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Do livro ʺMENSAGEMʺ de FERNANDO PESSOA
transcrevem-se 3 poemas com
3 ilustrações ineditas de ALMADA1.
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente.
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou creou-te portuguez.
Do mar e nós em ti nos deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
2.
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
Á roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes.
Trez vezes rodou immundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguem me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»
Trez vezes do leme as mãos ergueu,
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de temer trez vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
3.
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silencio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chamma, que a vida em nós creou,
Se ainda ha vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a occultou:
A mão do vento pode erguel-a ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ancia —,
Com que a chamma do exforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Estes poemas foram incluídos no conjunto ʺMar Portuguezʺ (Contemporânea, Outubro de 1922; Leitura para todos, Junho de 1926 e Revolução, 16 de Junho de 1933), nas posições I, IV e XII, com diferenças ortográficas e de pontuação e surgindo ʺO Mostrengoʺ sob o título ʺO Morcegoʺ. Foram também incluídos no livro Mensagem (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934), com um texto idêntico ao da presente publicação mas ocupando as respetivas posições em ʺMar Portuguezʺ, título da segunda parte do livro ʺMensagemʺ.
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Do livro “MENSAGEM” de FERNANDO PESSOA
transcrevem-se 3 poemas com
3 ilustrações inéditas de ALMADA1.
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente.
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
2.
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes.
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de temer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
3.
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Estes poemas foram incluídos no conjunto ʺMar Portuguezʺ (Contemporânea, Outubro de 1922; Leitura para todos, Junho de 1926 e Revolução, 16 de Junho de 1933), nas posições I, IV e XII, com diferenças ortográficas e de pontuação e surgindo ʺO Mostrengoʺ sob o título ʺO Morcegoʺ. Foram também incluídos no livro Mensagem (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934), com um texto idêntico ao da presente publicação mas ocupando as respetivas posições em ʺMar Portuguezʺ, título da segunda parte do livro ʺMensagemʺ.
Do Livro ʺMensagemʺ
Fernando Pessoa
Diário de Lisboa , 14 de dezembro de 1934, p. 5.