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Aniversário

Álvaro de Campos

Presença 27, junho — julho de 1930, p. 2.

  • ANNIVERSARIO

    No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
    Eu era feliz e ninguem estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer annos era uma tradição de ha seculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
    No tempo em que festejavam o dia dos meus annos,
    Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
    De ser intelligente para entre a familia,
    E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
    Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
    Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
    Sim, o que fui de supposto a mim-mesmo,
    O que fui de coração e parentesco,
    O que fui de serões de meia-provincia,
    O que fui de amarem-me e eu ser menino,
    O que fui ― ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
    A que distancia!…
    (Nem o echo…)
    O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!
    O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes…
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravez das minhas lagrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um phosphoro frio…
    No tempo em que festejavam o dia dos meus annos…
    Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
    Desejo physico da alma de se encontrar alli outra vez,
    Por uma viagem metaphysica e carnal,
    Com uma dualidade de eu para mim…
    Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
    Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que ha aqui…
    A mesa posta com mais logares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
    O aparador com muitas coisas ― doces, fructas, o resto na sombra debaixo do alçado –,
    As tias velhas, os primos differentes, e tudo era por minha causa,
    No tempo em que festejavam o dia dos meus annos…
    Pára, meu coração!
    Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
    Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
    Hoje já não faço annos.
    Duro.
    Sommam-se-me dias.
    Serei velho quando o fôr.
    Mais nada.
    Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
    O tempo em que festejavam o dia dos meus annos!…

    ALVARO DE CAMPOS.

    Do poema “Aniversário” existe um testemunho manuscrito do espólio (BNP 70-49r a 51r), em que se lê no sétimo verso da terceira estrofe “(Nem o echo…)”, em lugar de “(Nem o acho…)”, que se encontra no texto publicado. Assumimos, em linha com a tradição editorial recente do poema, que a publicação incorre num lapso, seguindo portanto a lição do manuscrito.

  • ANIVERSÁRIO

    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu era feliz e ninguém estava morto.
    Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
    E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
    Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
    De ser inteligente para entre a família,
    E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
    Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
    Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
    Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
    O que fui de coração e parentesco,
    O que fui de serões de meia-província,
    O que fui de amarem-me e eu ser menino,
    O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
    A que distância!…
    (Nem o eco…)
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
    O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
    Pondo grelado nas paredes…
    O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
    O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
    É terem morrido todos,
    É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio…
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
    Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
    Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
    Por uma viagem metafísica e carnal,
    Com uma dualidade de eu para mim…
    Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
    Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
    A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
    O aparador com muitas coisas ― doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado ―,
    As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
    Para, meu coração!
    Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
    Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
    Hoje já não faço anos.
    Duro.
    Somam-se-me dias.
    Serei velho quando o for.
    Mais nada.
    Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
    O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

    ÁLVARO DE CAMPOS.

    Do poema “Aniversário” existe um testemunho manuscrito do espólio (BNP 70-49r a 51r), em que se lê no sétimo verso da terceira estrofe “(Nem o echo…)”, em lugar de “(Nem o acho…)”, que se encontra no texto publicado. Assumimos, em linha com a tradição editorial recente do poema, que a publicação incorre num lapso, seguindo portanto a lição do manuscrito.

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    • Álvaro de Campos