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[81]
ALGUNS POEMAS
SACADURA CABRAL
No frio mar do alheio Norte,
Morto, quedou,
Servo da Sorte infiel que a sorte
Deu e tirou.
Brilha alto a chamma que se apaga.
A noite o encheu.
De extranho mar que extranha plaga,
Nosso, o acolheu?
Floriu, murchou na extrema haste;
Joia do ousar,
Que teve por eterno engaste
O céu e o mar.
GLADIO
Ao Alberto Da Cunha Dias.Deu-me Deus o Seu gladio, porque eu faça
A sua sancta guerra.
Sagrou-me Seu em genio e em desgraça
Ás horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Poz-me as mãos sobre os hombros, e dourou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-justiça são Seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma!
[82]DE UM CANCIONEIRO
No entardecer da terra
O sopro do longo outomno
Amarelleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num somno,
Na livida solidão.
Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvahe-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento livido volve
E expira na lividez.
Eu já não sou quem era;*
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sel-o!… Mais frio
O vento vago voltou.
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tam lento o teu soar,
Tam como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que tanjas perto,[83]
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gosar.
Pobre velha música!
Não sei porque agrado,
Enche-se de lagrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infancia
Que me lembra em ti.
Com que ancia tam raiva
Quero aquelle outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
[84]*Dorme enquanto eu vello...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tam attento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
Sol nullo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ella passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ella tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguem!
Trila na noite uma flauta. É de algum
Pastor? Que importa? Perdida
[85] Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
Como a vida.
Sem nexo ou principio ou fim ondeia
A aria alada.
Pobre aria fóra de musica e de voz, tam cheia
De não ser nada!
Não ha nexo ou fio por que se lembre aquella
Aria, ao parar;
E já ao ouvil-a soffro a saudade d’ella
E o quando cessar.
Põe-me as mãos nos hombros…
Beija-me na fronte…
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.
Eu não sei por quê,
Meu dêsde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo extranho.
Põe a tua mão
Sobre o meu cabello…
Tudo é illusão.
Sonhar é sabel-o.
Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança
Só a quem já confia!
É só á dormente, e não á morta, sperança
Que accorda o teu dia.
A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo
Todo sonho vão,
Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo
E a ter coração,
[86] A esses raias sem o dia que trazes, ou sòmente
Como alguem que vem
Pela rua, invisivel ao nosso olhar consciente,
Por não ser-nos ninguem.
Treme em luz a agua.
Mal vejo. Parece
Que uma alheia magua
Na minha alma desce —
Magua erma de alguem
De algum outro mundo
Onde a dor é um bem
E o amor é profundo,
E só punge ver,
Ao longe, illudida,
A vida a morrer
O sonho da vida.
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lubrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na illusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem magua nem amor…
[87] No teu olhar eu leio
O intimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e goso e dor.
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me extranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angustia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Em toda a noite o somno não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa seria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigilia
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor —
Um dia egual aos outros, da eterna familia
De serem assim.
Nem o symbolo ao menos val, a significação
Da manhã que vem
[88] Sahindo lenta da propria essencia da noite que era,
Para quem,
Por tantas vezes ter sempre sperado em vão,
Já nada spera.
Ella canta, pobre ceifeira,
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.
Ouvil-a alegra e entristece,
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciencia,
E a consciencia d’isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciencia
Pesa tanto e a vida é tam breve!
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!
FERNANDO PESSOA
O poema ʺGladioʺ foi republicado em Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930, pp. 21-22. Para além de diferenças ortográficas, a segunda publicação apresenta a correção de uma gralha da primeira, lendo-se no início do terceiro verso da segunda estrofe ʺE esta febre de alémʺ. A transcrição aqui apresentada segue esta correção.
Em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ Pessoa republica quatro poemas, anteriormente publicados sob os títulos “Impressões do Crepusculo” (A Renascença, fevereiro de 1914), ʺA Ceifeiraʺ (Terra Nossa, setembro de 1916, p. 46), ʺCanção de Outomnoʺ (Ilustração Portuguesa, 28 de janeiro de 1922, p. 86) e ʺCançãoʺ (Ilustração Portuguesa, 11 de fevereiro de 1922, p. 129), apresentando as diferentes versões destes poemas diferenças significativas.
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ALGUNS POEMAS
SACADURA CABRAL
No frio mar do alheio Norte,
Morto, quedou,
Servo da Sorte infiel que a sorte
Deu e tirou.
Brilha alto a chama que se apaga.
A noite o encheu.
De estranho mar que estranha plaga,
Nosso, o acolheu?
Floriu, murchou na estrema haste;
Joia do ousar,
Que teve por eterno engaste
O céu e o mar.
GLÁDIO
Ao Alberto Da Cunha Dias.Deu-me Deus o Seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me Seu em génio e em desgraça
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros, e dourou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-justiça são Seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma!
[82]DE UM CANCIONEIRO
No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.
Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se ainda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.
Eu já não sou quem era;*
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!… Mais frio
O vento vago voltou.
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que tanjas perto,[83]
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou esplenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.
Pobre velha música!
Não sei porque agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tam raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
[84]*Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!
Trila na noite uma flauta. É de algum
Pastor? Que importa? Perdida
[85] Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
Como a vida.
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
A ária alada.
Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
De não ser nada!
Não há nexo ou fio por que se lembre aquela
Ária, ao parar;
E já ao ouvi-la sofro a saudade dela
E o quando cessar.
Põe-me as mãos nos ombros…
Beija-me na fronte…
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.
Eu não sei porquê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.
Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo…
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.
Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança
Só a quem já confia!
É só à dormente, e não à morta, esperança
Que acorda o teu dia.
A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo
Todo sonho vão,
Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo
E a ter coração,
[86] A esses raias sem o dia que trazes, ou somente
Como alguém que vem
Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,
Por não ser-nos ninguém.
Treme em luz a água.
Mal vejo. Parece
Que uma alheia mágoa
Na minha alma desce —
Mágoa erma de alguém
De algum outro mundo
Onde a dor é um bem
E o amor é profundo,
E só punge ver,
Ao longe, iludida,
A vida a morrer
O sonho da vida.
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor…
[87] No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor —
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
[88] Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem,
Por tantas vezes ter sempre esperado em vão,
Já nada espera.
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
FERNANDO PESSOA
O poema ʺGladioʺ foi republicado em Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930, pp. 21-22. Para além de diferenças ortográficas, a segunda publicação apresenta a correção de uma gralha da primeira, lendo-se no início do terceiro verso da segunda estrofe ʺE esta febre de alémʺ. A transcrição aqui apresentada segue esta correção.
Em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ Pessoa republica quatro poemas, anteriormente publicados sob os títulos “Impressões do Crepusculo” (A Renascença, fevereiro de 1914), ʺA Ceifeiraʺ (Terra Nossa, setembro de 1916, p. 46), ʺCanção de Outomnoʺ (Ilustração Portuguesa, 28 de janeiro de 1922, p. 86) e ʺCançãoʺ (Ilustração Portuguesa, 11 de fevereiro de 1922, p. 129), apresentando as diferentes versões destes poemas diferenças significativas.
Alguns Poemas (Sacadura Cabral, Gládio, De um Cancioneiro)
Fernando Pessoa
Athena 3, dezembro de 1924, pp. 81-88.