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[2]
Á MEMORIA
DO
PRESIDENTE
SIDONIO PAESLonge da fama e das espadas,
Alheio ás turbas elle dorme.
Em torno ha claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.
Porque para elle, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que Passado
A terra e os céus.
Alli o gesto, a astucia, a lida,
São já para elle, sem as vêr,
Vacuo de acção, sombra perdida,
Sopro sem ser.
Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor conserva?
Tudo acabou?
No mysterio onde a Morte some
Aquillo a que a alma chama a vida,
Que resta dʼelle a nós — só o nome
E a fé perdida?
Se Deus o havia de levar,
Para que foi que nol-o trouxe —
Cavalleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Soldado-rei que occulta sorte
Como em braços da Patria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.
Mas a alma accesa não acceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Patria, e fé eleita,
E ungida espada.
Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo,
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!
Quem elle foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mysterio e a sua lei.
A Vida fel-o heroe, e a Morte
O sagrou Rei!
Não é com fé que nós não cremos
Que elle não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Em nossa frente.
No occulto para o nosso olhar,
No visivel á nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.
Ainda de longe nos anima,
Inda na alma nos conduz —
Gladio de fé erguido acima
Da nossa cruz!
Nada sabemos do que occulta
O véu egual de noite e dia.
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.
Apraz ao que em nós quer que seja
Qual Deus quiz nosso querer tosco,
Crer que elle vela, bemfazeja
Sombra comnosco.
Não sahe da alma nossa a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Elle inda pensa em nós e é
O bem-amado.
Tenhamos fé, porque elle foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o heroe
Sob o ermo céu.
E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte,
Elle já não,
Mas a ansia nossa que incarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornará, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.
Tornará feito qualquer outro,
Qualquer cousa de nós com elle;
Porque o nome do heroe morto
Inda compelle;
Inda comanda, a armada ida
Para os campos da Redempção,
Ás vezes leva á frente, erguida
‘Spada, a Illusão.
E um raio só do ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.
Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem ama.
É lenha só a Realidade:
A fé é a chamma.
Mas ai, que a fé já não tem fórma
Na materia e na côr da Vida,
E, pensada, em dôr se transforma
E fé perdida!
P’ra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!
Mas basta o nome e basta a gloria
Para elle estar comnosco, e ser
Carnal presença de memoria
A amanhecer;
Spectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ansia,
Que falla com occulta voz
Na alma, a distancia;
E a nossa propria dôr se torna
Uma vaga ansia, um ‘sperar vago,
Como a erma brisa que transtorna
Um ermo lago.
Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque elle pôde ser, Deus não
Nos desprezou.
Rei-nato, a sua realeza,
Por não podel-a herdar dos seus
Avós, com mystica inteireza
A herdou de Deus;
E, por directa consonancia
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ansia
De salvação.
Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com nocturno véu.
Deus pʼra que nol-o deu, se era
P’ra o tornar seu?
Ah, tenhamos mais fé que a espʼrança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abysmo onde não ha mudança
A terra afflicta.
E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta patria, escombro a escombro,
Cahir na treva;
Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — porque espera?
Porque não vem?
Em nova fórma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!
Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta —
Impulso, luz, visão que reja
E a alma presinta!
E qualquer gladio adormecido,
Servo do occulto impulso, accorde,
E um novo heroe se sinta erguido
Porque o recorde!
Governa o servo e o jogral.
O que iamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
‘Strella do céu.
Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Ha um som de reza a invocar
A morta vida;
E um mystico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longinqua chamma —
O DESEJADO.
Sim, só ha a espʼrança, como aquella
— E quem sabe se a mesma? — quando
Se foi de Aviz a ultima estrella
No campo infando.
Novo Alcacer-Kibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Porque peccado novo o açoite
Assim é dado?
Só resta a fé, que a sua memoria
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga illusoria
A quem amou.
Flôr alta do paúl da grey,
Antemanhã da Redempção,
N’elle uma hora incarnou el-rey
Dom Sebastião.
O sopro de ansia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,
Bater á porta ao nosso gesto,
Fazer appelo ao nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,
Nelle um momento clareou,[3]
A noite antiga se seguiu,
Mas que segredo é que ficou
No escuro frio?
Que memoria, que luz passada
Projecta, sombra, no futuro,
Dá na alma? Que longinqua espada
Brilha no escuro?
Que nova luz virá raiar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ansia feliz.
Quem quer que sejas, lá no abysmo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um mysticismo
A vaga luz
Com que a noite erma inda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da espʼrança que ha no dia,
Que não é vã.
E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redemptora
Ao mal que ha,
E um novo verbo occidental
Incarnando em heroismo e gloria,
Traga por seu broquel real
Tua memoria!
Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portaes extremos
Por descobrir,
Sê estrada, gladio, fé, fanal,
Pendão de gloria em gloria erguido!
Tornas possivel Portugal
Por teres sido!
Não era extincta a antiga chamma
Se tu e o amor puderam ser.
Entre clarins te a gloria acclama,
Morto a vencer!
E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,
Até que Deus o laço solte
Que prende á terra a aza que somos,
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,
E no ar de bruma que estremece
(Clarim longinquo matinal!)
O DESEJADO emfim regresse
A Portugal!
FERNANDO PESSOA
A imagem aqui disponibilizada corresponde à publicação preservada no espólio de Pessoa, em BNP 135C-90, que inclui uma correção do punho do autor, contemplada no texto apresentado. Outro testemunho desta publicação foi preservado pelo autor no seu espólio, em BNP 135C-30, sobre o qual deixa a sugestão de título alternativo ʺÁ Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paesʺ. -
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À MEMÓRIA
DO
PRESIDENTE
SIDÓNIO PAISLonge da fama e das espadas,
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.
Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que Passado
A terra e os céus.
Ali o gesto, a astúcia, a lida,
São já para ele, sem as ver,
Vácuo de ação, sombra perdida,
Sopro sem ser.
Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor conserva?
Tudo acabou?
No mistério onde a Morte some
Aquilo a que a alma chama a vida,
Que resta dele a nós — só o nome
E a fé perdida?
Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe —
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.
Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.
Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo,
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!
Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei.
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!
Não é com fé que nós não cremos
Que ele não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Ainda o teremos
Em nossa frente.
No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Ainda sorri com o antigo ar
De força calma.
Ainda de longe nos anima,
Ainda na alma nos conduz —
Gládio de fé erguido acima
Da nossa cruz!
Nada sabemos do que oculta
O véu igual de noite e dia.
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.
Apraz ao que em nós quer que seja
Qual Deus quis nosso querer tosco,
Crer que ele vela, benfazeja
Sombra connosco.
Não sai da alma nossa a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Ele ainda pensa em nós e é
O bem-amado.
Tenhamos fé, porque ele foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o herói
Sob o ermo céu.
E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurreto da falsa morte,
Ele já não,
Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornará, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.
Tornará feito qualquer outro,
Qualquer coisa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Ainda compele;
Ainda comanda, a armada ida
Para os campos da Redenção,
Às vezes leva à frente, erguida
‘Spada, a Ilusão.
E um raio só do ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.
Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem ama.
É lenha só a Realidade:
A fé é a chama.
Mas ai, que a fé já não tem forma
Na matéria e na cor da Vida,
E, pensada, em dor se transforma
E fé perdida!
Pʼra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!
Mas basta o nome e basta a glória
Para ele estar connosco, e ser
Carnal presença de memória
A amanhecer;
Espectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ânsia,
Que fala com oculta voz
Na alma, a distância;
E a nossa própria dor se torna
Uma vaga ânsia, um ‘sperar vago,
Como a erma brisa que transtorna
Um ermo lago.
Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque ele pode ser, Deus não
Nos desprezou.
Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus;
E, por direta consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.
Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com noturno véu.
Deus pʼra que no-lo deu, se era
Pʼra o tornar seu?
Ah, tenhamos mais fé que a espʼrança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.
E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;
Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — porque espera?
Porque não vem?
Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!
Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta —
Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!
E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!
Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
‘Strela do céu.
Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;
E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longínqua chama —
O DESEJADO.
Sim, só há a espʼrança, como aquela
— E quem sabe se a mesma? — quando
Se foi de Aviz a última estrela
No campo infando.
Novo Alcácer-Quibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Porque pecado novo o açoite
Assim é dado?
Só resta a fé, que a sua memória
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga ilusória
A quem amou.
Flor alta do paul da grey,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou el-rei
Dom Sebastião.
O sopro de ânsia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,
Bater à porta ao nosso gesto,
Fazer apelo ao nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,
Nele um momento clareou,[3]
A noite antiga se seguiu,
Mas que segredo é que ficou
No escuro frio?
Que memória, que luz passada
Projeta, sombra, no futuro,
Dá na alma? Que longínqua espada
Brilha no escuro?
Que nova luz virá raiar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ânsia feliz.
Quem quer que sejas, lá no abismo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um misticismo
A vaga luz
Com que a noite erma ainda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da espʼrança que há no dia,
Que não é vã.
E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redentora
Ao mal que há,
E um novo verbo ocidental
Encarnando em heroísmo e glória,
Traga por seu broquel real
Tua memória!
Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portais extremos
Por descobrir,
Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!
Não era extinta a antiga chama
Se tu e o amor puderam ser.
Entre clarins te a glória aclama,
Morto a vencer!
E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,
Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a aza que somos,
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,
E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal!)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!
FERNANDO PESSOA
A imagem aqui disponibilizada corresponde à publicação preservada no espólio de Pessoa, em BNP 135C-90, que inclui uma correção do punho do autor, contemplada no texto apresentado. Outro testemunho desta publicação foi preservado pelo autor no seu espólio, em BNP 135C-30, sobre o qual deixa a sugestão de título alternativo ʺÁ Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paesʺ.
À Memória do Presidente Sidónio Pais
Fernando Pessoa
Acção , 27 de fevereiro de 1920, pp. 2-3.