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O Último Sortilégio

Fernando Pessoa

Presença 29, dezembro de 1930, p. 4.

  • O ULTIMO SORTILEGIO

    «Já repeti o antigo encantamento,
    E a grande Deusa aos olhos se negou.
    Já repeti, nas pausas do amplo vento,
    As orações cuja alma é um ser fecundo.
    Nada me o abysmo deu ou o céu mostrou.
    Só o vento volta onde estou toda e só,
    E tudo dorme no confuso mundo.
    «Outrora meu condão fadava as sarças
    E a minha evocação do solo erguia
    Presenças concentradas das que esparsas
    Dormem nas fórmas naturaes das cousas.
    Outrora a minha voz acontecia.
    Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
    E as folhas da floresta eram lustrosas.
    «Minha varinha, com que da vontade
    Fallava ás existencias essenciaes,
    Já não conhece a minha realidade.
    Já, se o circulo traço, não ha nada.
    Murmura o vento alheio extinctos ais,
    E ao luar que sobe além dos mattagaes
    Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
    «Já me fallece o dom com que me amavam.
    Já me não tórno a fórma e o fim da vida
    A quantos que, buscando-os, me buscavam.
    Já, praia, o mar dos braços não me innunda.
    Nem já me vejo ao sol saudado erguida.
    Ou, em extase mágico perdida,
    Ao luar, á bocca da caverna funda.
    «Já as sacras potencias infernaes,
    Que, dormentes sem deuses nem destino,
    Á substancia das cousas são eguaes,
    Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
    A musica partiu-se do meu hymno.
    Já meu furor astral não é divino
    Nem meu corpo pensado é já um deus.
    «E as longinquas deidades do atro poço,
    Que tantas vezes, pallida, evoquei
    Com a raiva de amar em alvoroço,
    Inevocadas hoje ante mim estão.
    Como, sem que as amasse, eu as chamei,
    Agora, que não amo, as tenho, e sei
    Que meu vendido ser consumirão.
    «Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
    Tu, Lua, cuja prata converti,
    Se já não podeis dar-me essa belleza
    Que tantas vezes tive por querer,
    Ao menos meu ser findo dividi —
    Meu ser essencial se perca em si,
    Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
    «Converta-me a minha ultima magia
    Numa estatua de mim em corpo vivo!
    Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
    Anonyma presença que se beija,
    Carne do meu abstracto amor captivo,
    Seja a morte de mim em que revivo;
    E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

    FERNANDO PESSOA

  • O ÚLTIMO SORTILÉGIO

    «Já repeti o antigo encantamento,
    E a grande Deusa aos olhos se negou.
    Já repeti, nas pausas do amplo vento,
    As orações cuja alma é um ser fecundo.
    Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
    Só o vento volta onde estou toda e só,
    E tudo dorme no confuso mundo.
    «Outrora meu condão fadava as sarças
    E a minha evocação do solo erguia
    Presenças concentradas das que esparsas
    Dormem nas formas naturais das coisas.
    Outrora a minha voz acontecia.
    Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
    E as folhas da floresta eram lustrosas.
    «Minha varinha, com que da vontade
    Falava às existências essenciais,
    Já não conhece a minha realidade.
    Já, se o círculo traço, não há nada.
    Murmura o vento alheio extintos ais,
    E ao luar que sobe além dos matagais
    Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
    «Já me falece o dom com que me amavam.
    Já me não torno a forma e o fim da vida
    A quantos que, buscando-os, me buscavam.
    Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
    Nem já me vejo ao sol saudado erguida.
    Ou, em êxtase mágico perdida,
    Ao luar, à boca da caverna funda.
    «Já as sacras potências infernais,
    Que, dormentes sem deuses nem destino,
    À substância das coisas são iguais,
    Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
    A música partiu-se do meu hino.
    Já meu furor astral não é divino
    Nem meu corpo pensado é já um deus.
    «E as longínquas deidades do atro poço,
    Que tantas vezes, pálida, evoquei
    Com a raiva de amar em alvoroço,
    Inevocadas hoje ante mim estão.
    Como, sem que as amasse, eu as chamei,
    Agora, que não amo, as tenho, e sei
    Que meu vendido ser consumirão.
    «Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
    Tu, Lua, cuja prata converti,
    Se já não podeis dar-me essa beleza
    Que tantas vezes tive por querer,
    Ao menos meu ser findo dividi —
    Meu ser essencial se perca em si,
    Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
    «Converta-me a minha última magia
    Numa estátua de mim em corpo vivo!
    Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
    Anónima presença que se beija,
    Carne do meu abstrato amor cativo,
    Seja a morte de mim em que revivo;
    E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

    FERNANDO PESSOA

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