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ʺA Romariaʺ

Fernando Pessoa

Suplemento Literário do Diário de Lisboa , 4 de janeiro de 1935.

  • «A ROMARIA»

    Transcreve-se um trecho e os dois sonetos finais do auto lirico de VASCO REIS, que teve o PREMIO ANTERO DE QUENTAL 1934 e que FERNANDO PESSOA, autor do livro "Mensagem", tambem premiado, aprecia e comenta

    Pediu-me Antonio Lopes Ribeiro que escrevesse, para êste numero literario do Diario de Lisboa , um breve artigo sobre premios literarios. Em principio, poderia escrevê-lo — um artigo de generalidade. Como, porém, sucede que me foi conferido um dos premios literarios do S. P. N., tudo quanto escrevesse, por teorico e abstracto que fosse, forçosamente seria mal interpretado ― ou num sentido, ou noutro, ou porventura em todos.

    Prefiro, pois, abster-me, sem todavia me abster, e assim substituir ao artigo, cujo tema me foi proposto, uma referencia sucinta a um dos premios do Secretariado que ― dado, a meu vêr, justissimamente ― teve a vantagem de revelar um admiravel artista. Refiro-me, como é de supôr, ao padre Vasco Reis e ao seu poema adoravel A Romaria.

    Em seu paganismo cristianissimo, em seu sobrenaturalismo humano, esse poema é organicamente português.

    O poema é cristão no sentido particular de catolico e por isso mesmo é pagão. O catolicismo ― cujos meritos ou defeitos, sociais ou outros, não tenho aqui que examinar ― tem a singularidade notavel, provinda talvez do que nele resta de Imperio Romano, de ser, ao mesmo tempo que universal, particularizado em cada região onde existe. A Igreja de Roma é como um regime de municipios morais centralizado num imperio imponderavel. Vasto sistema sincretico, tanto a podemos considerar urna sobrevivencia do paganismo como uma transmutação dele. E em cada país onde essa religião existe, esse paganismo sobrevive, ou se transmuta, de uma maneira peculiar. Nisto se assemelha a Igreja á Ordem Maçonica, ressalvando que nesta não ha elementos pagãos.

    Entre os portugueses, em quem, em meu entender, a emoção supera a paixão ― e é isto, creio, o que radicalmente nos distingue dos varios espanhois ― o catolicismo assume naturalmente o que poderemos chamar o aspecto franciscano, que é, por assim dizer, o aspecto essencialmente emotivo do cristianismo catolico.

    Do paganismo latente no catolicismo não se manifesta em nós o aspecto estetico, como diversamente nos italianos e nos espanhois, nem o aspecto imperial, como diversamente nestes e nos franceses, mas o aspecto dispersivo e fluido, proprio de toda quanto a emoção conduz. O nosso catolicismo é sem contornos ― uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerta do em que realmente crê. Por isso o nosso vero Deus Manifesto é, náo o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido catolico chamado Menino Jesus. Porisso não curamos de Maria Virgem, mas só de Maria Mãi. Por isso os nossos santos autenticos são um S. João Baptista menino ― isto é, de muito antes de ele ser Baptista ― ou um Santo Antonio, concebido irremediavelmente como um adolescente infantil, cuja função distintiva ― a de concertar bilhas ― é um milagre-brinquedo. Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não permitiria.

    O padre Vasco Reis ― a quem Deus fez ser franciscano para fins simbolicos ― pertence portuguêsmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive numa atmosfera de ternura e de luz, como numa Hélade de bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou verso, que interprete tão pagãmente, tão cristãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disto tudo paira ― fundo contra que o visivel se destaca ― qualquer coisa de imprecisamente emblematico, de coordenadamente incerto, com que se comove, náo propriamente a emoção, mas a inteligencia. Isso, porém, já não é Portugal: é talento.

    FERNANDO PESSOA

  • «A ROMARIA»

    Transcreve-se um trecho e os dois sonetos finais do auto lírico de VASCO REIS, que teve o PRÉMIO ANTERO DE QUENTAL 1934 e que FERNANDO PESSOA, autor do livro "Mensagem", também premiado, aprecia e comenta

    Pediu-me António Lopes Ribeiro que escrevesse, para este número literário do Diário de Lisboa, um breve artigo sobre prémios literários. Em princípio, poderia escrevê-lo — um artigo de generalidade. Como, porém, sucede que me foi conferido um dos prémios literários do S. P. N. S[ecretariado] de P[ropaganda] N[acional] , tudo quanto escrevesse, por teórico e abstrato que fosse, forçosamente seria mal interpretado ― ou num sentido, ou noutro, ou porventura em todos.

    Prefiro, pois, abster-me, sem todavia me abster, e assim substituir ao artigo, cujo tema me foi proposto, uma referência sucinta a um dos prémios do Secretariado que — dado, a meu ver, justíssimamente — teve a vantagem de revelar um admirável artista. Refiro-me, como é de supor, ao padre Vasco Reis e ao seu poema adorável A Romaria.

    Em seu paganismo cristianíssimo, em seu sobrenaturalismo humano, esse poema é organicamente português.

    O poema é cristão no sentido particular de católico e por isso mesmo é pagão. O catolicismo ― cujos méritos ou defeitos, sociais ou outros, não tenho aqui que examinar ― tem a singularidade notável, provinda talvez do que nele resta de Império Romano, de ser, ao mesmo tempo que universal, particularizado em cada região onde existe. A Igreja de Roma é como um regime de municípios morais centralizado num império imponderável. Vasto sistema sincrético, tanto a podemos considerar urna sobrevivência do paganismo como uma transmutação dele. E em cada país onde essa religião existe, esse paganismo sobrevive, ou se transmuta, de uma maneira peculiar. Nisto se assemelha a Igreja à Ordem Maçónica, ressalvando que nesta não há elementos pagãos.

    Entre os portugueses, em quem, em meu entender, a emoção supera a paixão ― e é isto, creio, o que radicalmente nos distingue dos vários espanhóis ― o catolicismo assume naturalmente o que poderemos chamar o aspeto franciscano, que é, por assim dizer, o aspeto essencialmente emotivo do cristianismo católico.

    Do paganismo latente no catolicismo não se manifesta em nós o aspeto estético, como diversamente nos italianos e nos espanhóis, nem o aspeto imperial, como diversamente nestes e nos franceses, mas o aspecto dispersivo e fluido, próprio de toda quanto a emoção conduz. O nosso catolicismo é sem contornos — uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerta do em que realmente crê. Por isso o nosso vero Deus Manifesto é, não o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido católico chamado Menino Jesus. Por isso não curamos de Maria Virgem, mas só de Maria Mãe. Por isso os nossos santos autênticos são um S. João Batista menino ― isto é, de muito antes de ele ser Batista ― ou um Santo António, concebido irremediavelmente como um adolescente infantil, cuja função distintiva ― a de concertar bilhas ― é um milagre-brinquedo. Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não permitiria.

    O padre Vasco Reis ― a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos ― pertence portuguesmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive numa atmosfera de ternura e de luz, como numa Hélade de bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou verso, que intérprete tão pagãmente, tão cristãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disto tudo paira ― fundo contra que o visível se destaca ― qualquer coisa de imprecisamente emblemático, de coordenadamente incerto, com que se comove, não propriamente a emoção, mas a inteligência. Isso, porém, já não é Portugal: é talento.

    FERNANDO PESSOA

  • Namen

    • Antero de Quental
    • António Lopes Ribeiro
    • Deus
    • Fernando Pessoa
    • S. João Baptista
    • Vasco Reis

    Titel

    • Mensagem

    Zeitschriften

    • Diário de Lisboa 131919500 Q3492605