio que, qualquer que fôsse o sistema Macfadden, bastava ser construído por um homem entendido na matéria e que a si mesmo se apresentava como demonstração primária e notável, bastava incluir exercícios ao ar livre e uma dieta sã e simples, para dêle necessáriamente advirem resultados favoraveis a quantas crianças êle se aplicasse.
Depois de uma ida à América, para conferenciar com Macfadden, do Dr. Fernando Lobo de Avila Lima, como delegado da Junta de Educação Nacional, ficou definitivamente assente que a demonstração se faria em Portugal. Seguiu-se, um pouco mais tarde, a cedencia, pelo Ministério da Guerra, do edifício dos Banhos de Póça, em S. João do Estoril, para a instalação da Colónia Infantil. O Asilo Nunalvares cedeu cincoenta rapazes para matéria de demonstração. Começou esta em Novembro de 1931, acabou em Abril de 1932. Foi um triunfo assombroso e completo. Os pequenos sumidos e cabisbaixos, que entraram em Novembro, foram, até Abril, transmudados, por uma alquimía alegre, em crianças verdadeiras. As fotografias individuais, tiradas em Novembro e em Março, mostram flagrantemente, por comparação, a transformação física em cada rapaz. Mas só quem viu e observou póde fazer ideia da correspondente vitalização mental.
Para director da Colónia e seu instrutor gimnástico, mandou Macfadden a Portugal um especialista dos seus processos, o capitão-aviador Claude De Vitalis. A escolha não poderia ter sido melhor. Áparte a sua proficiencia técnica, que não sou eu competente para abonar, mas que tanto a escolha de Macfadden como os resultados obtidos abonam por si mesmos, o De Vitalis é um entusiasta carinhoso. Ama o sistema Macfadden e adora as crianças a quem o aplica. Foi, lembro-me bem, com grande e visivel mágua que, quando, quasi no fim, visitei a Colónia, êle me disse textualmente, salvo que o disse em inglês: «V. não imagina, meu velho, a pena que me faz deixar estas crianças. Em primeiro lugar tenho simplesmente pena, porque as adoro. Em segundo lugar, se estas Colónias não continuarem, se o seu exemplo não frutificar aqui, para que serviu isto tudo? E o que vái ser destes pequenos? Voltam para onde estavam e para aquilo que os pôs como estavam quando aqui os recebi? Nêsse caso, chega a ser uma barbaridade ter-lhes feito o bem que aqui se lhes fez, pois o tiveram simplesmente para o perder.»
Faço minhas as palavras do De Vitalis, mas, por princípio e dever, não faço meu o seu vago pessimismo.
Fernando Pessoa
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O que um milionário americano fez em Portugal
A Colónia Infantil Macfadden em S. João do Estoril
Os milionários, e sobretudo os milionários americanos, que são popularmente os típicos, não gozam, em geral, de uma celebridade entusiástica. Do género de consideração que recebem dos que lhes são alheios, é exemplo cómico aquela frase com que Chesterton abre um dos seus contos: «Quer-me parecer que há uma centena de novelas policiárias que começam com a descoberta de que foi assassinado um milionário americano, acontecimento que, por qualquer motivo, é tido como uma espécie de desgraça.»
Esta falta de afeição pública é derivada, na sua quase totalidade, da normal inveja humana a quem é muito rico, ou muito poderoso, ou muito inteligente. A inveja, porém, decresce, porque se altera com a admiração, na proporção em que o invejante tem consciência da impossibilidade de atingir a situação do invejado. É difícil o homem qualquer supor-se capaz de uma celebridade ou posição que assente na superioridade intelectual; pode, é certo, negar essa superioridade intelectual, mas então e que inveja não é já a inteligência que nega, mas a posição ou celebridade, que não pode negar. É mais fácil, mas ainda difícil, supor-se um qualquer capaz de uma celebridade de poder; embora atribua a conquista desse poder a qualidades em si mesmas inferiores, como o servilismo ou a hipocrisia, tem que convir consigo, contra vontade, que o servilismo teve que ser firme e a hipocrisia hábil para conseguirem esse fim. O que ele inveja, portanto, sem que o queira ou confesse, não é o poder conquistado, mas a firmeza, ainda que servil, e a habilidade, ainda que hipócrita, com que esse poder se conquistou.
O caso do dinheiro é inteiramente diferente. O dinheiro é, aparentemente, um fenómeno externo e ocasional, e a fortuna que aquele acumulou em anos de trabalho paciente ou inteligente, pode este igualá-la numa grande noite de roleta, num desvairamento feliz na Bolsa, num bilhete único da lotaria. Estes casos, porém, são exceções, nem os ministra a realidade senão para o fim clássico de provarem a regra. As fortunas assim feitas, rapidamente estão desfeitas: o que o vento trouxe, o vento o leva. Não assentando num ato de inteligência ou de vontade, não há inteligência que as defenda nem vontade que as possa conservar.
O facto é que as grandes fortunas, quando não sejam hereditárias são quase sempre efeito, em sua origem, de um poderoso exercício da vontade ou da inteligência, e particularmente daquela espécie prática da vontade que estabelece um só fim e dele se não desvia, ou daquela espécie prática da inteligência que consiste na vigilância das oportunidades e no seu aproveitamento imediato. Mais tarde, sim, no desenvolvimento da fortuna, podem entrar outros elementos, mas a vontade ou inteligência original constantemente resguarda e defende o que originalmente criou.
Os milionários são, por trás do dinheiro, homens, e à parte esse dinheiro, têm as qualidades e os defeitos que tinham quando o não tinham. Se havia neles, ingenitamente, uma forte tendência filantrópica, será absurdo que se esqueçam de a realizar quando a podem realizar sem dificuldade. A dureza, a implacabilidade, que miticamente se atribuem aos grandes financeiros, são efeito, não do dinheiro, mas da luta; são comuns a eles e aos lutadores por dinheiro que nunca o alcançaram. Conheço pequenos lojistas, caixeiros de praça, donas de casa, que, em virtude da luta comum pelo dinheiro, têm a mesma dureza, a mesma implacabilidade, que o protagonista de Les affaires sont les affaires. O fundo moral é o mesmo; o que a estes falta é o golpe de vista, a inteligência penetrante, a imaginação construtiva; o que estes não atingem é a riqueza e a posição a que, com esse fundo, essas qualidades levam; o de que estes não sofrem é da visibilidade dessa posição.
Bernarr Macfadden, milionário americano, é sinceramente um filantropo, e essa sinceridade é tanto mais manifesta e incontestável, quando se efetiva por processos que são a aplicação de teorias e de sistemas que constituiram sempre a sua principal preocupação. Começou ele a sua vida prática por, sendo débil, se curar dessa debilidade por processos ginásticos e dietéticos que ele mesmo originou. Começou a sua riqueza por publicar e vender bem revistas em que esses processos se explicavam e defendiam. Aplica a sua riqueza, em parte, a disseminar gratuitamente esses processos, principalmente na criação de colónias infantis, onde crianças débeis recebem, pela aplicação dos mesmos processos, uma educação física, e até moral, que lhes dá a saúde e a alegria e as põe no caminho de uma vida sã, forte e independente. Há, pois, uma continuidade absoluta em toda a vida deste homem, uma sinceridade essencial manifestada por essa mesma continuidade. Não se trata de dar um milhão de dólares ou de libras a este ou àquele hospital, num gesto impessoal, externo e decorativo — caro, é certo, porém fácil a quem o caro é barato. Trata-se de um ato não só moral mas intelectual e as altas obras sociais são aquelas em que colaboram a moral e a inteligência.
Até ao ano passado, as colónias infantis de Macfadden não existiam senão nos Estados Unidos; uma experiência com rapazes italianos — a primeira a sair da antiga norma — foi contudo [23]feita, ainda, nos Estados Unidos, para onde os rapazes seguiram de Itália. O ano anterior, porém, decidiu Macfadden fazer uma experiência, ou, mais propriamente, uma exibição, na Europa: beneficiava um certo número de crianças débeis, e, ao mesmo tempo, fazia uma demonstração a aproveitar, fosse pela Sociedade das Nações, que a registasse para os devidos efeitos como demonstração eficaz; fosse pelo país onde se realizasse, que, verificando os resultados, naturalmente se decidiria a aplicar os processos; fosse por ambos cumulativamente. No caso provável de o país escolhido decidir aplicar às suas crianças — sobretudo às pobres — os processos ali mesmo demonstrados, era, até, possível que Macfadden continuasse a manter, à sua custa, a primitiva colónia demonstrativa, que assim permaneceria como colónia tipo.
Dada a circunstância de a demonstração dever ser, primariamente, levada ao conhecimento da Sociedade das Nações, parece que o país em que se pensou em realizá-la era, como parecia melhor, a Suíça. Macfadden admitia, porém, a possibilidade de ser outro país mais apropriado à experiência. Bastava que fosse apropriado e que fosse europeu.
Com este fito encarregou um seu amigo, o jornalista americano Albin E. Johnson, de descobrir qual seria o melhor país, e o melhor local nesse país, para se realizar a demonstração. Sucede que Albin Johnson era — como creio que ainda é — correspondente especial de vários jornais americanos junto da Sociedade das Nações; e sucede que, em virtude dessa situação, veio em 1930 a Portugal, acompanhado de sua mulher, na excursão que aqui fizeram, a convite do Governo Português, os jornalistas que ali trabalhavam. Madame Johnson ficou encantada com Portugal e sugeriu a seu marido que fosse este o país indicado a Macfadden para a realização da experiência. Expôs-lhe (foi o próprio Johnson que mo contou) que não havia em parte alguma da Europa, que eles ambos conheciam bem, clima igual ao de Portugal, e sobretudo da zona que vai de Lisboa a Cascais, e que, advindo do estabelecimento da Colónia infantil um grande reclame para o país onde se estabelecesse (dados os numerosos jornais e revistas de que Macfadden é proprietário), era mais justo à parte o próprio clima, que fosse escolhido Portugal do que a Suíça. Portugal merecia toda a propaganda, e não a tinha; a Suíça tinha, e tem, a sua propaganda automaticamente feita.
Johnson concordou imediatamente, e para isso, antes de sair de Portugal, entrou em contacto com quem justamente lhe foi indicado para melhor o orientar no assunto — o Dr. Fernando Lobo d’Ávila Lima, meu velho amigo, homem preocupado com problemas educativos, e preocupado sincera e tecnicamente com eles, sem intuito de propaganda própria ou de comércio ulterior. Assim se realizou a primeira entrevista, a que assisti, e nela ficou assente que seria proposto a Macfadden que a demonstração se fizesse em Portugal.
O sistema Macfadden consiste ― tanto quanto mais tarde pude averiguar ― na reunião de três elementos: vida, quanto possível, ao ar livre; uma dieta simples e estudada; certos exercícios ginásticos. Estes últimos, baseados no princípio geral vulgarmente conhecido por ginástica sueca, caracterizam-se todavia por neles se incluírem elementos de dissociação. O propósito, assim buscado e conseguido, é de desmecanizar os movimentos, chamando, pois, a atenção constantemente à superfície. O aluno nunca sabe qual a voz de comando que lhe vai ser dada a seguir, nem a ordem de movimentos em que vai ser feito determinado exercício, nem a forma exata como vai ser chamado a coordenar certos movimentos.
Tudo isto está bem visto e bem pensado. O corpo não é mais do que o instrumento da vontade, a ferramenta de que o espírito se serve para atuar sobre o mundo em que, por esse [24]mesmo corpo, exteriormente existe. O propósito racional da ginástica é, pois, através da educação do corpo, educar a vontade; e a vontade educa-se, primariamente, através da atenção. Os processos ginásticos vulgares, pelos quais se considera o corpo como um cadáver vivo cujo músculos há que assoprar, não servem senão para criar inúteis fortes, bêbados da musculatura, homens cujo ideal social é o de serem carroceiros sem carroça. Não assim nos verdadeiros sistemas ginásticos, nem, particularmente, no sistema Macfadden. Neste, os exercícios tendem, como depois pude observar, para tornar a atenção pronta, rápida, intensa, os movimentos inteligentes e disciplinados, e a generalidade do sistema a fazer do indivíduo um ser desperto, livre, maleável, capaz de agir alegremente e depressa, apto a pensar, naturalmente, pela sua própria cabeça.
Foi isto que Bernarr Macfadden se propôs realizar na Europa, e possivelmente em Portugal. Foi isto que em Portugal, com cinquenta rapazitos pobres, e no curto espaço de seis meses, triunfalmente realizou.
Desde o princípio, e embora a minha intervenção no assunto nunca fosse senão, por assim dizer, abstrata e contemplativa, segui com grande interesse as fases, primeiro incertas e para a realização, depois certas e de execução, do seu desenvolvimento. O meu interesse não era o de ser, em qualquer sentido, entendido na matéria, mas o de ver as vantagens que advinham para o país da efetivação do projeto, e também a lembrança de quanto, embora tão longe de atleta eu devo à ginástica. Quando, em 1907, o Prof. Egas Moniz me passou, para fins ginásticos, para as mãos de Luís Furtado Coelho, para ser cadáver só me faltava morrer. Em menos de três meses, e a três lições por semana pôs-me Furtado Coelho em tal estado de transformação que, diga-se com modéstia, ainda hoje existo — com que vantagens para a civilização europeia, não me compete a mim dizer. Eu não sabia, é certo, se o sistema Macfadden tinha parecenças, exceto gerais, com o de Furtado Coelho, nem se os instrutores de Macfadden teriam a inigualável competência, intelectual e profissional, do meu velho professor e amigo, ou o dom dinâmico, que ele tinha e tem, de imediatamente fazer criar interesse pela ginástica a quem está no estado de não saber ter interesse por coisa alguma. Parti, porém, do princípio que, qualquer que fosse o sistema Macfadden, bastava ser construído por um homem entendido na matéria e que a si mesmo se apresentava como demonstração primária e notável, bastava incluir exercícios ao ar livre e uma dieta sã e simples, para dele necessariamente advirem resultados favoráveis a quantas crianças ele se aplicasse.
Depois de uma ida à América, para conferenciar com Macfadden, do Dr. Fernando Lobo de Ávila Lima, como delegado da Junta de Educação Nacional, ficou definitivamente assente que a demonstração se faria em Portugal. Seguiu-se, um pouco mais tarde, a cedência, pelo Ministério da Guerra, do edifício dos Banhos de Poça, em S. João do Estoril, para a instalação da Colónia Infantil. O Asilo Nun'Álvares cedeu cinquenta rapazes para matéria de demonstração. Começou esta em novembro de 1931, acabou em abril de 1932. Foi um triunfo assombroso e completo. Os pequenos sumidos e cabisbaixos, que entraram em novembro, foram, até abril, transmudados, por uma alquimia alegre, em crianças verdadeiras. As fotografias individuais, tiradas em novembro e em março, mostram flagrantemente, por comparação, a transformação física em cada rapaz. Mas só quem viu e observou pode fazer ideia da correspondente vitalização mental.
Para diretor da Colónia e seu instrutor ginástico, mandou Macfadden a Portugal um especialista dos seus processos, o capitão-aviador Claude De Vitalis. A escolha não poderia ter sido melhor. À parte a sua proficiência técnica, que não sou eu competente para abonar, mas que tanto a escolha de Macfadden como os resultados obtidos abonam por si mesmos, o De Vitalis é um entusiasta carinhoso. Ama o sistema Macfadden e adora as crianças a quem o aplica. Foi, lembro-me bem, com grande e visível mágoa que, quando, quase no fim, visitei a Colónia, ele me disse textualmente, salvo que o disse em inglês: «V. não imagina, meu velho, a pena que me faz deixar estas crianças. Em primeiro lugar tenho simplesmente pena, porque as adoro. Em segundo lugar, se estas Colónias não continuarem, se o seu exemplo não frutificar aqui, para que serviu isto tudo? E o que vai ser destes pequenos? Voltam para onde estavam e para aquilo que os pôs como estavam quando aqui os recebi? Nesse caso, chega a ser uma barbaridade ter-lhes feito o bem que aqui se lhes fez, pois o tiveram simplesmente para o perder.»
Faço minhas as palavras do De Vitalis, mas, por princípio e dever, não faço meu o seu vago pessimismo.
Fernando Pessoa
O que um milionário americano fez em Portugal
Fernando Pessoa
Fama , 10 de março de 1933, pp. 22-24.