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Luís de Camões glorificado pelos poetas da nossa terra

Fernando Pessoa

Diário de Lisboa , 4 de fevereiro de 1924, p. 3.

  • LUIZ DE CAMÕES GLORIFICADO pelos poetas da nossa terra

    Camões é Os Lusiadas . O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade tambem notavel, apenas a excedencia inorganica do épico.

    Não ocupa Os Lusiadas , um logar entre as primeiras epopeias do mundo; só a Iliada , a Divina Comedia e o Paraiso perdido ganharam essa elevação. Pertencendo, porém, á segunda ordem das epopeias, como a Jerusalem Libertada , o Orlando furioso , a Faerie Queenie ― e, em certo modo, a Odysséa e a Eneida , que participam das duas ordens, ― distingue-se Os Lusiadas não só destas epopeias, suas pares, senão tambem daquelas, suas superiores, em que é directamente uma épopeia historica.

    A vastidão impressiva de fabula, que uma épopeia requer, buscaram-a os antigos e os grandes modernos já na lenda ou na historia indirecta, já no Além. Em aquelas se fundamentam, de diverso modo, a Iliada , a Odyssea , a Eneida , a Jerusalem de Tasso; na lenda absoluta, ou fantasia pura, o poema de Spenser e o Orlando ; no Além ― o Além pagão do Cristismo ― a epopeia de Dante e a de Milton.

    A Camões bastou a historia proxima para lenda e Além. O povo, que cantou, fizera da ficção certeza, da distancia colonia, da imaginação vontade. Sob os proprios olhos do épico se desenrolou o inimaginavel e o impossivel se conseguiu. Sua épopeia não foi mais que uma reportagem transcendente, que o assunto obrigou a nascer épica. Este Apolonio podia ter falado com seus Argonautas, este Homero ter ouvido da boca dos companheiros de seus Ulysses os terrores da caverna do Cyclope e a noticia imediata do encantamento das sereias. Em certo modo viveu o que cantou, sendo, assim, o unico épico que foi lirico ao sel-o. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de varios defeitos.

    Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si proprio. Os sobrehomens da nossa gloria constelada ― o Infante e Albuquerque mais que todos ― não cabem no que ele podia abarcar. A épopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa nele é o não ser grande bastante para os semi-deuses que celebrou.

    Fernando Pessoa

  • LUÍS DE CAMÕES GLORIFICADO pelos poetas da nossa terra

    Camões é Os Lusíadas. O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade tambem notável, apenas a excedência inorgânica do épico.

    Não ocupa Os Lusíadas, um lugar entre as primeiras epopeias do mundo; só a Ilíada, a Divina Comédia e o Paraíso perdido ganharam essa elevação. Pertencendo, porém, à segunda ordem das epopeias, como a Jerusalém Libertada, o Orlando furioso, a Faerie Queenie ― e, em certo modo, a Odisseia e a Eneida, que participam das duas ordens, ― distingue-se Os Lusíadas não só destas epopeias, suas pares, senão também daquelas, suas superiores, em que é diretamente uma epopeia histórica.

    A vastidão impressiva de fábula, que uma epopeia requer, buscaram-na os antigos e os grandes modernos já na lenda ou na história indireta, já no Além. Em aquelas se fundamentam, de diverso modo, a Ilíada , a Odisseia, a Eneida, a Jerusalém de Tasso; na lenda absoluta, ou fantasia pura, o poema de Spenser e o Orlando; no Além ― o Além pagão do Cristismo ― a epopeia de Dante e a de Milton.

    A Camões bastou a história próxima para lenda e Além. O povo, que cantou, fizera da ficção certeza, da distância colónia, da imaginação vontade. Sob os próprios olhos do épico se desenrolou o inimaginável e o impossível se conseguiu. Sua epopeia não foi mais que uma reportagem transcendente, que o assunto obrigou a nascer épica. Este Apolónio podia ter falado com seus Argonautas, este Homero ter ouvido da boca dos companheiros de seus Ulisses os terrores da caverna do Ciclope e a notícia imediata do encantamento das sereias. Em certo modo viveu o que cantou, sendo, assim, o unico épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos.

    Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si próprio. Os sobre-homens da nossa glória constelada ― o Infante e Albuquerque mais que todos ― não cabem no que ele podia abarcar. A epopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa nele é o não ser grande bastante para os semideuses que celebrou.

    Fernando Pessoa

  • Namen

    • Afonso de Albuquerque
    • Apolónio de Rodes
    • D. Henrique
    • Dante Alighieri
    • Edmund Spenser
    • Fernando Pessoa
    • Homero
    • John Milton
    • Luiz de Camões
    • Torquato Tasso
    • Ulisses

    Titel

    • Divina Comedia
    • Eneida
    • Faerie Queenie
    • Iliada
    • Jerusalem
    • Jerusalem Libertada
    • Odyssea
    • Odysséa
    • Orlando
    • Orlando furioso
    • Os Lusiadas
    • Paraiso perdido