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Trapo

Álvaro de Campos

Presença 31-32, março — junho de 1931, p. 9.

  • TRAPO

    O dia deu em chuvoso.
    A manhã, contudo, esteve bastante azul.
    O dia deu em chuvoso.
    Desde manhã eu estava um pouco triste.
    Anticipação? tristeza? coisa nenhuma?
    Não sei: já ao acordar estava triste.
    O dia deu em chuvoso.
    Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
    Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
    Bem sei: ser susceptivel às mudanças de luz não é elegante.
    Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
    Dêem-me o céu azul e o sol visível.
    Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
    Hoje quero só sossêgo.
    Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
    Chego a ter sono de vontade de ter sossêgo.
    Não exageremos!
    Tenho efectivamente sono, sem explicação.
    O dia deu em chuvoso.
    Carinhos? afectos? São memórias…
    É preciso ser-se criança para os ter…
    Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
    O dia deu em chuvoso.
    Bôca bonita da filha do caseiro,
    Polpa de fruta de um coração por comer…
    Quando foi isso? Não sei…
    No azul da manhã…
    O dia deu em chuvoso.

    ÁLVARO DE CAMPOS

  • TRAPO

    O dia deu em chuvoso.
    A manhã, contudo, esteve bastante azul.
    O dia deu em chuvoso.
    Desde manhã eu estava um pouco triste.
    Antecipação? tristeza? coisa nenhuma?
    Não sei: já ao acordar estava triste.
    O dia deu em chuvoso.
    Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
    Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
    Bem sei: ser suscetível às mudanças de luz não é elegante.
    Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
    Deem-me o céu azul e o sol visível.
    Névoa, chuvas, escuros ― isso tenho eu em mim.
    Hoje quero só sossego.
    Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
    Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
    Não exageremos!
    Tenho efetivamente sono, sem explicação.
    O dia deu em chuvoso.
    Carinhos? afetos? São memórias…
    É preciso ser-se criança para os ter…
    Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
    O dia deu em chuvoso.
    Boca bonita da filha do caseiro,
    Polpa de fruta de um coração por comer…
    Quando foi isso? Não sei…
    No azul da manhã…
    O dia deu em chuvoso.

    ÁLVARO DE CAMPOS

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    • Álvaro de Campos