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[21]
EPISODIOS
A Mumia
I
Andei leguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu ás avessas
Meu ocio com sem-nexo,
E apagaram-se as lampadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tacto
Dos velludos da alcova,
Não pela minha vista.
Ha um oasis no Incerto[22]
E, como uma suspeita
De luz por não-ha-frinchas,
Passa uma caravana.
Esquece-me de subito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.
A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não ha
Cá-dentro nem lá-fóra.
E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguem morto.
Qualquer cousa cahiu
E tiniu no infinito.
II
Na sombra Cleopatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longinqua?
Tua alma é a cidade longinqua.
Chove friamente.
E quanto á mãe que embala ao collo um filho morto —
Todos nós embalamos ao collo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus labios cansados,
Vejo o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anneis.
Porque é que chove?
III
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continúa vendo
Emquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos commigo?
Ás vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim proprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nodoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéa das cousas.
Se accenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fóra —
Não sei que candieiro
Acceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora:
Um momento affluente
Dʼum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço mysterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nullo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metaphysicamente.
IV
As minhas ansiedades cahem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Mumia a posição é absolutamente exacta.
Musica longinqua,
Musica excessivamente longinqua;
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
V
Porque abrem as cousas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre ellas, tão paradas conscientes
Tenho medo de as deixar atraz de mim a tirarem a Mascara
Mas ha sempre cousas atraz de mim.
Sinto a sua ausencia de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Fallam commigo sem voz de dizerem-me as cadeiras
Os desenhos do panno da meza teem vida, cada um é um abysmo
Luze a sorrir com visiveis labios invisiveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se
De onde é que estão olhando para mim?
Que cousas incapazes de olhar estão olhando para mim
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
Sensação de ser só a minha espinha.
As espadas.
FICÇÕES DO INTERLUDIO
I
Plenilunio
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,
Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada
Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar —
A expirar mas nunca expira —
Uma flauta que delira;
Que é mais a idéa de ouvil-a
Que ouvil-a quasi tranquilla
Pelo ar a ondear e a ir...
Silencio a tremeluzir...
II
Saudade dada
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno á tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os attentos ventos.
III
Pierrot bebado
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.
Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paysagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.
Bebada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...
IV
Minuete invisivel
Ellas são vaporosas,
Pallidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar..
Veem, aereas, dançar
Como perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O rhythmo que ha nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa...
Pallida, a pompa indecisa
Da sua flebil demora
Paira em aureola á hora...
Passam nos rhythmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solemne...
E assim vão indo, delindo
Seu perfil unico e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim livido e frio...
Passam sósinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longinquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pallido pallio lunar...
V
Hiemal
Balladas de uma outra terra, alliadas
Ás saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lividas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canaes barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das balladas,
As fadas são bellas, e as estrellas
São dʼellas... Eil-as alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canaes fataes eguaes de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemaes
E caladas...
Toadas afastadas, irreaes, de balladas...
Ais...
Fernando Pessoa.
O poema “Minuete Invisivel“, aqui incluído em “Ficções do Interlúdio”, foi republicado em Diário dos Açores, 17 de junho de 1930, com algumas diferenças ortográficas. -
[21]
EPISÓDIOS
A Múmia
I
Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto[22]
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.
A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.
II
Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.
E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Porque é que chove?
III
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora:
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
IV
As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exata.
Música longínqua,
Música excessivamente longínqua;
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
V
Porque abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara
Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo
Luz a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
Sensação de ser só a minha espinha.
As espadas.
[23]FICÇÕES DO INTERLÚDIO
I
Plenilúnio
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,
Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada
Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar —
A expirar mas nunca expira —
Uma flauta que delira;
Que é mais a ideia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranquila
Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...
II
Saudade dada
Em horas ainda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
III
Pierrot bêbado
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.
Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paisagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.
Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...
IV
Minuete invisível
Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar..
Vêm, aéreas, dançar
Como perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...
Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...
E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio...
Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar...
V
Hiemal
Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas, e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...
Fernando Pessoa.
O poema “Minuete Invisivel“, aqui incluído em “Ficções do Interlúdio”, foi republicado em Diário dos Açores, 17 de junho de 1930, com algumas diferenças ortográficas.
Episódios (A Múmia, Ficções do Interlúdio)
Fernando Pessoa
Portugal Futurista , novembro de 1917, pp. 21-23.