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À Memória do Presidente Sidónio Pais

Fernando Pessoa

Acção , 27 de fevereiro de 1920, pp. 2-3.

  • [2]

    Á MEMORIA
    DO
    PRESIDENTE
    SIDONIO PAES

    Longe da fama e das espadas,
    Alheio ás turbas elle dorme.
    Em torno ha claustros ou arcadas?
    Só a noite enorme.
    Porque para elle, já virado
    Para o lado onde está só Deus,
    São mais que Sombra e que Passado
    A terra e os céus.
    Alli o gesto, a astucia, a lida,
    São já para elle, sem as vêr,
    Vacuo de acção, sombra perdida,
    Sopro sem ser.
    Só com sua alma e com a treva,
    A alma gentil que nos amou
    Inda esse amor e ardor conserva?
    Tudo acabou?
    No mysterio onde a Morte some
    Aquillo a que a alma chama a vida,
    Que resta dʼelle a nós — só o nome
    E a fé perdida?
    Se Deus o havia de levar,
    Para que foi que nol-o trouxe —
    Cavalleiro leal, do olhar
    Altivo e doce?
    Soldado-rei que occulta sorte
    Como em braços da Patria ergueu,
    E passou como o vento norte
    Sob o ermo céu.
    Mas a alma accesa não acceita
    Essa morte absoluta, o nada
    De quem foi Patria, e fé eleita,
    E ungida espada.
    Se o amor crê que a Morte mente
    Quando a quem quer leva de novo,
    Quão mais crê o Rei ainda existente
    O amor de um povo!
    Quem elle foi sabe-o a Sorte,
    Sabe-o o Mysterio e a sua lei.
    A Vida fel-o heroe, e a Morte
    O sagrou Rei!
    Não é com fé que nós não cremos
    Que elle não morra inteiramente.
    Ah, sobrevive! Inda o teremos
    Em nossa frente.
    No occulto para o nosso olhar,
    No visivel á nossa alma,
    Inda sorri com o antigo ar
    De força calma.
    Ainda de longe nos anima,
    Inda na alma nos conduz —
    Gladio de fé erguido acima
    Da nossa cruz!
    Nada sabemos do que occulta
    O véu egual de noite e dia.
    Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
    Chora e confia.
    Apraz ao que em nós quer que seja
    Qual Deus quiz nosso querer tosco,
    Crer que elle vela, bemfazeja
    Sombra comnosco.
    Não sahe da alma nossa a fé
    De que, alhures que o mundo e o fado,
    Elle inda pensa em nós e é
    O bem-amado.
    Tenhamos fé, porque elle foi.
    Deus não quer mal a quem o deu.
    Não passa como o vento o heroe
    Sob o ermo céu.
    E amanhã, quando queira a Sorte,
    Quando findar a expiação,
    Ressurrecto da falsa morte,
    Elle já não,
    Mas a ansia nossa que incarnara,
    A alma de nós de que foi braço,
    Tornará, nova forma clara,
    Ao tempo e ao espaço.
    Tornará feito qualquer outro,
    Qualquer cousa de nós com elle;
    Porque o nome do heroe morto
    Inda compelle;
    Inda comanda, a armada ida
    Para os campos da Redempção,
    Ás vezes leva á frente, erguida
    ‘Spada, a Illusão.
    E um raio só do ardente amor,
    Que emana só do nome seu,
    Dê sangue a um braço vingador,
    Se esmoreceu.
    Com mais armas que com Verdade
    Combate a alma por quem ama.
    É lenha só a Realidade:
    A fé é a chamma.
    Mas ai, que a fé já não tem fórma
    Na materia e na côr da Vida,
    E, pensada, em dôr se transforma
    E fé perdida!
    P’ra que deu Deus a confiança
    A quem não ia dar o bem?
    Morgado da nossa esperança,
    A Morte o tem!
    Mas basta o nome e basta a gloria
    Para elle estar comnosco, e ser
    Carnal presença de memoria
    A amanhecer;
    Spectro real feito de nós,
    Da nossa saudade e ansia,
    Que falla com occulta voz
    Na alma, a distancia;
    E a nossa propria dôr se torna
    Uma vaga ansia, um ‘sperar vago,
    Como a erma brisa que transtorna
    Um ermo lago.
    Não mente a alma ao coração.
    Se Deus o deu, Deus nos amou.
    Porque elle pôde ser, Deus não
    Nos desprezou.
    Rei-nato, a sua realeza,
    Por não podel-a herdar dos seus
    Avós, com mystica inteireza
    A herdou de Deus;
    E, por directa consonancia
    Com a divina intervenção,
    Uma hora ergueu-nos alta a ansia
    De salvação.
    Toldou-o a Sorte que o trouxera
    Outra vez com nocturno véu.
    Deus pʼra que nol-o deu, se era
    P’ra o tornar seu?
    Ah, tenhamos mais fé que a espʼrança!
    Mais vivo que nós somos, fita
    Do Abysmo onde não ha mudança
    A terra afflicta.
    E se assim é; se, desde o Assombro
    Aonde a Morte as vidas leva,
    Vê esta patria, escombro a escombro,
    Cahir na treva;
    Se algum poder do que tivera
    Sua alma, que não vemos, tem,
    De longe ou perto — porque espera?
    Porque não vem?
    Em nova fórma ou novo alento,
    Que alheio pulso ou alma tome,
    Regresse como um pensamento,
    Alma de um nome!
    Regresse sem que a gente o veja,
    Regresse só que a gente o sinta —
    Impulso, luz, visão que reja
    E a alma presinta!
    E qualquer gladio adormecido,
    Servo do occulto impulso, accorde,
    E um novo heroe se sinta erguido
    Porque o recorde!
    Governa o servo e o jogral.
    O que iamos a ser morreu.
    Não teve aurora a matinal
    ‘Strella do céu.
    Vivemos só de recordar.
    Na nossa alma entristecida
    Ha um som de reza a invocar
    A morta vida;
    E um mystico vislumbre chama
    O que, no plaino trespassado,
    Vive ainda em nós, longinqua chamma —
    O DESEJADO.
    Sim, só ha a espʼrança, como aquella
    — E quem sabe se a mesma? — quando
    Se foi de Aviz a ultima estrella
    No campo infando.
    Novo Alcacer-Kibir na noite!
    Novo castigo e mal do Fado!
    Porque peccado novo o açoite
    Assim é dado?
    Só resta a fé, que a sua memoria
    Nos nossos corações gravou,
    Que Deus não dá paga illusoria
    A quem amou.
    Flôr alta do paúl da grey,
    Antemanhã da Redempção,
    N’elle uma hora incarnou el-rey
    Dom Sebastião.
    O sopro de ansia que nos leva
    A querer ser o que já fomos,
    E em nós vem como em uma treva,
    Em vãos assomos,
    Bater á porta ao nosso gesto,
    Fazer appelo ao nosso braço,
    Lembrar ao sangue nosso o doesto
    E o vil cansaço,
    Nelle um momento clareou,
    A noite antiga se seguiu,
    Mas que segredo é que ficou
    No escuro frio?
    [3]
    Que memoria, que luz passada
    Projecta, sombra, no futuro,
    Dá na alma? Que longinqua espada
    Brilha no escuro?
    Que nova luz virá raiar
    Da noite em que jazemos vis?
    Ó sombra amada, vem tornar
    A ansia feliz.
    Quem quer que sejas, lá no abysmo
    Onde a morte a vida conduz,
    Sê para nós um mysticismo
    A vaga luz
    Com que a noite erma inda vazia
    No frio alvor da antemanhã
    Sente, da espʼrança que ha no dia,
    Que não é vã.
    E amanhã, quando houver a Hora,
    Sendo Deus pago, Deus dirá
    Nova palavra redemptora
    Ao mal que ha,
    E um novo verbo occidental
    Incarnando em heroismo e gloria,
    Traga por seu broquel real
    Tua memoria!
    Precursor do que não sabemos,
    Passado de um futuro a abrir
    No assombro de portaes extremos
    Por descobrir,
    Sê estrada, gladio, fé, fanal,
    Pendão de gloria em gloria erguido!
    Tornas possivel Portugal
    Por teres sido!
    Não era extincta a antiga chamma
    Se tu e o amor puderam ser.
    Entre clarins te a gloria acclama,
    Morto a vencer!
    E, porque foste, confiando
    Em QUEM SERÁ porque tu foste,
    Ergamos a alma, e com o infando
    Sorrindo arroste,
    Até que Deus o laço solte
    Que prende á terra a aza que somos,
    E a curva novamente volte
    Ao que já fomos,
    E no ar de bruma que estremece
    (Clarim longinquo matinal!)
    O DESEJADO emfim regresse
    A Portugal!

    FERNANDO PESSOA

    A imagem aqui disponibilizada corresponde à publicação preservada no espólio de Pessoa, em BNP 135C-90, que inclui uma correção do punho do autor, contemplada no texto apresentado. Outro testemunho desta publicação foi preservado pelo autor no seu espólio, em BNP 135C-30, sobre o qual deixa a sugestão de título alternativo ʺÁ Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paesʺ.
  • [2]

    À MEMÓRIA
    DO
    PRESIDENTE
    SIDÓNIO PAIS

    Longe da fama e das espadas,
    Alheio às turbas ele dorme.
    Em torno há claustros ou arcadas?
    Só a noite enorme.
    Porque para ele, já virado
    Para o lado onde está só Deus,
    São mais que Sombra e que Passado
    A terra e os céus.
    Ali o gesto, a astúcia, a lida,
    São já para ele, sem as ver,
    Vácuo de ação, sombra perdida,
    Sopro sem ser.
    Só com sua alma e com a treva,
    A alma gentil que nos amou
    Inda esse amor e ardor conserva?
    Tudo acabou?
    No mistério onde a Morte some
    Aquilo a que a alma chama a vida,
    Que resta dele a nós — só o nome
    E a fé perdida?
    Se Deus o havia de levar,
    Para que foi que no-lo trouxe —
    Cavaleiro leal, do olhar
    Altivo e doce?
    Soldado-rei que oculta sorte
    Como em braços da Pátria ergueu,
    E passou como o vento norte
    Sob o ermo céu.
    Mas a alma acesa não aceita
    Essa morte absoluta, o nada
    De quem foi Pátria, e fé eleita,
    E ungida espada.
    Se o amor crê que a Morte mente
    Quando a quem quer leva de novo,
    Quão mais crê o Rei ainda existente
    O amor de um povo!
    Quem ele foi sabe-o a Sorte,
    Sabe-o o Mistério e a sua lei.
    A Vida fê-lo herói, e a Morte
    O sagrou Rei!
    Não é com fé que nós não cremos
    Que ele não morra inteiramente.
    Ah, sobrevive! Ainda o teremos
    Em nossa frente.
    No oculto para o nosso olhar,
    No visível à nossa alma,
    Ainda sorri com o antigo ar
    De força calma.
    Ainda de longe nos anima,
    Ainda na alma nos conduz —
    Gládio de fé erguido acima
    Da nossa cruz!
    Nada sabemos do que oculta
    O véu igual de noite e dia.
    Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
    Chora e confia.
    Apraz ao que em nós quer que seja
    Qual Deus quis nosso querer tosco,
    Crer que ele vela, benfazeja
    Sombra connosco.
    Não sai da alma nossa a fé
    De que, alhures que o mundo e o fado,
    Ele ainda pensa em nós e é
    O bem-amado.
    Tenhamos fé, porque ele foi.
    Deus não quer mal a quem o deu.
    Não passa como o vento o herói
    Sob o ermo céu.
    E amanhã, quando queira a Sorte,
    Quando findar a expiação,
    Ressurreto da falsa morte,
    Ele já não,
    Mas a ânsia nossa que encarnara,
    A alma de nós de que foi braço,
    Tornará, nova forma clara,
    Ao tempo e ao espaço.
    Tornará feito qualquer outro,
    Qualquer coisa de nós com ele;
    Porque o nome do herói morto
    Ainda compele;
    Ainda comanda, a armada ida
    Para os campos da Redenção,
    Às vezes leva à frente, erguida
    ‘Spada, a Ilusão.
    E um raio só do ardente amor,
    Que emana só do nome seu,
    Dê sangue a um braço vingador,
    Se esmoreceu.
    Com mais armas que com Verdade
    Combate a alma por quem ama.
    É lenha só a Realidade:
    A fé é a chama.
    Mas ai, que a fé já não tem forma
    Na matéria e na cor da Vida,
    E, pensada, em dor se transforma
    E fé perdida!
    Pʼra que deu Deus a confiança
    A quem não ia dar o bem?
    Morgado da nossa esperança,
    A Morte o tem!
    Mas basta o nome e basta a glória
    Para ele estar connosco, e ser
    Carnal presença de memória
    A amanhecer;
    Espectro real feito de nós,
    Da nossa saudade e ânsia,
    Que fala com oculta voz
    Na alma, a distância;
    E a nossa própria dor se torna
    Uma vaga ânsia, um ‘sperar vago,
    Como a erma brisa que transtorna
    Um ermo lago.
    Não mente a alma ao coração.
    Se Deus o deu, Deus nos amou.
    Porque ele pode ser, Deus não
    Nos desprezou.
    Rei-nato, a sua realeza,
    Por não podê-la herdar dos seus
    Avós, com mística inteireza
    A herdou de Deus;
    E, por direta consonância
    Com a divina intervenção,
    Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
    De salvação.
    Toldou-o a Sorte que o trouxera
    Outra vez com noturno véu.
    Deus pʼra que no-lo deu, se era
    Pʼra o tornar seu?
    Ah, tenhamos mais fé que a espʼrança!
    Mais vivo que nós somos, fita
    Do Abismo onde não há mudança
    A terra aflita.
    E se assim é; se, desde o Assombro
    Aonde a Morte as vidas leva,
    Vê esta pátria, escombro a escombro,
    Cair na treva;
    Se algum poder do que tivera
    Sua alma, que não vemos, tem,
    De longe ou perto — porque espera?
    Porque não vem?
    Em nova forma ou novo alento,
    Que alheio pulso ou alma tome,
    Regresse como um pensamento,
    Alma de um nome!
    Regresse sem que a gente o veja,
    Regresse só que a gente o sinta —
    Impulso, luz, visão que reja
    E a alma pressinta!
    E qualquer gládio adormecido,
    Servo do oculto impulso, acorde,
    E um novo herói se sinta erguido
    Porque o recorde!
    Governa o servo e o jogral.
    O que íamos a ser morreu.
    Não teve aurora a matinal
    ‘Strela do céu.
    Vivemos só de recordar.
    Na nossa alma entristecida
    Há um som de reza a invocar
    A morta vida;
    E um místico vislumbre chama
    O que, no plaino trespassado,
    Vive ainda em nós, longínqua chama —
    O DESEJADO.
    Sim, só há a espʼrança, como aquela
    — E quem sabe se a mesma? — quando
    Se foi de Aviz a última estrela
    No campo infando.
    Novo Alcácer-Quibir na noite!
    Novo castigo e mal do Fado!
    Porque pecado novo o açoite
    Assim é dado?
    Só resta a fé, que a sua memória
    Nos nossos corações gravou,
    Que Deus não dá paga ilusória
    A quem amou.
    Flor alta do paul da grey,
    Antemanhã da Redenção,
    Nele uma hora encarnou el-rei
    Dom Sebastião.
    O sopro de ânsia que nos leva
    A querer ser o que já fomos,
    E em nós vem como em uma treva,
    Em vãos assomos,
    Bater à porta ao nosso gesto,
    Fazer apelo ao nosso braço,
    Lembrar ao sangue nosso o doesto
    E o vil cansaço,
    Nele um momento clareou,
    A noite antiga se seguiu,
    Mas que segredo é que ficou
    No escuro frio?
    [3]
    Que memória, que luz passada
    Projeta, sombra, no futuro,
    Dá na alma? Que longínqua espada
    Brilha no escuro?
    Que nova luz virá raiar
    Da noite em que jazemos vis?
    Ó sombra amada, vem tornar
    A ânsia feliz.
    Quem quer que sejas, lá no abismo
    Onde a morte a vida conduz,
    Sê para nós um misticismo
    A vaga luz
    Com que a noite erma ainda vazia
    No frio alvor da antemanhã
    Sente, da espʼrança que há no dia,
    Que não é vã.
    E amanhã, quando houver a Hora,
    Sendo Deus pago, Deus dirá
    Nova palavra redentora
    Ao mal que há,
    E um novo verbo ocidental
    Encarnando em heroísmo e glória,
    Traga por seu broquel real
    Tua memória!
    Precursor do que não sabemos,
    Passado de um futuro a abrir
    No assombro de portais extremos
    Por descobrir,
    Sê estrada, gládio, fé, fanal,
    Pendão de glória em glória erguido!
    Tornas possível Portugal
    Por teres sido!
    Não era extinta a antiga chama
    Se tu e o amor puderam ser.
    Entre clarins te a glória aclama,
    Morto a vencer!
    E, porque foste, confiando
    Em QUEM SERÁ porque tu foste,
    Ergamos a alma, e com o infando
    Sorrindo arroste,
    Até que Deus o laço solte
    Que prende à terra a aza que somos,
    E a curva novamente volte
    Ao que já fomos,
    E no ar de bruma que estremece
    (Clarim longínquo matinal!)
    O DESEJADO enfim regresse
    A Portugal!

    FERNANDO PESSOA

    A imagem aqui disponibilizada corresponde à publicação preservada no espólio de Pessoa, em BNP 135C-90, que inclui uma correção do punho do autor, contemplada no texto apresentado. Outro testemunho desta publicação foi preservado pelo autor no seu espólio, em BNP 135C-30, sobre o qual deixa a sugestão de título alternativo ʺÁ Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paesʺ.
  • Names

    • D. Sebastião
    • Deus
    • Fernando Pessoa
    • Sidónio Pais